Tecnologia viciante

Isolamento social potencializa dependência tecnológica

A necessidade de utilizar a internet para a realização das atividades de rotina potencializou problemas de saúde mental. Especialistas explicam o fenômeno e compartilham práticas saudáveis

Raquel Ribeiro* e Tayanne Silva*
postado em 07/02/2021 14:23 / atualizado em 08/02/2021 16:56
 (crédito: Arquivo Pessoal)
(crédito: Arquivo Pessoal)

O isolamento social potencializou um dos problemas mais comuns da modernidade: a dependência tecnológica. Confinados entre quatro paredes, muitos enxergaram a internet como um meio de se distrair da realidade conturbada e a única alternativa para se comunicar com o exterior.

Para o psicólogo clínico Gilberto Godoy, as contingências da pandemia criaram novas demandas e mudaram a forma com que as pessoas se relacionam com tudo à volta. O uso desenfreado de tecnologias, por exemplo, passou a ser um dos grandes responsáveis pelo aparecimento e/ou agravamento de problemas mentais. “A forma de o homem se relacionar com outros homens e com as coisas se modificou muito. Dentro do consultório, notei que as pessoas começaram a ter alguns sintomas que, antes, ou eram mascarados ou não existiam, como ansiedade, síndrome do pânico e depressão”, observa.

Pesquisa realizada pelo Laboratório Delete-Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias, da Universidade Federal do Rio De Janeiro (UFRJ), evidencia essa dependência. Realizado no período de 1º de novembro de 2020 a 1º de janeiro de 2021, o estudo mostra que 62,5% das pessoas usaram tecnologias por mais de três horas todos os dias, e 49,1% por mais de quatro horas, durante o período de isolamento social imposto pela pandemia da covid-19.

O questionário, aplicado para 336 respondentes de todo o país pela plataforma Google Forms, também evidenciou que 50,6% das pessoas costumavam checar com frequência suas mensagens, enquanto 56,3% delas, quando deixavam de usar tecnologias frequentemente, voltavam a acessar.

A pesquisa, sob responsabilidade da psicóloga doutora em saúde mental Anna Lucia Spear King, mostra outros dados interessantes sobre essa dependência: 44,3% frequentemente se sentiam mais felizes durante o dia por usar as tecnologias, enquanto 26,8% se diziam tristes por não poderem usá-las. Já 17,3% relataram algum medo ao perceber que não tinham acesso às tecnologias e 29,5% ficavam nervosos.

Hábitos saudáveis

Godoy considera que o pontapé inicial para lidar com o vício em tecnologia é reconhecer a existência do problema e buscar ajuda profissional. “Procurar uma boa terapia é fundamental para a pessoa começar a mudar de atitude.” Apesar de alguns não sentirem os efeitos a curto prazo, o excesso de exposição a tecnologias pode gerar problemas no futuro.

Segundo o psicólogo, o segredo para evitar danos à saúde é praticar o autocontrole e o uso consciente. “Com a dosagem certa, com equilíbrio de uso, a tecnologia pode ser benéfica em vários sentidos. O problema é que ter autocontrole não é fácil e, por isso, é importante ter a orientação de práticas terapêuticas.” Métodos como o estabelecimento de metas, assim como a identificação dos sinais que o corpo dá são alguns exemplos.

Já o psiquiatra Fábio Aurélio recomenda a adoção de uma visão panorâmica sobre a questão para que, assim, hábitos saudáveis, como a administração do tempo de uso da internet, sejam colocados em ação. Para ele, o mais importante é analisar se o tempo de uso de tecnologias não está afetando outras áreas da vida. “É muito difícil calcular quanto tempo seria ideal, mas, normalmente, na saúde mental, partimos do pressuposto de que tudo que você faz que não interfere na sua vida pessoal, familiar e social é aceito. Então, se você usa a internet de forma saudável, não atrapalhando a sua rotina e a sua convivência social, tudo bem”, avalia.

A revolução nas comunicações

Com a oferta crescente de acesso à internet e a popularização de mídias sociais, como Facebook, Twitter, Instagram e outras, o modo de vida do ser humano mudou. “Nossa maneira de viver, de nos relacionar e até mesmo de consumir informação e negócios on-line nunca mais foi a mesma”, afirma Nathaniel Simch de Morais, mestre em computação aplicada pela Universidade de Brasília (UnB).

Para ele, no entanto, esse acesso fácil aos recursos tecnológicos também encontra um cenário comum, que é o indício de um vício comportamental relacionado ao uso indiscriminado e compulsivo de mídias sociais. “Isso tem sido exaustivamente estudado pela comunidade acadêmica. Desde janeiro de 2020, podemos encontrar mais de 21 mil registros de publicações relacionadas ao tema. Desse total, pouco mais de 12 mil trazem o termo covid-19 nos conteúdos.”

