Afeto, coletividade e narrativas identitárias são os principais ingredientes que compõem o trabalho criativo da estilista Jal Vieira. Nascida em Brasilândia, bairro periférico de São Paulo, Jal carrega uma história marcada por obstáculos advindos de falta de oportunidades e de condições de inserção social. Apesar das provações ao longo do caminho, ela conquistou um espaço de renome no universo da moda e, hoje, possui a marca própria, Jal Vieira Brand.
A história construída em torno de bandeiras sociais a conduziu em direção à campanha Marvel Diversidade, primeira iniciativa hiperlocalizada da Marvel no Brasil, que tem como objetivo unir o DNA da marca com temas relacionados ao racismo estrutural e à invisibilidade da população negra brasileira. A estilista foi convidada pela Disney Brasil para produzir a coleção Realeza, inspirada nas mulheres de Wakanda, país fictício do filme Pantera Negra.
A Revista do Correio conta, em primeira mão, detalhes sobre esse projeto pioneiro e aprofunda as temáticas que permeiam as experiências de vida da estilista.
Trajetória de identidade
A entrada de Jal na moda é definida como “quase acidental”, daquelas coincidências da vida que acabam abrindo portas de forma não premeditada. “Um dia, eu vi um desfile na tevê e resolvi tentar desenhar o modelo que estava passando na passarela. Depois, acabei tomando gosto pela coisa”, conta a estilista, que, no início, tinha até um pouco de preconceito pela área, por enxergá-la como superficial.
Mas esse pensamento foi logo desconstruído assim que ela percebeu que a moda, mais do que roupas e glamour, envolvia pessoas. “Entendi que essa moda que eu tinha preconceito era uma moda que só enxergava a roupa, e não a pessoa que estava ali por trás. Quando eu me inseri no universo da moda, vi que existem várias pessoas que dependem desse mercado para sobreviver. Além disso, entendi que era também papel meu colaborar para o rompimento dessa não humanização, que a gente via muito fortemente no universo da moda.”
Uma vez certa da carreira que queria seguir, Jal teve que enfrentar os empecilhos sociais que sempre fizeram parte de seu cotidiano. “Eu era moradora da periferia de São Paulo, situação econômica completamente distante da possibilidade de estudar algo como moda. Mas, por meio de uma bolsa estudantil, acabei conseguindo entrar em uma faculdade elitizada em São Paulo”, explica.
Um momento marcante foi quando ela ficou em segundo lugar no concurso da Casa de Criadores, principal evento do Brasil dedicado à moda autoral, também responsável por lançar novos talentos. A experiência rendeu reconhecimento para Jal e a deu certezas em relação à área da moda que queria atuar: o estilismo.
Na tentativa de registrar a herança familiar que a define, Jal procura imprimir os próprios traços e a identidade negra nas peças que cria. “Todo o meu trabalho tem relação com minha trajetória. O desenvolvimento têxtil, por exemplo, tem relação com a minha herança histórica familiar, com a minha ancestralidade, com o que aprendi em casa, nos trabalhos manuais que minha avó fazia. Eu procuro incorporar tudo que perpassa a minha vivência”, reflete.
A presença de símbolos identitários, aliás, é uma das principais características dos trabalhos dela: “Eu falo muito sofre afeto, potência de encontro, coletividade, sobre as pessoas que me atravessam, quem eu amo, sobre o que eu sinto.” Graças à representatividade que carrega, sendo uma mulher negra, lésbica e periférica, Jal teve de lidar com situações de invisibilidade e violência. “Acabei passando por todas essas violências históricas que essas pessoas passam. Já senti que não fui escutada nem respeitada, e passei por situações desagradáveis por ser pobre, negra e mulher. No movimento Black Lives Matter, eu percebi que nós, negras, fomos procuradas pelas nossas dores, mas não pelo nosso trabalho, o que também é uma forma de violência”, relata.
Na visão da estilista, assim como as demais áreas, a moda deveria ser mais plural e equitativa, de forma a dar espaço para corpos diversos, não só nos palcos, como também nos bastidores. “A gente fala muito sobre representatividade, sobre rostos pretos e indígenas em campanhas, todos esses corpos que foram excluídos, mas a gente tem que tomar cuidado também com a estrutura que está por trás disso. Não é somente estampar o rosto de uma pessoa negra em uma campanha, mas entender também todas as pessoas que estão por trás dessa campanha. Acho que é muito mais sobre estruturar todo esse sistema com corpos que se enxerguem um no outro. Não só na frente das câmeras, como por trás delas também”, comenta.
Coleção Realeza
O envolvimento pessoal com essas temáticas, além da participação na Casa de Criadores, abriu portas para que a Marvel chegasse até a estilista. “Fiquei sabendo que a Marvel já estava me sondando. Foi uma conversa muito grata, de admiração mútua, porque eu acompanho a Marvel desde criança. Então, saber que ela acompanhava meu trabalho e tinha interesse em mim, me admirava, me deixou muito feliz. Eu pude ter mais certeza de que estava no caminho certo”, conta.
Para Jal, é uma grande responsabilidade estar à frente do projeto da Marvel, que integra outras iniciativas que estão em curso. “A gente está fazendo história. Eu entendi o quão fundamental era que a história que fosse contada ali fosse verdadeira, que outras pessoas pudessem se espelhar de alguma maneira. Na coleção, eu trago mulheres reais do nosso dia a dia. Além disso, todo o processo envolveu corpos pretos.” O mais gratificante para a estilista foi saber que a voz dela estava sendo respeitada durante todo o processo, consolidando o empenho da Marvel em trazer mais equidade não apenas nas telas de cinema, como também nas campanhas publicitárias.
Ciente do papel inspirador que exerce, Jal procura tomar cuidado com a mensagem que passa em seus trabalhos, dando ênfase aos conceitos de pluralidade, respeito, afeto e troca. Um episódio que demonstrou essa influência foi quando, após realizar uma palestra, ela recebeu relatos de estudantes de moda sobre a surpresa de terem visto pela primeira vez uma mulher negra e da periferia tendo sucesso no ramo.
Quanto ao futuro, além dos desejos de estudar fora, ampliar a marca, fazer novos projetos e se dedicar às questões sociais, a estilista pretende colher os frutos do que já está plantando agora, no presente. “Eu acho que meu maior plano futuro na verdade é presente, é algo que eu já estou galgando de agora. É muito mais que alcançar outros espaços, é fazer com que o meu trabalho também possibilite acessos para outras pessoas pretas, outras pessoas que têm esse acesso dificultado historicamente. É trazer os meus comigo. Esse é o meu principal plano: voar junto com os meus”, projeta.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte