Despertador programado para as cinco da manhã ou antes. Às vezes, é até dispensado, porque alguns estudos mostram que o saudável mesmo é acordar sem ele. Vários argumentos tentam provar os benefícios de começar o dia cedo. Mais eficiência, disposição durante o dia, felicidade e sucesso seriam garantidos com esse hábito.
No Tik Tok e no YouTube, viralizam vídeos intitulados “Como ser aquela garota”, que reproduzem um estilo de vida em que se manter saudável tem tudo a ver com acordar cedo. Ser aquela garota é praticar exercícios, meditar, fazer palavras de afirmação e optar por uma alimentação natural — e, nesse modelo, é importante que isso seja feito pela manhã.
Vários diretores de grandes empresas já afirmaram levantar antes das seis, entre eles, no Brasil, o fundador da XP, Guilherme Benchimol, e da Cacau Show, Alexandre Costa. O clube das cinco (#5amclub) vem ganhando força por todo o globo. Assim, levantar antes de o sol nascer vem sendo interpretado como um despertar também para uma vida mais bem-sucedida.
Nicole Müller, de 22 anos, decidiu mudar os horários quando passou a dormir tarde e a não conseguir acordar na manhã seguinte para as aulas da faculdade, no ano passado. “Ou acordava e não conseguia prestar atenção, porque sentia sono.” Quando trocava a noite pelo dia, precisava trabalhar à tarde e compensava os estudos à noite. E o ciclo seguia.
O método que Nicole encontrou para estabelecer o equilíbrio foi se associar a uma assessoria de treinos, o que ainda soma atividade física no dia a dia dela. Nos dias de corrida coletiva, o grupo começa a se exercitar às seis da manhã e, para participar, a estudante acorda uma hora antes. Com a prática na agenda, ela vem acordando com antecedência e se preparando com calma, para não sair pela porta na correria e comprometer o início do dia.
O resultado vem se refletindo numa mudança de estilo de vida. Mais disposição, produtividade e confiança fazem ela se manter firme no processo. “Como tenho treino aos sábados, prefiro já dormir mais cedo na sexta-feira. Talvez, se não fosse por isso, daria uma relaxada no fim de semana.” Nos dias em que a assessoria não se reúne, Nicole continua acordando cedo, para não perder o pique ao longo da semana. Para fins de desempenho na malhação, as escolhas alimentares também melhoraram.
Mas, sim, manter a rotina, ainda assim, é difícil. A dica da estudante é colocar uma obrigação logo no início do dia, que exija comprometimento. “Claro que dá vontade de ficar na cama, mas é uma satisfação enorme saber que já terminei meu treino e tomei banho e ainda são sete da manhã. Dá um ânimo, porque sei que o dia vai render a partir disso”, conta.
A escolha, claro, precisa ser conciliada com a realidade de cada um. Para ela, o período ainda é de adaptação, principalmente em relação ao horário de dormir. Nicole tenta ir para a cama, no máximo, às 23h, mas o trabalho, os estudos e a rotina de exercícios tomam tempo, e é preciso respeitar quando as coisas não vão conforme o planejado.
Nem demais, nem de menos
Para o médico do sono e psiquiatra Rafael Vinhal, é preciso conhecer o próprio corpo antes de se propor a mudar o ritmo. “Quem tem o perfil matutino ou consegue se ajustar pode, sim, acordar mais cedo. Se não houver sofrimento, é saudável.”
O contrário também é verdade. Vários fatores definem se uma pessoa tem perfil matutino ou vespertino — genética, cultura, valores. E, para aqueles que têm dificuldade para dormir cedo naturalmente, não é recomendado que se force a acordar cedo demais. O especialista alerta que, nesses casos, a pessoa privada de sono costuma ficar irritada e apresentar tensão ao longo do dia, além da própria sonolência. E, com sono, não há quem faça produzir.
Mas acordar supertarde e dedicar-se às tarefas no período da noite também não é considerado o natural. Segundo o médico, esse comportamento pode ser notado, principalmente, em alguns adolescentes e reflete um estilo de vida apoiado na internet e nos eletrônicos, que força o cérebro a repousar cada vez mais tarde. O resultado é uma bagunça no ciclo circadiano. Atrasar o sono leva a mudanças na socialização e tende a causar desconcentração ao longo do dia, que é justamente quando a maioria das atividades acontece.
Para quem, de fato, deseja mudar o hábito ou simplesmente melhorar a higiene do sono, o psiquiatra instrui abandonar os aparelhos eletrônicos duas ou três horas antes de deitar. De preferência, jamais levá-los para dentro do quarto. “As telas ativam o cérebro e inibem a melatonina, que é considerado o hormônio do sono. Isso é importante, principalmente, para as crianças, para que elas rendam melhor desde a infância”, explica.
Para uma produção natural da substância, o ideal é ficar em um ambiente escuro e optar por atividades mais leves próximo do horário de dormir. Dessa forma, e respeitando o ciclo biológico, é possível atingir todos os estágios do sono, inclusive o REM, de descanso profundo, que acontece ao final da noite e é fundamental para o desenvolvimento.
Antes das oito
E se completar tarefas antes das 8h significasse, mais do que melhorar a rotina matinal para alguns, aprimorar qualquer área da vida? O livro O milagre da manhã, de Hal Elrod, apresenta e sustenta a filosofia de que as primeiras horas do dia, de silêncio e introspecção, são ideias para cuidar de si. Por essa visão, o cuidado com o aqui e o agora se reflete com todo o potencial ao longo do dia. A obra propõe um “desafio de transformação” de 30 dias para trabalhar a capacidade de cumprir compromissos e melhorar o desenvolvimento pessoal. Já são mais de 1 milhão de exemplares vendidos no Brasil.
Ritual pela manhã
Ana Paula Monteiro, 39 anos, leu o livro O milagre da manhã em 2018, ano em que a obra começou a se popularizar. Depois disso, criou uma conta no Instagram, o @omilagredamanhaoficial, para compartilhar o próprio processo. O número de pessoas que deu retorno para Ana Paula sobre o assunto foi tão grande que ela se tornou coach na área, estudando o comportamento humano e mindset, e está fazendo graduação em psicologia. Na rede social, ela cria desafios e mobiliza pessoas a cuidarem de si e a evoluírem na vida a partir das técnicas estabelecidas no best-seller.
Para alguém que só funcionava à noite, hoje, Ana Paula é totalmente matinal e rende durante o dia. Ela conta que tinha hábitos saudáveis, há anos, por influência da família. Quando começou a ler mais sobre o assunto, entendeu que já aplicava, naturalmente, várias técnicas relacionadas a sono, rotina e bem-estar. “Passei a me aperfeiçoar e ver que existem ferramentas que podem, sim, mudar a nossa vida, e que podemos alcançar o que quisermos, desde que haja planejamento e ação.”
Transformador nesse caso, o hábito de começar o dia cedo exige alguns esforços: “Faço os seis passos diariamente, aplicando todas as ferramentas. Primeiro, muito importante, é não mexer no celular logo ao acordar, porque já perderia vários minutos nisso”. Na sequência, meditação, escrita com palavras de gratidão, alguns minutos de leitura, exercício físico, que pode ser alongamento ou ioga, afirmações e o momento de visualização — em que se mentaliza situações positivas, desejos, conquistas. Com o café tomado depois de tudo isso, o dia produtivo, finalmente, inicia-se.
Para dar certo, a noite anterior também é marcada por um ritual: chá, banho quente, meditação e cama às 21h ou 22h. Embora Ana Paula tenha hábitos saudáveis bem consolidados nesse sentido, ela entende que não é preciso se apegar a um horário exato para dormir e acordar. Para ela, esse é um fator que muda de acordo com o dia e as demandas que tem. “Não pode se tornar uma prisão. Com o tempo, você vê que é preciso certa leveza nessa dinâmica”, compartilha.
Especialista em medicina do sono, o médico neurologista Nonato Rodrigues destaca que é muito perigoso tentar uniformizar o ser humano. Pessoas como Nicole Müller e Ana Paula, que se adaptam a dormir e acordar mais cedo, conseguem ser altamente funcionais ao longo do dia, por algumas horas. Mas casos extremos de pessoas que vivem reduzindo o tempo de sono porque precisam estudar ou entregar um trabalho e se veem “virados”, sem dormir por uma ou mais noites, fazendo uso incansável de energéticos e café, acabam acumulando essas horas. Isso causa, na verdade, danos ao organismo.
