Na contramão da capacidade natural das mulheres de gerar vida, muitas sofrem com a impossibilidade de ter filhos pelos meios convencionais. Quando o sonho de ser mãe é interrompido, resta desafiar a biologia e recorrer a outras alternativas, como a reprodução assistida. Entre as técnicas possíveis, está a barriga de aluguel ou gestação por substituição, termo mais correto para a realidade brasileira.
“Aqui, no Brasil, a gente não pode falar barriga de aluguel, mas chamamos de gestação por substituição ou barriga solidária, porque não tem um caráter comercial. Em alguns países, é possível remunerar alguém para gestar e dar à luz uma criança, mas no Brasil não há essa possibilidade”, explica o advogado especializado em família e sucessões Conrado Paulino.
A chamada gestação por substituição é quando a mulher cede o útero temporariamente para gerir o filho biológico de um casal, isto é, com material genético do pai e da mãe, autores do projeto parental. De acordo com o advogado, não existe uma lei no Brasil sobre o método, mas uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), número 2.168/2017, determina as normas éticas para a realização do procedimento. Nela, está clara a proibição da gestação com fins lucrativos e a necessidade de o doador do útero ter uma relação de parentesco com um dos integrantes do casal.
Conrado ressalta que esse vínculo não precisa ser necessariamente sanguíneo. “Hoje, a gente relativiza a questão de parentesco sanguíneo, porque, no direito da família, o parentesco não é mais determinado pela biologia. O que a resolução do Conselho Federal de Medicina diz é que tem que ser uma pessoa de parentesco legal de até 4º grau, como irmãs, avós, tias e primas, podendo ser adotiva”.
Se o casal não pode levar uma gravidez adiante, por complicações de saúde e/ou problemas nos órgãos reprodutores, há ainda a opção da adoção. Contudo, Conrado aponta que, além do processo ser altamente burocrático, é direito do casal poder escolher ter ou não filhos biológicos. “A gente precisa incentivar a adoção, mas também temos que perceber que a adoção, em muitos estados, depende de um procedimento altamente demorado e há uma fila de espera muito grande. A gente tem seis vezes mais pessoas querendo adotar do que crianças e adolescentes disponíveis para adoção no Brasil”, argumenta.
Panorama da infertilidade
A infertilidade acomete uma parcela considerável da população do Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 278 mil casais não conseguem ter filhos no país, o que representa 15% do total. Podendo ser origem feminina e masculina, cerca de 30% das causas de infertilidade provêm das mulheres, 30% dos homens, 25% são comuns entre os dois, e 15% não se sabe o motivo real, mesmo após a realização de exames de diagnóstico.
“Quando a gente se depara com um casal que não consegue engravidar, é fundamental que se avalie todas as possíveis causas”, alerta Paulo Gallo, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana. Segundo ele, há três opções de tratamento para a infertilidade: tratamento clínico medicamentoso, tratamento cirúrgico e técnicas de reprodução assistida. Essas se dividem em baixa e alta complexidade.
Da baixa, a mais comumente utilizada é a inseminação artificial, técnica que estimula o ovário em dose menor de hormônio, melhora o espermatozoide e leva até o útero para a fecundação. Já a fertilização in vitro é a que se destaca da de alta, caracterizada pela estimulação do ovário para produzir o maior número de óvulos possíveis, que depois são levados ao laboratório com o espermatozoide para a ocorrência da fertilização.
Uma particularidade desse tipo é o caso de mulheres que precisam de um útero de substituição. “Pode ser porque a mulher nasceu sem útero, perdeu o útero por alguma razão ou tem o útero danificado. Nesse caso, ela vai precisar de uma cessão temporária do útero para abrigar o embrião resultante da fertilização feita em laboratório do óvulo dela com o espermatozoide do companheiro”, elenca Paulo.
Ele acrescenta que mulheres com idade mais avançada podem precisar de óvulos doados para fazer a fertilização, sendo necessário que a doação seja anônima e sem fins lucrativos. O mesmo no caso de um casal homossexual masculino: o óvulo é doado e o espermatozoide de um dos companheiros é o escolhido para o procedimento.
Para o presidente da SBRH, as técnicas de reprodução assistida têm sido cada vez mais divulgadas e procuradas. “As pessoas estão tendo mais acesso a isso. Agora, a barriga solidária ainda é a minoria dos casos de tratamento de reprodução assistida porque a própria mulher quer ter o prazer de gerar o filho, então ela só vai utilizar essa possibilidade quando não tiver jeito”, afirma.
