Mais que um espaço de compartilhamento de informações pessoais, as mídias sociais se tornaram um local de venda. Não apenas de produtos, mas também de padrões. Ao entrar no Instagram, é comum se deparar com perfis de pessoas “perfeitas”. O que a maioria tem em comum? Plásticas, dietas restritivas, harmonizações faciais e até situações em que a saúde é posta em risco em busca de um ideal estético.
Na música Pretty hurts (a beleza machuca, em livre tradução), a cantora norte-americana Beyoncé critica a busca desenfreada pelos padrões de beleza e expõe de maneira clara o que ela causa: dor. Não apenas física, mas mental, pois as pessoas, sobretudo as mulheres, nunca se sentem satisfeitas consigo mesmas. A procura pela perfeição não é saudável e é uma das principais causas para que tantos jovens desenvolvam transtornos alimentares.
Na maioria dos casos, os jovens que lidam com esses transtornos lutam uma batalha interna — seja por sentir raiva, preocupação, estresse, tristeza e tédio. Indo um pouco além, desenvolvem diversos sentimentos negativos por odiar o que veem no espelho. O psiquiatra Luan Diego Marques explica que um dos grandes problemas das redes sociais, no que diz respeito a transtornos mentais e alimentares, é a sensação de “não pertencimento” que determinados conteúdos podem causar.
O médico comenta que, culturalmente, vivemos em um país que valoriza muito o corpo e o padrão de beleza em foco no momento. “E, quando a maioria das pessoas com corpos fora desses padrões só consome conteúdo com aquele ideal de beleza, elas começam a desenvolver determinados gatilhos com a própria aparência.”
No caso de algumas blogueiras fitness que divulgam suas dietas, seus treinos físicos, o uso de cremes e produtos milagrosos e até jejuns prolongados, Luan ressalta que os “resultados” obtidos fazem com que os jovens se sintam inadequados em seus próprios corpos.
Diante desse sentimento de inadequação, surge o desejo de fazer parte e de ser semelhante àquelas pessoas. A partir daí, muitos jovens buscam as formas mais comuns de emagrecimento, mas, quando não conseguem, acabam se culpando. Vale lembrar que muitas dessas influenciadoras fazem procedimentos que não divulgam, além de terem acompanhamento constante de equipes multidisciplinares.
Luan explica que o ciclo faz com que o indivíduo se sinta cada vez mais inadequado em sua pele, além de incapaz, por não conseguir chegar ao mesmo corpo que as celebridades que enxerga nas mídias todos os dias dizendo que “basta se esforçar, treinar duro e comer bem”.
O psiquiatra ressalta que grande parte dos transtornos alimentares é precedido ou acompanhado por outras doenças, como ansiedade e depressão. “O tipo de conteúdo que as pessoas consomem nas redes sociais tem uma relação direta com as disfunções do humor e podem, sim, despertar ou piorar condições preexistentes do paciente”, afirma.
O impacto das mídias na vida real
A influenciadora digital Maria Eugênia Campos, 20 anos, desenvolveu bulimia e compulsão alimentar, após muitas crises de ansiedade, no ano passado. Ela percebeu que não estava bem quando sentiu a necessidade de esconder o corpo e alterá-lo nas edições de fotos. “Eu aprendi a editar as fotos perfeitamente para parecer mais magra e, fazendo aquilo, percebi que poderia ser um problema”, relata.
Magê Campos tinha como gatilho a comparação. A jovem se comparava tanto que a ansiedade dela disparava e tudo começava a ser descontado na comida. Quando a crise de compulsão passava, ela olhava para o próprio corpo e sentia culpa. “Eu me arrependia de ter comido e passava o restante do dia, ou até dias, sem querer comer direito.” A bulimia gerou uma anemia severa, ausência da menstruação regular e muita fraqueza ao se esforçar — mesmo para realizar atividades simples.
Ela explica que ficava muito mal sempre que via alguma menina com o corpo semelhante ao dela fazendo cirurgias plásticas e apontando aquele tipo de corpo como errado. Decidiu, então, parar de acompanhar influenciadoras que pregam um padrão inalcançável e defendem cirurgias de alto risco sem necessidade.