Para ele, a pandemia não trouxe apenas problemas para a saúde física, mas potencializou um problema psicológico. “Uma vez que obriga as pessoas a passarem mais tempo em casa, e usando a internet, pois é a principal ferramenta para socialização.”

Além disso, ocorreram algumas mudanças: “Os pais, de repente, acumularam suas funções com as de professores e, em muitos casos, com o trabalho, que passou a ser no formato remoto. Assim, os níveis de ansiedade passaram a crescer, para os pais e para os filhos, que também trouxeram para casa seus estudos com as aulas remotas”, completa.

Para o professor, nesse ponto, o vício pelas redes sociais se reflete em ansiedade, depressão, distúrbios alimentares e de sono. “Esses sintomas são potencializados pela crise econômica, também advinda da pandemia.”

A prevenção do vício em tecnologia e seus impactos psicossociais são um esforço que deve ser demandado pelas políticas públicas. “Aqui entra o termo ‘parentalidade participativa’, não como sobrecarga para os pais, mas como um uso envolvente da tecnologia com as crianças com fontes de alta qualidade adequadas à idade”, constata Nathaniel. “As opções sugeridas são de envolver os jovens com as opções de uso mais produtivo e a conduzi-las a uma utilização benéfica, em vez de focar apenas nos limites.”

Equilíbrio em prática

A estrategista digital e produtora de conteúdo multimídia Michelle Macedo, 32 anos, possui uma estreita ligação com as mídias sociais e demais tecnologias de comunicação. Com enfoque no Instagram, rede social que também lhe rende o título de influencer, ela oferece serviços como gestão de redes, consultoria digital, análise de perfil e mentorias.

Por ter o meio virtual como principal ferramenta de trabalho, aprendeu desde cedo a lidar com as consequências do consumo de informações. Hoje, sabe separar a vida profissional da pessoal e procura encontrar um equilíbrio. “Eu encontrei esse equilíbrio na prática. Quando acontecia um fato que me deixava triste, eu levava para a terapia e conversava com meu psicólogo sobre isso. Eu faço terapia desde adolescente, é uma coisa que fez parte da minha vida e me ajudou, de certa forma, a separar o que é trabalho e o que é pessoal, o que me faz bem e o que não faz, o que é meu e o que é do outro”, diz.

Durante a pandemia, o distanciamento de familiares e colegas foi o que mais pesou emocionalmente para ela, resultando em crises de ansiedade, que a fizeram voltar a fazer terapia.“O isolamento afetou o meu emocional porque, como eu estava em home office, a conversa que eu tinha com meus colegas de bancada não podia ter mais. Passei por alguns problemas de ansiedade justamente por não ter pessoas com quem eu pudesse compartilhar, ter aquela troca, além do fato de morar sozinha e não ter minha família por perto.”

Para evitar os sentimentos negativos, Michelle procura escolher o tipo de conteúdo a que se expõe. “Eu criei métodos dentro da minha cabeça para filtrar o que eu devo consumir ou não, pois o excesso de informação, de consumo, ainda mais em redes como o Instagram, que passam uma imagem distorcida da realidade da vida das pessoas, pode provocar ansiedade e sentimento de inferioridade”, acrescenta.

Controlar o tempo dentro das redes sociais e aproveitar o momento presente são as estratégias que ela incorpora no dia a dia. “Ter um tempo fora das redes sociais e estabelecer um limite é importante. Por exemplo, quando estou com meus amigos, família, namorado, coloco o celular com a tela para baixo para nem ver as notificações. É preciso entender que você precisa ter um tempo para você e não deixar que a rede social te impeça de viver o presente”, aconselha.


Detox

Os 10 passos do Laboratório Delete-Detox Digital e Uso consciente de Tecnologias para o detox:

1- Utilize o bom senso para que o uso não se torne abuso no cotidiano.
2- Fique atento às consequências físicas (como privação de sono, dores na coluna, problemas de visão) e psicológicas (depressão, ansiedade) devido ao uso excessivo.
3- Dose a prática de uso de tecnologias no cotidiano. Verifique se seu desempenho acadêmico ou no trabalho estão sendo prejudicados.
4- Reflita sobre seus hábitos e faça diferente.
5- Não troque atividades ao ar livre para ficar conectado.
6- Prefira uma vida social real à virtual.
7- Pratique exercícios físicos regularmente e faça intervalos regulares durante o uso de tecnologias.
8- Não abale o seu humor com publicações virtuais nem acredite em tudo que é postado.
9- Valorize suas relações familiares.
10- Pense no meio ambiente, recicle os aparelhos e evite a troca frequente sem necessidade.