Paulo Gallo também pontua que, quando o casal não tem nenhum parente de até 4º grau que possa ceder o útero, é necessário que seja concedida uma autorização do Conselho Federal e Medicina (CFM) para que uma amiga ou parente mais distante faça essa grande demonstração de afeto. “Emprestar o útero para gerar a vida de um bebê é um ato muito altruísta, tem que ter uma grande compaixão pelo próximo.” O maior problema é que esse processo é bem rigoroso e tende a demorar de três a seis meses para ser liberado.
Milagre divino
Quando estava quase sem esperanças, uma luz apareceu no meio do caminho da dentista Bruna Castro, 42, para mostrar a ela que ter um filho estava, sim, nos planos divinos. A brasiliense passou oito anos tentando contornar o problema da infertilidade, até que percebeu que a maternidade pelos meios naturais não era uma opção possível. “Na época, fiquei sem chão, porque percebi que não era tão simples para mim. Sempre tive o desejo de ser mãe, nunca pensei que eu não poderia viver meu sonho de maternidade dessa forma”, declara.
Devido a uma adenomiose difusa, ela não conseguia segurar o embrião no útero, logo, se quisesse ser mãe, teria que encontrar outras alternativas. No primeiro momento, ela até cogitou a adoção, mas a demora do processo burocrático, além da maior vontade do marido de ter um filho biológico fizeram com que ela desistisse e buscasse a barriga solidária.
Uma vez certa do próximo passo, um novo desafio surgiu: não havia ninguém na família que pudesse se dispor ao procedimento. Até que, de forma imprevista, Eve, a esposa de um primo do marido dela descobriu toda a história e topou fazer esse ato de altruísmo por Bruna. “Ela sempre teve o desejo de fazer isso por alguém porque, quando era adolescente, viu uma pessoa na cidade dela que fez, e colocou na cabeça que queria ter a chance de ajudar. Para nós, foi uma surpresa muito grande, um verdadeiro milagre.”
No entanto, como a parente não era até o 4º grau, foi necessário pedir uma autorização do Conselho Federal de Medicina para prosseguir. Depois de dois anos de idas e vindas para Brasília e São Paulo, finalmente conseguiu a autorização e pôde colocar em prática o tão esperado sonho: em dezembro do ano passado, a semente de Davi foi plantada no útero de Eve. Bruna explica que a escolha do nome é em razão de um significado especial: “Eu tinha esse nome no meu coração por ser religiosa. Além disso, o médico que nos atendeu também se chama Davi”. Com apenas 15 semanas de vida, a expectativa para a chegada do pequeno está grande.
Para a dentista, é injusto o Brasil não ter uma legislação que trate dos mais variados casos relacionados à barriga de aluguel/barriga solidária. “Eu acho que o termo barriga de aluguel não deveria ser usado, sou contra a venda de órgãos e acho que isso tem que estar bem claro na legislação, até para não ter comércio. Acho que a coisa tem que ser uma doação, um ato de amor. Só que não é todo mundo que está preparado para fazer esse ato de amor. Em algumas situações, você não encontra alguém dentro da sua família para fazer isso, apenas fora dela. E por que não contemplar essas pessoas? É justo ter uma legislação que abrace isso.”
Bruna também acredita que é papel dela compartilhar sua história com outras mulheres para suprir a falta de informação ainda existente na sociedade sobre o tema. “Não é um processo fácil, teve todo um caminho. Acho importante que as mulheres que precisam e têm o desejo de ser mãe se unam e comecem a correr atrás de coisas que nos beneficiem. Eu quero ajudar outras mulheres.”
Projeto mamãe nos EUA
A professora Aline da Rosa, 42, decidiu cruzar as fronteiras do país para realizar o sonho de ser mãe. A longa saga para engravidar se iniciou quando ela descobriu que o marido tinha baixa produção de espermatozoides. Para contornar o problema, ela tentou uma fertilização in vitro, que deu resultado, até que, com seis semanas de gravidez, ela perdeu o bebê. Depois de se submeter a vários procedimentos no útero para deixá-lo pronto para uma nova tentativa, a surpresa da vez foi uma gravidez ectópica, isto é, nas trompas, que precisou ser interrompida para não gerar complicações.
“Depois desses sucessivos problemas, passei a ter vários problemas no útero, as paredes ficam grudadinhas, não formavam o endométrio e o embrião não conseguia se implantar. Fiz diversos procedimentos para tentar manter o útero sadio e funcionando. Mas chegou uma hora que não tinha mais nada que os médicos pudessem fazer. Foram cerca de quatro anos de tratamento e de muito sofrimento. Um desafio emocional, financeiro e físico”, relata.