Cuidando de si e dos outros
Além de divulgar conteúdo de moda e beleza, Magê, hoje, usa da sua influência na internet para tentar alertar suas seguidoras. Passou a falar sobre seus transtornos alimentares e alimentação saudável. “Fui ao fundo do poço porque, quando estava frágil, procurei ajuda e confiei em pessoas sem preparo nenhum”, comenta.
Em outubro de 2020, ela procurou tratamento nutricional para passar por uma reeducação alimentar, melhorar o relacionamento com a comida. Aos poucos, diariamente, repõe os nutrientes que perdeu. A influenciadora também investiu na terapia para alinhar a saúde física e mental. “Faço acompanhamento psicológico, porque transtornos alimentares são problemas psicológicos, e, quando não são tratados diretamente na fonte, não existe melhora. Precisei entender de onde veio o transtorno para tratar a origem do problema.”
Estável e sem crises compulsivas há alguns meses, ela teve alta da terapia. Mas conta que a batalha é constante, porque o transtorno alimentar não tem uma cura definitiva e pequenos gatilhos podem trazer o retorno das crises. A influenciadora aconselha que quem se identifica com os casos dela procure ajuda profissional o quanto antes. O transtorno alimentar é algo sério, que pode causar depressão, danos irreversíveis à saúde e, quando não é tratado, pode levar até a morte. “É algo que está na nossa cabeça e não no nosso corpo.”
A importância do tratamento multidisciplinar
Guilherme Araújo, médico nutrólogo do Hospital Brasília, conta que os transtornos alimentares podem afetar a saúde de uma pessoa de diversas maneiras. Vão desde deficiências nutricionais, distúrbios eletrolíticos, causados pela desidratação severa, falência renal e acidose grave, até erosão dentária e óssea e, principalmente, alterações cognitivas e comportamentais. “Em crianças e adolescentes, podem causar retardo do crescimento e desenvolvimento puberal”, alerta.
Outro tópico preocupante é o jejum prolongado. Segundo o médico, o organismo se adapta a tal prática reduzindo o metabolismo, diminuindo a frequência cardíaca, a pressão arterial e a atividade cerebral. O corpo começará a usar reservas energéticas até chegar a consumir as próprias proteínas. “Ao se alimentar demasiadamente após um longo período de jejum, corre-se o risco de desenvolvimento da síndrome de realimentação, que pode levar à morte”, adverte.
De acordo com o médico, existem várias terapias e medicamentos que podem ser adotados. Assim, se o paciente não se adaptou a uma abordagem ou a um profissional, o importante é não desistir e tentar outros. “Os tratamentos psiquiátrico e psicológico são a base do tratamento do transtorno alimentar, sem eles estaremos apenas ‘enxugando gelo’”.
Os transtornos alimentares são doenças sérias que devem ser tratadas por uma equipe multidisciplinar, com médico psiquiatra, nutrólogo, nutricionista e psicólogo. Ao suspeitar que algum amigo ou familiar está doente, o mais correto é estimulá-lo a procurar profissionais especializados, que possam avaliá-lo adequadamente e determinar o melhor tratamento. “Essa é uma doença séria e precisa ser tratada. A vida e seu relacionamento com a alimentação pode ser muito melhor com o tratamento correto. Valerá a pena.”.
Ansiedade como gatilho
A estudante de enfermagem Raíza Clara Ribeiro de Sousa, 21, desenvolveu compulsão alimentar por conta da ansiedade. Ela percebeu que estava engordando, mas não tinha ideia do motivo. Depois de algumas consultas, descobriu que a ansiedade a fazia comer sem perceber.
A estudante tem o hábito de beliscar besteiras ao longo do dia. Por isso, com o apoio da família e de uma equipe profissional, investiu em uma mudança de hábitos alimentares e começou a praticar exercícios físicos diariamente. “Foi um processo doloroso até entender que era para saúde e não por estética, eu sofri muito”, relata.
