Especial

Conheça histórias de amizades que começaram em espaços públicos de Brasília

Contrariando o estereótipo de que a capital é um lugar frio e de difícil convívio, moradores contam como parques, pilotis e outros ambientes de lazer da cidade ajudam a aproximar pessoas e a consolidar amizades duradoras

Renata Rusky
postado em 18/04/2021 08:00
Os passeios com os cachorros uniram os casais Ygor (de camisa azul) e Tuanne e Débora e Rodrigo -  (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press)
Os passeios com os cachorros uniram os casais Ygor (de camisa azul) e Tuanne e Débora e Rodrigo - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press)

A sexagenária capital completa mais um ano. Outro ano sem grandes comemorações, por conta da pandemia. Mas, por causa dela, pontos de encontro tradicionais como parques, parquinhos infantis, quadras esportivas, Eixão do lazer, por serem espaços abertos e apresentarem um risco menor de contágio pelo novo coronavírus, ganharam importância ainda mais especial.

E se a cidade é feita de pessoas, são elas, ocupando os espaços públicos, que dão personalidade a ela. As amizades surgidas nesses ambientes mostram uma Brasília diferente do estereótipo — de moradores fechados, que só andam de carro, sem muito convívio com o outro. São, na verdade, locais de união, de socializar e criar laços com quem chega de fora e ainda está se acostumando e com quem nasceu aqui e está aberto a conhecer a vizinhança

Amizade de máscaras

Os casais Tuanne Hamú, 25 anos, psicóloga, e Ygor Borganove, 25, engenheiro de campo, e Débora Luiza Albano Fulgêncio, 26, médica, e Rodrigo Araújo Gomes, 26, biomédico, conheceram-se de máscara, já na pandemia. E de pessoas que se encontravam nas calçadas e no Parque de Águas Claras, tornaram-se grandes amigos.

Mesmo com pandemia e isolamento social, Tuanne e Ygor precisavam levar as cadelas Zaya, de raça não definida, e Jade, um labrador, para passear. O mesmo acontecia com Débora e Rodrigo, que tinham de descer com Mushu, um akita. E os caminhos deles se cruzaram em junho do ano passado. No início, as conversas eram, basicamente, sobre os bichos de estimação, mas a relação evoluiu.

Tuanne brinca que a maneira mais fácil de fazer amizade em Brasília é tendo filho ou cão. “A gente faz várias amizades com outros donos de cachorro, mas, forte assim, só com eles”, afirma a psicóloga. Uma das hipóteses que ela tem para a maior aproximação é o fato de todos trabalharem na área da saúde. “Até o Ygor, que é engenheiro, trabalha na manutenção dos equipamentos que eu opero no hospital”, complementa Rodrigo.

Para Débora, o fato de não estarem encontrando os amigos mais antigos, por causa do coronavírus, fez com que eles se aproximassem mais de quem encontram quase diariamente — no caso deles, por causa dos cachorros. Os casais também descobriram que moravam bem perto um do outro. “Deixei de vir ao parque de carro para vir a pé, com eles”, conta Tuanne.

Neste curto período de convivência, os casais compartilharam diversas situações cotidianas. Conversas sobre uso de focinheira, lugares diferentes para levar os cães. Trocaram muitas dicas. E isso levou também ao tema casamento: o da médica e do biomédico estava marcado para setembro de 2020, mas, com a pandemia, precisou ser adiado e só aconteceu em fevereiro deste ano.

Além de ser um ombro amigo, Tuanne e Ygor ajudaram nas remarcações necessárias. A psicóloga foi, então, convidada para fazer as leituras da cerimônia religiosa. “Ela ainda me dizia que não precisava convidar, que sabia que era complicado isso de lista”, conta, rindo, Débora. Semana que vem, os recém-casados viajam e Mushu vai ficar com os novos melhores amigos.

Eixão do lazer e mudança de vida

Cibele e Marcolino se conheceram no Eixão do Lazer e se tornaram grandes amigos
Cibele e Marcolino se conheceram no Eixão do Lazer e se tornaram grandes amigos (foto: MINERVINO JUNIOR )

Recém-formada e desempregada, Cibele Gonzales, 44, instrutora de longboard e de skate, tinha o costume de levar o filho para andar de skate no Eixão Norte, aos domingos — quando fica fechado para carros. O local é um ponto de encontro para quem gostava do esporte e a ladeira íngreme no trecho final da rodovia, um grande atrativo.