No meio do turbilhão de sentimentos e com as energias já saturadas, ela e o marido se depararam com a possibilidade da barriga de aluguel. Como no Brasil só é possível fazer o procedimento com a participação de um parente, o casal optou por realizar a aventura nos Estados Unidos, pois, devido a todo o desgaste que passaram, queria resolver a questão por conta própria. “Como a gente já estava há muito tempo sofrendo entre a gente, queríamos resolver sem envolver ninguém nisso. É uma questão tão delicada para você envolver uma terceira pessoa próxima. Não sabemos que sentimento vai despertar na pessoa e como vai ser depois. Então, a gente preferiu fazer uma coisa mais profissional, sem envolvimento pessoal”, justifica.
Em terras estrangeiras, os dois entraram em contato com uma agência de barriga de aluguel que os ajudou a chegar até Stephannie, a mulher que cedeu o ventre para conceber o filho, ou melhor, os filhos deles. Para a surpresa de Aline, a americana deu à luz um casal de gêmeos, Arthur e Cecília, 7. O mais curioso é que a doadora também concebeu gêmeos em mais dois partos que fez depois. “Qualquer coisa que você botar naquela barriga vinga”, brinca Aline.
Ela conta que o processo de escolha da mulher que concede o útero prescinde de mais do que apenas uma motivação financeira. “Uma das questões para fazer esse tipo de procedimento, para se dispor a fazer barriga de aluguel, é não ter apenas uma motivação financeira. É necessário ter outra motivação além dessa. Como ela tinha perdido um dos filhos em uma gravidez, colocou-se muito no lugar das pessoas que não podiam ter a experiência”.
A experiência foi tão gratificante para Aline e o marido que eles decidiram escrever um livro chamado Gerando amor — Uma jornada de barriga de aluguel, inspirado em relatos que fizeram durante toda a jornada em um blog na internet. “Foi a coisa mais linda do mundo, um momento que nunca vou esquecer na minha vida. Alguém gerar vida por você é um ato de muito altruísmo, sem precedência. Eu não tenho dúvidas que faria tudo de novo se precisasse”, afirma.
Casais homoafetivos
O procedimento para casais homoafetivos é o mesmo, com os mesmos documentos exigidos, mas mudando apenas alguns detalhes. No caso de duas mulheres, se usar o óvulo de uma delas, uma será a mãe biológica e a outra será registrada como mãe socioafetiva. No caso de dois homens, necessariamente precisa haver a compra do óvulo em um banco de óvulos e usar o espermatozoide de um deles. Então, um pai será o biológico e o outro, nesse caso, o pai socioafetivo.
“A maternidade e a paternidade socioafetivas não diferem em nada em relação a direitos, apenas na hora de registrar no cartório”, explica o advogado especializado em direitos homoafetivos e da família Eduardo Pinheiro Braga.
Além disso, o profissional pontua: antes de realizar o procedimento, é preciso apresentar o comprovante da união dos cônjuges.
Saiba mais
Paulo Gallo, presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana compartilha as principais regras presentes na resolução do Conselho Federal de Medicina para o procedimento da barriga solidária:
- Termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos pacientes e pela cedente temporária do útero;
- Relatório médico com o perfil psicológico atestando adequação clínica e emocional de todos os envolvidos;
- Termo de compromisso entre o paciente e a cedente temporária do útero, estabelecendo a questão da filiação da criança;
- Compromisso por parte do paciente contratante de serviços de reprodução assistida, de tratamento e acompanhamento médico por equipes multidisciplinares;
- Compromisso de que haverá registro civil da criança pelos pais biológicos em Cartório (na Certidão de Nascimento da criança não vai constar o nome da parturiente, apenas dos autores do projeto parental)
Como proceder?
De acordo com o médico David Barreira, ginecologista com atuação em reprodução humana assistida e responsável pelos procedimentos de barriga solidária na clínica Bonvena, em Brasília, a mulher que cederá o útero precisa passar por uma análise médica criteriosa. “É uma avaliação para saber se ela pode engravidar sem riscos para si ou para a criança a ser gerada. Também são necessários exames para doenças infecciosas de todos os participantes do processo, para que não aconteça a contaminação inadvertida durante o tratamento”, explica o profissional.
Segundo o especialista, após o procedimento, os cuidados são os mesmos de uma gravidez usual, às vezes, com pequenas diferenças no primeiro trimestre de gestação, por conta de algumas condições artificiais do tratamento. Depois, a gravidez segue como as outras.