Cruzando Limites

A designer gráfica Dazi Antunes, 58 anos, acompanhou a evolução do design, o surgimento da internet, assim como a popularização das redes sociais. O interesse dela pelas novas tecnologias foi imediato e, sendo militante política, enxergou no meio virtual um espaço para compartilhar seus pensamentos e se manter atualizada.

Após a realização de uma cirurgia que a fez perder parte da mobilidade, o contato por meio das telas passou a ser mais constante. Em seguida, veio a pandemia, que contribuiu para que o uso dos dois computadores, além dos dois celulares, extrapolassem os limites considerados saudáveis.

“Eu fui ao oftalmologista e ele me aconselhou a pegar mais leve no uso de celular e computador, parar e fazer outra coisa. Eu sou tão aficionada que fico muito tempo, tanto no computador quanto no celular, e, como consequência, eu estou com problemas de vista. Por dia, passo cerca de 12 horas utilizando tecnologias”, conta.

O mais difícil para ela durante o período de confinamento foi ter que abdicar do convívio social no trabalho, o que a abastecia emocionalmente para lidar com a rotina. A falta de socialização face a face somada ao cenário pandêmico contribuíram para que sintomas como ansiedade ficassem mais fortes. Para ela, a pandemia abalou o emocional de muitos e deixou as pessoas com os nervos à flor da pele.

Benefícios e malefícios


O médico psiquiatra e membro titular da Sociedade Brasileira de Psiquiatria Fábio Aurélio compartilha da visão de que a internet perdeu o caráter agregador e serviu como ambiente de desavenças durante a pandemia. “Talvez porque as pessoas estejam muito estressadas por conta da pandemia, com medo de adoecer, com perdas familiares e profissionais, elas vão para essa relação on-line com uma carga afetiva extremamente negativa. Logo, a internet acabou sendo um lugar onde as pessoas deságuam sentimentos como ansiedade, raiva e angústia”, explica.

Para ele, a falta de comunicação não verbal é uma das principais razões para esses conflitos emocionais. “O homem é um ser sociável e, como nos socializamos pouco durante a pandemia, retrocedemos um pouco mais no nosso processo evolutivo emocional. A nossa inteligência emocional foi prejudicada.” O psiquiatra também ressalta o papel de influência da cultura do abraço na saúde mental: “Na interação virtual, a nossa experiência sensorial é muito empobrecida, e o brasileiro precisa muito de contato físico.”

Dazi acredita que, embora o excesso de uso da internet traga consequências negativas, o ciberespaço funciona como uma fuga da realidade e um companheiro nos momentos difíceis. “A internet me ajuda a sair da minha realidade. Mas, ao mesmo tempo que ela pode ser nociva, também é uma boa distração.”

A fim de usufruir da tecnologia positivamente, a designer pretende seguir os conselhos da médica e direcionar o olhar para o mundo real. “Pretendo estabelecer uma meta, dar uma passeada na rua, observar as árvores e a natureza. O excesso de exposição às telas está fazendo muito mal para minha saúde, tanto física quanto emocional”, afirma.

Geração digital

Outros que sofrem com os impactos da tecnologia no cotidiano são as crianças e adolescentes. No caso da geração que já nasceu imersa no universo digital, a própria compreensão acerca do mundo é afetada pelas ferramentas tecnológicas, como destaca o psicólogo Gilberto Godoy: “Com essa questão do acesso à tecnologia, as crianças começaram a mudar a forma como aprendem a verbalizar as coisas. Então, os valores que serão aprendidos por essa nova geração são completamente diferentes das outras”.

O estudante do 2º ano do ensino médio Guilherme Soares, 16, aumentou o período de utilização da internet durante a quarentena. Na companhia de aulas on-line, jogos de simulação, redes sociais e filmes, ele passou a ficar em torno de 10 horas por dia no computador e no celular. A falta de outras atividades para o entreter, assim como a impossibilidade de sair de casa, foram os motivos determinantes para o excesso de exposição às telas. “A internet, para mim, é um entretenimento, um passatempo. Na quarentena, era mais uma coisa de desespero e tédio.”

Para ele, a experiência de aula on-line deixou uma série de lacunas no aprendizado. Isso porque a quantidade de estímulos ao redor impuseram dificuldades para a concentração nas aulas. Sobre a motivação para o uso frequente de aparelhos digitais estão a curiosidade e o medo de “ficar de fora”. “Eu não gosto de ficar sem internet, porque eu gosto de comunicação. Sinto que, sem a internet, estou perdendo alguma coisa que está acontecendo. Não gosto de ficar sem sinal porque me sinto muito desconectado do mundo”, confessa.

