A palavra isolamento se tornou uma constante nos nossos dias durante a pandemia. O conceito, porém, vai contra as bases em que construímos a nossa sociedade. Os seres humanos, desde o início do processo evolutivo, vivem em grupos. E, entre esses vínculos sociais, um dos mais fortes é entre uma mãe e seus filhos.
O instinto protetor é um dos primeiros sentimentos despertados em uma mãe, e a necessidade de cuidar e garantir o bem-estar do bebê se torna a prioridade máxima desde os primeiros dias. Quando o filho cresce e sai de casa, inúmeras mães experimentam a síndrome do ninho vazio e muitos dos filhos sofrem para começar a viver sem o suporte materno, que os acompanha desde o início.
Durante a pandemia, a necessidade de proteger e de estar junto atingiu em cheio não só algumas mães, mas também os filhos e netos. E muitas famílias que moravam separadas há anos resolveram voltar a dividir o mesmo teto.
O fotógrafo Thiago Rodrigues de Souza Vargas, 37 anos, por exemplo, vive na Alemanha desde 2007 e passou toda a pandemia com a mãe e a avó. Pouco antes de as medidas de isolamento começarem, Thiago estava visitando a família e optou por continuar no país.
Os meses foram passando e, quando se deu conta, Thiago já estava no Brasil havia mais de um ano. O marido, alemão, continua na Europa, aguardando o retorno do amado, mas o fotógrafo ressalta que ainda não tem data para voltar. “Estou morrendo de saudades dele, claro. Mas o fato de ser trabalhador autônomo também facilita que eu fique aqui um pouco mais. E eu não via minha família desde 2015, então, estou compensando.”
Thiago comenta também que, com o isolamento e a mudança da avó para a casa da mãe, percebeu que se fazia necessário aqui. “A minha avó tem Alzheimer e minha irmã tem paralisia, então elas precisam de cuidados. Seria muito pesado para minha mãe fazer tudo sozinha. Assim, eu ajudo e aproveito para ficar bem junto”, explica.
Na Alemanha, a sogra de Thiago faz as vezes de mãe, mas quando voltou para casa, o fotógrafo percebeu o quanto o dia a dia com a família faz falta. Para ele, chegar ao fim do dia, abraçar a mãe, deitar no seu colo e poder dar um beijo de boa noite na avó tem sido um presente.
Nem tudo é fácil, Thiago confessa que sente um pouco de saudades do jeitinho mais reservado da vida na Alemanha. “Não é que eles sejam frios, mas lá tem um pouco dessa coisa de você respeitar mais o espaço pessoal do outro. Aqui no Brasil, a gente costuma invadir um pouquinho”, brinca, mas garante que os benefícios são infinitamente maiores.
“Estar aqui agora, ao lado delas, é a melhor forma que eu poderia pensar em passar essa pandemia. Perto da minha família, ajudando e curtindo. Mesmo com algumas brigas e desentendimentos, eu me sinto privilegiado por esses momentos, porque amanhã pode ser que eu não tenha mais”, reflete. Além da convivência com a mãe, a pedagoga Soraya Rodrigues de Souza, 60, e a avó, a aposentada Theresa de Jesus Souza, 91, Thiago tem desfrutado da companhia da irmã, Talita Rodrigues Magalhães, e do irmão, Tarso Rodrigues de Souza Vargas.
Além de poder acolher o filho, a mãe de Thiago, Soraya, está aproveitando para curtir o colo da própria mãe. Entre muitas dores e dificuldades, a pandemia trouxe a ela a chance de remediar o relacionamento com a mãe, Theresa.
A pedagoga lembra que desde muito nova sentia a dificuldade de relacionamento entre ela e a mãe, os conflitos eram constantes. Aos 15, Soraya morava no Cruzeiro e fugia de casa para dançar na Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc). Quando voltava, chegava preparada para a briga.
Soraya saiu de casa aos 19 anos e manteve uma relação de idas e vindas com Theresa. Os bons momentos com a mãe eram intercalados com meses e até anos de afastamento. Em um batizado da família, as duas se encontraram em uma igreja. “Não estávamos nos falando, mas quando olhei para ela, eu me senti tocada por Deus. Rezei, pedindo para ser perdoada por qualquer coisa que tenha feito a ela, e que Deus me desse a chance de cuidar dela”, lembra, emocionada.