As idas não passavam de um lazer para os dois. Mas Cibele viu ali uma possibilidade de ganhar um dinheiro. “Tinha um cara vendendo água de coco, mas água mineral, ele não vendia”, relembra. Um mercado que ela decidiu explorar. Ficou, então, conhecida por todos como a “mina da água”.

Em meio ao trabalho, sempre dava uma parada e pedia o longboard do pessoal emprestado. Alguns emprestavam, outros, não. Marco Antônio Alves, 55, comerciante, conhecido como Marcolino, que dava aulas do esporte ali, percebeu o interesse dela e começou a emprestar um dos dele. Cibele começou a aprender, levava jeito, encantou-se pela atividade e ganhou grandes amigos, entre eles, Marcolino.

Mão amiga

Não só a gentileza de Marcolino fez com que a relação se estabelecesse. “Uma coisa que une todo mundo que pratica o esporte lá no Eixão é que, se a gente desce a ladeira no skate ou no long, depois a gente tem que subir na perna. E na subida da ladeira, a gente divide os problemas, as alegrias. Fortalece a perna e também as amizades”, afirma o comerciante.

Quando a situação financeira de Cibele ficou ainda mais complicada, foi Marcolino que, novamente, estendeu a mão. Chamou a já amiga para dar aulas com ele. “Eu penso que, se tem uma pessoa com problema, é egoísmo meu não ajudar. Se eu tenho duas aulas para dar, ela pode pegar uma”, conta ele. A experiência transformou a vida de Cibele, que, atualmente, vive do ofício de ensinar o esporte.

O skate, apesar de ser uma modalidade individual, reúne uma grande comunidade. E a amizade com Marcolino não foi a única que Cibele fez. Segundo ela, cada um dos amigos, além de companheiros, são inspirações. “Conheci várias mulheres bem-sucedidas andando de longboard com a gente”, conta. Além do Eixão, ela gosta de andar em frente ao Museu Nacional. “É um esporte muito do espaço público e que junta todo mundo”, afirma Cibele. Com a pandemia, ela acrescenta: “E ainda é ao ar livre, não tem como aglomerar”.

Entre cobogós, pilotis e parques

Vizinhas, Cristiane (E), Denise (com o bebê Lucas) e Sandra se tornaram mais que amigas, viraram comadres
Vizinhas, Cristiane (E), Denise (com o bebê Lucas) e Sandra se tornaram mais que amigas, viraram comadres (foto: Arquibo pessoal)

Os cobogós do corredor do prédio, o pilotis, o bosque, o parquinho da quadra e o grande parque entre as superquadras (o Parcão) foram cenários para a amizade da mineira Denise de Castro, 41, gestora de recursos humanos, da catarinense Cristiane Bertotti, 45, confeiteira e chef da Doce Reserva, e da brasiliense Sandra Mara Tabosa, 46, docente. Os espaços, os filhos e os corações abertos possibilitaram que a relação do trio crescesse e, hoje, elas chamam umas as outras de amigas, ainda que Sandra tenha se mudado há alguns anos.

Mesmo com a rotina de trabalho extremamente corrida de Cristiane, ela já conhecia muitas vizinhas. E não faltou tempo para ela estender a mão para mais uma e abrir a porta de casa a alguém que só encontrava no corredor, dava “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”. Denise se sentia cansada e sobrecarregada. Na época, não trabalhava fora, cuidava do filho de 9 meses e fazia os serviços da casa. Às vezes, o choro do bebê parecia não ter fim — e, de vez em quando, o dela também.

Denise foi dar uma volta no longo corredor para distrair o neném, quando Cristiane, que já tinha dois filhos, uma de 3 anos e um de 6, e, portanto, tinha experiência com bebês, fez o convite: “Entra aqui um pouco”. Denise brinca que a amiga percebeu sua cara de desespero. “A gente é mãe, a gente sabe que é um período difícil mesmo”, diz a catarinense. O apoio da vizinha lhe deu um ânimo completamente novo. Denise sentiu liberdade para ser quem é, e falar sem ser julgada.