Alguns cuidados são tomados para diminuir risco de arrependimento, que pode existir, apesar de todos os cuidados prévios tomados. “Imediatamente após o parto, a criança já fica em um ambiente separado da barriga solidária, ambiente este que tem a presença dos pais genéticos. Dessa forma, não há risco de a criança não ser entregue. Não é um ato de crueldade, pois tudo isso foi preparado e combinado de antemão entre as partes. É até mesmo uma forma de facilitar as questões psicológicas e de devolver à barriga solidária sua vida normal”, pontua o ginecologista.
Saúde mental dos envolvidos
Por trás de todo o processo burocrático de um procedimento de barriga de aluguel, é preciso entender, também, o que isso representa aos pais, especialmente à mãe. Segundo o psicólogo Alexander Bez, especialista em relacionamentos, questões psíquicas, pessoais e familiares farão parte integral da preparação da mulher ao longo dessa etapa. “A escolha da ‘interlocutora gestacional’ é severa e demasiadamente importante, posto que ela é quem carregará a criança ao longo da gestação. Ciúmes em relação à própria maternidade, como também a nível inconsciente do marido, podem acontecer. Por isso, a preparação psicológica é o ponto chave”, explica.
O profissional alerta para as possíveis consequências de não se oferecer preparo emocional adequado para ambas as partes envolvidas. Em alguns casos, pode haver rejeição da mãe em relação à criança, principalmente quando ela demonstra comportamentos os quais os pais não compactuam. “No inconsciente da mãe que procurou pela barriga de aluguel, pode ser entendido que foi um ‘experimento errado’”, relata o especialista.
Em relação à mulher que será a barriga de aluguel, também é extremamente importante assistir suas condições psíquicas e emocionais. No Brasil, como a portadora do útero precisa ter relação de parentesco com o casal, questões relacionadas aos laços precisam ser muito bem trabalhadas. “As chances de haver uma maior dificuldade na separação dos vínculos são muito maiores. São muitos os pontos que precisam ser pensados e repensados, discutidos com todas as pessoas envolvidas. Ansiedade e outros transtornos podem ser manifestados sem o tratamento adequado”, completa Alexander.
Futuro incerto
Quanto ao futuro da legislação brasileira, no que tange à prática da barriga de aluguel, não há certezas. Para o advogado Conrado Paulino, uma vez que há um acordo contratual pré-estabelecido, não há riscos de problemas no processo, logo, a barriga de aluguel deveria ser um direito. “Eu vejo que o detalhamento deste contrato poderia ser a melhor forma para evitar litígios e problemas. Legalizar a prática é uma situação que seria mais adequada para nossa experiência do que simplesmente negar esse direito. Eu vejo como uma expressão do livre planejamento familiar que no Brasil pudesse ser permitido a prática da barriga de aluguel”, pondera.
A questão da infertilidade é um fenômeno social e biológico que está ganhando contornos bem delineados na sociedade, especialmente pela mudança da faixa etária em que as mulheres estão se tornando mães. Na visão de Conrado, isso é um dos fatores que explicam o fenômeno, pois a idade é um fator que reduz as chances de uma gravidez bem-sucedida. “A idade ideal da mulher para ter filhos, por exemplo, é na faixa dos 20 e 24. Hoje uma mulher com essa faixa de idade não cogita ter filhos e aí o casal vai buscar a parentalidade com 35, 36 anos. Então, cada vez mais a gente vai enfrentar essa realidade na nossa sociedade contemporânea e eu vejo que precisamos encontrar meios para que as pessoas possam exercer o seu planejamento familiar. As pessoas têm uma tendência muito grande a criticar a barriga de aluguel, mas elas não entendem que cada um tem o direito de fazer as suas escolhas e o Estado tem que garantir meios para que isso aconteça”, conclui o advogado.
O presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, Paulo Gallo, acredita que a questão da permissão legal da barriga de aluguel é cultural e envolve aspectos religiosos, morais, sociais, econômicos e políticos. “Acho que a legalização da barriga de aluguel é uma discussão da sociedade de um modo geral. Essas coisas podem mudar, porque a ética, os costumes e os hábitos de cada nação sofrem modificações. O que antes era considerado imoral, depois pode ser aceito. Portanto, essa discussão é muito ampla e, antes de ser tomada qualquer decisão, é necessário que todos os prós e contras sejam avaliados e que a decisão tomada realmente atenda aos interesses da sociedade como um todo”, contrapõe.
*Estagiárias sob a supervisão de José Carlos Vieira
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