A psicóloga Aline Soares, mãe de Guilherme e também de Beatriz, 13, é alguém que observou os efeitos negativos da dependência em tecnologia nos próprios filhos. “Os meus dois filhos gostam muito de tecnologia, preferem estar no computador, no mundo deles. Eu vou vendo que o jovem vai ficando mais deprimido, menos sociável. A tecnologia faz isso, tira o jovem da socialização e cria essa possibilidade de criar um mundo paralelo”, relata.

Segundo ela, é essencial que os pais estabeleçam limites e incentivem os filhos a praticarem outros tipos de atividades. Aline não permite que os dois fiquem com o celular no quarto, por exemplo, para não atrapalhar na hora de dormir, e deixa o computador na sala de forma proposital, para poder ter uma certa vigilância. “Eu incentivo eles a buscarem outras atividades, invento coisas para fazermos nos finais de semana, porque senão é muito mais cômodo para eles ficarem o dia inteiro em frente às telas. Parece que são abduzidos, saem do espaço real e entram em um mundo imaginário”, compara.

Comunicação, aprendizagem e redes sociais


O estudante de fonoaudiologia Pedro Palhano, 19 anos, conta que administra algumas contas do Instagram. “Faço arte, edito vídeos para publicações e crio conteúdos para posts. Fico bastante tempo usando tecnologias (internet e aparelhos eletrônicos, como notebook e celular). Na verdade, muito mais do que eu queria”, diz.

Dono de uma conta do Instagram que aborda dicas de estilo de vida (dieta, lugares, beleza, etc.), Pedro passa horas no celular. E, longe das redes sociais, sente-se triste e ansioso. “Há uma confusão de sentimentos, pois passar período mais exposto a elas me deixa angustiado”, relata. O jovem tenta se controlar ao máximo. “É difícil. Tem vezes que consigo, passo dias sem entrar nas redes sociais e fico tranquilo, porém, isso depende muito do meu humor”, afirma.

O estudante ressalta, porém, um lado bom da tecnologia. “Facilita muito nossa comunicação e nossa vida, por isso é viciante.” No início da pandemia, o jovem virava noites assistindo a séries, mas, atualmente, o tempo usado é praticamente todo para as redes sociais e estudar on-line. “Eu uso muito a internet para aprender e pesquisar. Assisto às aulas on-line da faculdade também. Infelizmente, a distância das pessoas e essa mudança de modalidade trouxe alguns gatilhos.”

Dicas para os pais 

- Cuidado com o celular em sala de aula e nada de celular nas refeições. Na sala de aula, pode prejudicar o processo de aprendizagem. Caso seja realmente necessário levar o aparelho para o colégio, discuta as regras de utilização. Nas refeições, desencoraje o uso das telas.

- Evite que crianças e adolescentes utilizem o celular sozinhos no quarto e compartilhe com eles as senhas.

- Analise se os filmes ou jogos são adequados para a idade de seus filhos. Sente algumas vezes com eles para ver o que estão fazendo. É preciso ter acesso a todas as mídias sociais dos filhos. Isso não significa que você deva sufocá-los o tempo inteiro, a confiança mútua faz parte do processo. Mas é preciso acessar periodicamente e acompanhar o que está acontecendo na vida deles.

- Postergue ao máximo a idade de entrega de um smartphone para seu filho. Celulares não são brinquedos. Lembre-se: Quanto mais tarde, melhor. E, quando isso vier a ocorrer, defina, conjuntamente, as regras de utilização.

- Defina uma agenda pessoal diária de atividades para as crianças. Não autorize que seu filho tenha à disposição o telefone celular durante 24 horas. Essa agenda deve conter horários de estudo, de realização de atividades físicas ou de lazer e, finalmente, de alimentação e de sono.

- Contribuição em atividades domésticas, de acordo com a idade, também são bem-vindas! Defina dias, horários e quantidade de tempo em que podem ver filmes ou utilizar games.


Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

Saiba mais!

A exposição às telas digitais para crianças com menos de 2 anos de idade deve ser evitada. O contato prematuro pode inibir o desenvolvimento da linguagem e de algumas funções motoras.

Entre 2 e 5 anos, o tempo de exposição às mídias digitais deve ser de, no máximo, uma hora por dia e, preferencialmente, deve-se evitar o uso antes de dormir. Nessa fase, as crianças precisam das interações com a família para poder se desenvolver psicologicamente de forma sadia.

Entre 6 e 12 anos de idade, é aconselhável limitar o tempo de uso das telas (inclusive TV) para, no máximo, duas horas diárias. Após esse período, aumentam as chances do desenvolvimento de baixa autoestima, bullying, entre outros problemas de saúde mental.

Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

 

*Estagiárias sob a supervisão de Sibele Negromonte

 

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