Há 27 anos, existe no Brasil o Programa de Reanimação Neonatal (PRN), da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), cujo objetivo é diminuir a mortalidade neonatal por asfixia no país. No entanto, apesar do histórico e da trajetória do projeto, nem todo o país conhece os benefícios dos procedimentos – e bebês morrem ou nascem com sequelas por conta disso. Em algumas cidades e municípios brasileiros, bebês são reanimados em cima de pias de cozinha ou a morte de recém-nascidos é tratada como desígnio de Deus.
Esta é a realidade encontrada pelo pediatra e neonatologista Renato Lima e apresentada no livro Uma chance de respirar, que ganhou segunda edição. Durante 120 dias, o médico atuou no Piauí com a capacitação dos profissionais de saúde que prestam assistência a recém-nascidos no local do nascimento, de acordo com as normativas do PRN. “Dentre os locais que mapeamos, o Piauí tinha a maior dificuldade de capilarizar esse programa no interior e uma mortalidade absurdamente alta de recém-nascidos. Nasciam bebês no sertão que recebiam assistência sem nenhum embasamento”, comenta Lima.
A ideia da viagem veio com a tese de doutorado do médico, realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A intenção era capacitar os profissionais de saúde dos cinco hospitais e trabalhar com a gestão dos serviços para tentar melhorar a estrutura da sala de parto. Na bagagem, o médico levou um laboratório de reanimação para fazer as simulações, bem como os ensinamentos do curso oficial do PRN. Foram cerca de 30 dias em cada município, 700 treinamentos e mais de 430 pessoas envolvidas, entre servidores das unidades de saúde e também do Serviço Móvel de Atendimento (Samu).
“Ali, você encontrava uma ignorância de não saber dos procedimentos, não era só uma questão financeira”, detalha o médico. Enquanto em algumas cidades, profissionais da saúde trabalham com mais de 80% dos materiais necessários, no Piauí, Lima encontrou municípios com 18% do que era preciso. “Foi praticamente um renascimento na história desses bebês”, pontua.
Durante os quatro anos em que esteve envolvido com a pesquisa, de 2016 a 2020, o médico notou uma considerável redução de mortes de bebês na região, bem como a melhora na estruturação dos hospitais. O projeto deu tão certo que, recentemente, a Organização Pan-americana de Saúde (Opas Brasil)/OMS está implantando-o em regiões críticas no Brasil sob supervisão do próprio médico, começando pelo Pará. Além disso, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) convidou o pediatra para desenvolver o trabalho em duas comunidades, uma no Mato Grosso do Sul e outra no Acre. “Com treinamento e motivação, as pessoas passaram a se sentir valorizadas e a entender a importância de garantir que um bebê respire nos primeiros 60 segundos de vida.”
Lado humano
Apesar de ter surgido de uma tese de doutorado, o livro do pediatra traz um olhar intenso e humano da situação. Mais do que escancarar a desigualdade do sistema de saúde brasileiro, a publicação revela as histórias encontradas por Lima no decorrer dos treinamentos. “Vivi histórias lá, relatos muito humanos, reanimei bebê em cima de pia de cozinha, recebi bebê dentro de saco de lixo, encontrei pessoas que viajaram 10 horas de ônibus para participar do treinamento, ‘porque na nossa região morre muita criança’, tem os cemitérios clandestinos. Não tinha dimensão do que ia acontecer quando iniciamos a pesquisa”, relata o pediatra.
Com uma narrativa em primeira pessoa, o livro retrata desde a situação da saúde pública no Brasil, debate que veio à tona com a pandemia do novo coronavírus, até a assistência dos recém-nascidos. “É isso que coloca o Brasil no topo da mortalidade. São lugares onde ninguém chega, onde o programa nem as secretarias estaduais alcançam”, afirma. O médico descreve ainda as crenças culturais em torno dessas mortes. “Mães que veem o ocorrido como desígnio de Deus para ter anjos. Profissionais dizendo para mim que apenas rezam e pedem ajuda para São Bartolomeu salvar as crianças”, detalha.
A versão atualizada ganhou mais imagens e histórias vivenciadas pelo autor, bem como depoimentos de famílias que tiveram os bebês salvos em razão do treinamento. Em um ano, eles reanimaram 479 bebês que ou teriam morrido ou sobrevivido com sequelas neurológicas. “As pessoas precisam entender que a transmissão da vida intrauterina para a vida externa é a transmissão mais importante da vida de um ser humano. O bebê, que antes dependia de uma placenta, vai depender, em segundos, do próprio pulmão e do cérebro. Se nos primeiros 60 segundos ele não expandir o tórax, ele não manda oxigênio para o cérebro, e morre. Nesse momento, você precisa garantir que esse bebê consiga respirar. E, para isso, são necessários métodos simples, ter o mínimo de material, como máscara e balão de oxigênio, para restabelecer a pressão e ele conseguir respirar sozinho. Um investimento financeiro muito menor que um bebê asfixiado em uma UTI”, comenta.
O pediatra esclarece que cerca de 10% dos bebês precisam de ajuda para respirar quando nascem, e são eles que morrem. “São bebês que nunca serão crianças. É como se tirasse o direito de um ser humano de ser um ser humano. Isso transforma uma vida, uma história e, neste caso, acho que foi uma transformação daquela região. Agora, os mesmos profissionais que antes colocavam o bebê em cima de uma pia de cozinha lutam pela vida desta criança.”
Uma chance de respirar – Os 60 segundos mais importantes de uma vida.
Autor: Renato Lima
Editora Literare Books International, 216 páginas
Disponível nas principais livrarias físicas e on-line e em https://bit.ly/livro-uma-chance-de-respirar