No pilotis, Denise conheceu Sandra. Nascida na capital, Sandra viveu a infância embaixo do bloco e queria a mesma experiência para a filha de 3 anos. “A vida das crianças era ficar embaixo do prédio, jogar bete na quadra, tênis no paredão, carrinho de rolimã, pique-esconde, amarelinha, elástico. E tinha o lance de estudar na escola pública, com os filhos do porteiro, da empregada doméstica, juntava todo mundo”, Sandra relembra com carinho.

As duas saíam para tomar café em confeitarias por perto, iam na casa uma da outra, enquanto as crianças brincavam. A relação com Cristiane era um pouco mais restrita, já que trabalhava muito e ainda fazia faculdade de gastronomia. Quando ela decidiu deixar o emprego, no entanto, engrossou o grupo e teve a oportunidade de conhecer ainda melhor as amigas e viver aquela comunidade. “Sem família aqui, as amizades viram a família que a gente escolheu. E são pessoas com quem você se permite ser você mesma, sente-se à vontade”, afirma.

Segundo Sandra, o fato de as três terem filhos pequenos fazia com que vivessem situações parecidas. “Começávamos a falar da vida dos filhos, aí emendávamos com outras coisas: a vida profissional, amorosa, coisas mais íntimas, e vai vendo que aquela pessoa tem a ver com você”, conta Sandra. Denise sentiu liberdade para falar sem ser julgada e isso fez toda a diferença. Para Cristiane, ter pessoas confiáveis por perto foi uma rede de apoio importante, em especial por ela vir de fora da capital.

Quando Denise ficou grávida do segundo filho, em 2017, não havia dúvidas: Cris e Sandra seriam madrinhas, de batismo e consagração. Com o primeiro filho já um pouco mais velho, trabalhando fora e, principalmente, com o apoio das amigas e da vida social que desenvolveu onde mora, a experiência foi mais fácil. Durante o extinto horário de verão, Denise relembra os dias em que elas e muitas outras mães ficavam no Parcão até as 21h. Ela levava o jantar do bebê mais novo e as crianças sempre pediam para dividir o que sobrava.

Socorro próximo

Sandra é louca por leite condensado e evita comprar, para não abusar do consumo. Em dias de profundo desejo pelo doce, ligava para as amigas vizinhas em busca de uma lata. Foi socorrida na urgência diversas vezes. A lembrança é motivo de risada. Denise também já aproveitou para pedir vinho, em momentos de escassez da bebida e com visita em casa. Mas mais do que isso, o apoio da outra foi importante em diversas ocasiões.

Elas já precisaram uma da outra para ficar com os filhos, enquanto não chegavam do trabalho, em acidente com as crianças, idas ao hospital. Quando Denise entrou em trabalho de parto do segundo filho, no meio da madrugada, o primogênito foi para a casa de Cristiane. “É uma rede de apoio emocional também. Houve separações, houve trocas de emprego. Os vinhos, os almoços, os jantares, a confiança, saber que pode contar com o outro, alimenta nossas vidas”, diz Sandra.

O apoio profissional também foi importante. Quando Denise decidiu se aventurar em uma carreira paralela, fazendo papelaria e decoração para festas e criou a Nas Nuvens, Projetos Criativos, Cristiane fez diversas parcerias, com os bolos e doces. Os serviços não eram necessariamente casados, mas uma indicava a outra e, quase sempre, organizavam as festas juntas.

A primeira festa que fizeram foi, justamente da filha de Sandra, que acreditava no talento das duas e queria incentivá-las. Daí, a empreitada deslanchou. Com temas inusitados como ipês, Ilha de Marajó e aquarela, elas fizeram diversas festas cheias de afeto e com muita criatividade. Com a rede de vizinhas ainda maior que tinham, muitas delas foram para as moradoras da própria quadra e das quadras próximas. 

 

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    Cibele e Marcolino se conheceram no Eixão do Lazer e se tornaram grandes amigos Foto: MINERVINO JUNIOR
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