“Não se trata de desligar o corpo. Pelo contrário, algumas funções são ativadas justamente enquanto dormimos”, explica o neurologista. Uma das importâncias desse mecanismo, além de se sentir reparado, é a filtração de proteínas, que opera como uma limpeza molecular. Quando esse “lixo” é filtrado, o sono restaura os músculos e melhora o humor, a memória, a concentração e uma série de outras funções cognitivas. E é sabido que o acúmulo dessas proteínas pode levar à doença de Alzheimer, entre outros problemas, como acidente vascular cerebral. Fora as próprias doenças do sono, como insônia e epilepsia.
“Pode acordar cedo, mas precisa respeitar o relógio biológico e dormir as horas que o corpo precisa, o que é individual”, aponta o especialista. O médico faz uma ressalva sobre as exigências cada vez mais pesadas da sociedade em relação a horário. É que transferimos o tempo que seria do sono para outra atividade.
Para se ter ideia, no Japão, culturalmente marcado por uma rígida expectativa social, 40% da população dorme menos de seis horas por noite. Por lá, provou-se que essa insuficiência se manifesta, na verdade, como redução da eficiência no trabalho e causa até acidentes. A recomendação é que se ajuste o que for possível. “E sempre é possível, basta incluir na agenda e, de fato, buscar cumprir”, diz.
Quando o trabalho obriga
Fato é que poder escolher o horário que vai acordar é realmente um privilégio em diversos aspectos, como afirma a professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB) Soraya Fleischer. Existem bairros e até cidades em que estar fora de casa antes do amanhecer para fazer um exercício físico é impensável por questões de segurança. “É uma autonomia que poucos têm e está relacionado a vários níveis de privilégio, como classe social, uso do espaço e da cidade, transporte público de qualidade e segurança. Mas são hábitos importantes, que puxam a discussão sobre a diversidade no uso do tempo.”
Como sociedade, Soraya explica que temos rotinas para nos conformarmos ao coletivo. Um dos fatores reguladores em grandes cidades são as escolas. A família se mobiliza de acordo com o horário de entrada e saída dos colégios, e o início do expediente, normalmente, também se adequa aos horários escolares.
O fluxo de trânsito, o uso da eletricidade e o funcionamento dos serviços básicos também seguem mais ou menos os mesmos horários. “No Brasil, em geral, somos pouco criativos no uso do tempo. Pessoas que não têm filhos ou não têm crianças em idade escolar poderiam ter horários de trabalho diferentes, isso também seria muito positivo para o trânsito”, comenta Soraya.
A professora ressalta que é importante que exista um padrão coletivo, em termos de reuniões, trabalho em equipe e expediente, mas que, ainda assim, é possível acolher um pouco mais de diversidade no que diz respeito ao biorritmo das pessoas.
Nesse sentido, Soraya explica que aqueles que têm essa liberdade começam a mostrar que existem muitas formas de usar o organizar o tempo. E mesmo quem não tem tanta liberdade para fazer os próprios horários pode se adequar.
É o caso de Priscila Melo, de 35 anos, que é enfermeira e vive a realidade de quem precisa acordar cedo por causa da profissão. Às 4h20, ela se levanta para iniciar um dia de trabalho, que só termina por volta das 17h. O caminho de onde mora, em Samambaia, até a Asa Sul não torna as coisas muito mais fáceis. De manhã, o ônibus já está cheio e são, no mínimo, 40 minutos para chegar ao local. O trabalho começa às 6h15.
Na parte da noite, o desafio é conciliar as tarefas domésticas e a preparação da comida para o dia seguinte com os cuidados e a atenção com o filho de 10 anos. Além disso, tem o sono. “Perto das 22h já estou muito cansada. É deitar e dormir”, conta. Não bastasse a agenda diária cheia, a enfermeira vem tentando encaixar um momento para se exercitar, fazendo caminhadas no período da noite.
Ela relata sonolência ao longo do dia e conta que sente a cobrança. Priscila acaba fazendo muitas atividades no automático: “Quando o despertador toca, não deixo tocar a segunda vez. Se não levanto, acabo saindo da minha rotina e me desequilibro toda. É uma rotina que você acaba criando, sei que preciso levantar, e pronto”.