Raíza Clara disse que é difícil aceitar que está doente, mas que, aos poucos, ela tem trabalhado isso. E, principalmente, toma cuidado com o que pode afetá-la. “Tudo me causa gatilho, como, por exemplo, ir a um churrasco. Às vezes, as pessoas estão comendo e me dá vontade de comer muito, mas tenho que me controlar, porque, se não, vou passar mal”, relata.
Ela luta todos os dias contra o seu transtorno alimentar para evitar que desenvolva outras doenças, como a diabetes ou a obesidade. Por isso, além de uma dieta balanceada e exercícios físicos, não segue nenhuma digital influencer, porque não se sente confortável com o que a maioria delas compartilha. “Acima de tudo, procure ajuda por você e para você. Lute pela sua saúde.”
Sem se deixar influenciar
- Não copie dietas ou treinos de pessoas on-line, seja quem for. Todos os cuidados com o corpo ou a alimentação devem ser personalizados e prescritos por profissionais da área.
- Desconfie de protocolos e desse tipo de programa. Os cuidados com seu corpo e sua mente precisam ser feitos especialmente para suas condições.
- Pratique atividades físicas para o bem-estar do corpo e da mente, tire o foco do resultado estético.
- Evite acompanhar pessoas com corpos e vidas consideradas “perfeitas”. Busque influências reais, próximas da sua realidade.
- Não caia na armadilha de confundir magreza com saúde.
- Siga pessoas que tenham corpos, pele e cabelos semelhantes aos seus, enxergue a sua beleza e valorize seus traços.
- Rodeie-se, mesmo que on-line, de pessoas que te admiram e te amam, perceba-se através desses olhos.
Cirurgia com responsabilidade
Apesar de ter feito a cirurgia bariátrica e divulgar seu processo e resultados nas redes sociais, a influenciadora e publicitária Stefany da Silva Liberal, 27 anos, ressalta a importância de não banalizar ou romantizar procedimentos médicos.
Ela acredita que é importante que as pessoas estejam muito cientes de que a bariátrica não é algo a se buscar apenas para objetivos estéticos ou quando a pessoa tem transtornos de imagem ou alimentares não tratados ou sem acompanhamento. “Vejo muita gente magra, que pode perder os quilos que quer por meio de cuidados com exercícios e alimentação, querendo fazer a cirurgia e me perguntando sobre. Para essas pessoas, eu faço questão de dizer que não é para isso que o procedimento serve. E aconselho a buscar outros caminhos”, conta.
Além de ter dividido com os seguidores o processo de emagrecimento e a cirurgia, Stefany compartilha também o seu histórico com transtornos alimentares. Desde os 18 anos, ela sentia a cobrança constante de que não podia engordar, que isso seria inaceitável. E toda vez que abusava da comida ou consumia muita besteira, acabava se forçando a vomitar.
Convivendo com a compulsão alimentar e com a bulimia, a culpa se tornou uma companhia diária. Há cerca de três anos, depois de resolver dar um basta no ciclo vicioso e na relação doente que tinha com o alimento, buscou ajuda médica. Após avaliar as opções e fazer acompanhamento psicológico, a jovem, orientada por uma equipe médica, optou pela cirurgia bariátrica — procedimento que diminui o tamanho do estômago do paciente.
“Não adianta emagrecer e não cuidar da mente. Hoje, meu corpo e, principalmente, a minha mente estão mais saudáveis. Como de tudo, mas com equilíbrio, sem compulsão e sem culpa”, afirma. Stefany usa sua influência para ser sincera sobre os processos de emagrecimento e sobre a realidade de uma intervenção cirúrgica. “Tudo tem seu risco, então é fundamental que a pessoa tenha esgotado e estudado as outras opções. Pode parecer um caminho mais fácil, mas não é”, ressalta.
Anos depois do procedimento, Stefany conta que ainda tem momentos difíceis e que o processo de reaprender a se alimentar é bastante trabalhoso. “A gente reaprende até a mastigar e, muitas vezes, temos sintomas como engasgos, pressão baixa, mal-estar, diarreia. Tudo isso tem que estar bem claro na mente de quem busca a cirurgia”, alerta.
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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