Foi como se ela estivesse prevendo o futuro. Em 2018, com relutância, Soraya se tornou a curadora da mãe, que já estava com o Alzheimer avançado. Até o início da pandemia, no ano passado, Theresa morava sozinha, com cuidadoras, e era visitada pelas filhas.
Preocupada com uma possível contaminação por coronavírus, Soraya dispensou as profissionais de saúde, assumiu para si os cuidados com a mãe e a levou para a própria casa. Enquanto o marido se tornou responsável pela rotina de medicamentos de Theresa, Soraya e Thiago cuidam da alimentação e da higiene.
A convivência foi ajudando a curar a relação das duas e, hoje, Soraya comemora o carinho que recebe da mãe nos momentos de lucidez. “Ela me reconhece, agradece, diz que me ama e que sou muito boa para ela, coisas que não me dizia antes. Não me abraçava ou me beijava e, hoje, finalmente, posso deitar no colo dela e receber carinho nos cabelos”, conta, com a voz embargada.
E, para Soraya, além do desejado amor da mãe, a lição do perdão é um dos privilégios do momento que vive. “Pratico todos os dias o exercício de perdoar com o coração”, completa.
Cada um com sua mãe
No segundo mês de isolamento, a professora Maria de Nazaré Bezerra de Oliveira, 59 anos, e o advogado Paulo Vicente Lopes de Andrade, 56, acabaram se separando de uma forma diferente. Casados há 17 anos, resolveram deixar sua casa e se mudar, cada um, para a casa dos pais.
A mãe de Nazaré, a aposentada Francisca Bezerra de Oliveira, 89, e a de Paulo, foram as grandes privilegiadas nesse arranjo. Mesmo em isolamento rigoroso, tiveram os filhos ao lado nos dois Dias das Mães, em 2020, e agora, em 2021.
Os pais de Nazaré moravam com a irmã em um apartamento, e a professora aproveitou o trabalho remoto para se mudar com os dois para a casa deles, no Vale do Amanhecer. “Meu pai diz que, no apartamento, sente-se um pássaro na gaiola. Aqui, posso dar mais conforto para eles e voltar a ter esse contato diário depois de tanto tempo, além de ser mais isolado e muito mais seguro para os dois.”
Mesmo com o pai e a mãe vacinados, é Nazaré a responsável por todas as compras e tarefas fora de casa. Trabalhando remotamente e fazendo uma segunda graduação on-line em direito, o processo tem sido cansativo, mas a professora garante que não faria nada diferente. “Eu me sinto privilegiada de poder cuidar dos meus pais, principalmente da minha mãe, que requer um pouco mais de atenção, e de ter saúde para ser o suporte deles.”
A cansativa rotina de estudos e trabalho e a falta que o marido faz são as maiores dificuldades enfrentadas por Nazaré. Apesar de não morar mais com os pais havia quase 20 anos, garante que a convivência não tem grandes dificuldades.
Revezamento
Já Paulo foi para a casa dos pais, na Asa Sul. O casal mata as saudades nos fins de semana, quando se revezam entre a casa das duas famílias. “É bastante tempo para ficarmos separados, mas somos muito unidos e compreensivos. Entendemos que, neste momento, nossas mães precisam mais de nós. Nós nos falamos por vídeo durante a semana para não sofrer tanto”, comenta.
Apesar da saudade um do outro, Nazaré afirma que os dois ficam felizes por ter a chance de retribuir um pouco de todo o amor e cuidado que os pais tiveram com eles a vida toda. “Agradeço a Deus pela presença deles, são nossos bens mais preciosos. Eu e minhas irmãs fazemos de tudo por eles e tenho a sorte de ter um marido que também é assim com a família dele”, completa.
Fugindo da solidão
Apesar de todo o amor do mundo, voltar a morar com os pais pode trazer algumas dificuldades de convivência. O psicólogo Renan Molina afirma que tem visto muitos filhos voltando para a casa dos pais ou levando os pais para a própria casa e que as dificuldades acabam sendo um pouco generalizadas.
Renan explica que, quando as pessoas estão acostumadas a morar sozinhas, acabam tendo mais liberdade e desenvolvendo manias e vícios. A forma de pendurar a roupa, de fazer o arroz, por exemplo, são pequenos hábitos que cada um gosta de um jeito e que podem despertar conflitos.
No caso dos filhos que voltam, existe a questão de dar ou não satisfação aos pais e voltar a viver sob regras que não necessariamente se encaixam nas suas. “Percebo também alguns pais querendo retomar um certo controle com relação aos filhos, mas não costumam ser problemas grandes.”
O psicólogo comenta que, no geral, os efeitos são positivos. Com pais e filhos mais maduros, os momentos podem ser oportunidades para remendar antigas mágoas, e os filhos compreenderem um pouco mais os pais.
A principal vantagem, segundo Renan, é a possibilidade de fugir da solidão durante a pandemia. “Muitas pessoas têm sofrido com depressão e ansiedade, e ter pessoas amadas fazendo companhia é muito valioso. Os filhos têm a proteção e a companhia dos pais e vice-versa. Esse convívio diário, sem o medo de contaminar a família, tem sido muito importante.”
Existe ainda vantagem financeira — diminuição e divisão de gastos que podem ajudar toda a família. “Isso também diminui a pressão do dia a dia”, completa.
Quinzenas de amor
Comemorando o retorno da filha, que morava longe havia oito anos, a professora Bernadete Caparica Pereira dos Santos, 60, também voltou a ficar com a própria mãe durante o isolamento. Ela e a irmã, Carla Caparica Pereira dos Santos, revezam-se e cada uma passa 15 dias morando com os pais.
Aos 81 anos, a aposentada Arlete Caparica Pereira dos Santos vive com o Alzheimer há cinco e precisa de cuidados constantes. Antes da pandemia, recebia em casa as cuidadoras, a fonoaudióloga e a fisioterapeuta.
Com medo do contágio, logo no início, Bernadete e a irmã decidiram que assumiriam todos os cuidados com a matriarca. Aprenderam os exercícios necessários e se mudaram para a casa dela. “Minha mãe tem 81 e meu pai 85 anos, ficamos com medo de ter pessoas que frequentam o ambiente hospitalar entrando e saindo da casa”, explica.
Como Bernadete e a irmã têm filhos, optaram por fazer um revezamento. Cada uma passa 15 dias diretos com a mãe e, depois, trocam. Os cuidados incluem banho, exercícios fisioterapêuticos, exercícios de fala, todas as refeições e remédios. O pai e o irmão, que moram na casa, também são responsáveis por grande parte dos cuidados. Toda a família se reúne para oferecer, não apenas suporte, mas também muito amor e carinho para Arlete.
A professora vai além. Como a mãe não fala, faz questão de experimentar tudo o que Arlete come, verifica se água do banho está fria ou quente demais, veste todas as roupas que a mãe vai usar, para garantir que sejam confortáveis, e experimenta até mesmo as fraldas usadas pela mãe, para ter toda a certeza de que ela não vai se machucar ou sentir incômodo.
“Sinto como se fosse Deus me dando a oportunidade de viver um momento novo com minha mãe. Se não fosse o isolamento, eu a veria muito menos no dia a dia. Agora, participo de tudo e sinto que posso retribuir um pouco todo o cuidado que ela teve comigo e com os meus irmãos toda nossa vida”, conta.
Bernadete conta que o Dia das Mães entrou no revezamento das irmãs. No ano passado, a irmã esteve com a matriarca; este ano, elas resolveram dividir. Uma curte o almoço e a outra o jantar.
E o cuidado se estende. Com o desejo de poupar um pouco o pai e o irmão, que passam todos os dias com Arlete, Bernadete e a irmã separam uma semana por mês para ficarem as três juntas na casa de uma das duas. “Cuidar de pacientes com Alzheimer é desgastante, e gostamos de dar esses dias para que os dois possam relaxar.”
Bernadete se casou aos 22 anos e há 38 não dividia o teto com os pais. Ela conta que, no início, foi difícil, pois deixou de lado toda a rotina que tinha na própria casa e a cada 15 dias muda tudo de novo. Era estranho sair de casa, mas, agora, assim que acabam suas duas semanas com a mãe, já começa a sentir falta da nova rotina.
Reforçando o quanto se sente privilegiada, a professora conta que, pouco antes da pandemia, aposentou-se. “Meus filhos têm 36 e 31 anos, então eu posso, hoje, me dedicar totalmente à minha mãe”, completa.
As regras da boa convivência
Respeitar o espaço do outro, independentemente de quem seja o dono da casa.
Manter e respeitar a liberdade de cada um.
Buscar sempre consensos nos hábitos de cozinha e cuidados com a casa.
Permitir que o responsável pela tarefa a faça como preferir.
Saber ceder.
Investir no diálogo e na compreensão.
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