Entenda por que dietas restritivas podem fazer mais mal do quem bem

Cerca de 95% das pessoas que fazem regimes restritivos voltam ao peso de antes ou até engordam mais. Especialista apontam o próprio tratamento como responsável por isso

 

A obesidade é uma doença, incluída na Classificação Estatística Internacional de Doenças e considerada fator de risco para outros diversos problemas. Mas, muitos especialistas defendem que o número na balança e a forma do corpo não deveriam ser suficientes para determinar o estado de saúde de alguém, e que o foco apenas na perda de peso não só seria ineficaz, como também prejudicial às pessoas.

Da forma como o excesso de peso é encarado (e tratado), com dietas restritivas, nenhum país conseguiu diminuir as taxas de obesidade a nível populacional, nos últimos 30 anos, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Na contramão disso, os números estão aumentando praticamente no mundo inteiro. Os tratamentos tradicionais, portanto, dieta, atividade física, remédios, além de não produzirem resultados a nível populacional, ainda estão trazendo prejuízos físicos, mentais e sociais.

Segundo a nutricionista Sophie Deram, doutora pelo departamento de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), estudos apontam que o próprio tratamento para o excesso de peso é o culpado pela onda de obesidade. Ele seria um dos maiores fatores de ganho de peso, pois modifica o comportamento alimentar e provoca o comer emocional. “Uma pessoa que está um pouco acima do peso, mas tranquila, que é jogada em uma dieta restritiva, pode desencadear compulsões alimentares, ou seja, piorar o quadro dela”, explica.

Em vez disso, ela sugere mudança no comportamento alimentar e no estilo de vida, sem foco no peso. “Tem muitas ferramentas práticas e técnicas sobre essa ciência de como mudar o comportamento alimentar, o estilo de vida. E está, cada vez mais claro, que se deve trabalhar a autonomia do paciente. “É um trabalho de reconexão, de ganhar autocompaixão, de ver que se machucou, de respeitar o corpo, e fazer o melhor pra si”, afirma.

A nutricionista comportamental Marcela Brum afirma que a restrição gera uma obsessão pelo alimento que se está restringindo. “Se a pessoa vai comer um bolo com a cabeça de que é só hoje e nunca mais, ela não vai comer só uma fatia, vai comer tudo que ela puder”, exemplifica. É o overeating, que, segundo a profissional, ainda vem acompanhado da sensação de culpa, de fracasso e de vergonha, sentimentos que fazem “chutar o balde”. A pessoa pode passar semanas no comer emocional. “Se eu disser que vou cortar seu chocolate amanhã, você não vai comer só um último pedaço, você vai fazer a despedida do chocolate”, provoca.

Além da questão comportamental, ela ressalta fatores fisiológicos. “O seu cérebro não entende que a comida está restrita, porque você quer emagrecer. Ele acha que está acontecendo a Terceira Guerra Mundial. Ele coloca uma sirene na sua cabeça mandando comer em qualquer oportunidade e ainda desacelera o metabolismo, para economizar energia. Quando a pessoa come, está com o metabolismo mais lento e na maior voracidade”, descreve.

Uma vida de dieta

Henrique França, 31 anos, servidor público, fez a primeira dieta restritiva aos 10. E, depois dela, foram muitas outras. Com ele, aconteciam exatamente as situações descritas por Marcela. Ele sempre teve uma percepção deturpada do corpo, mas, nos últimos anos, tenta reverter isso. “Tenho procurado acompanhamento com profissionais que têm uma abordagem mais holística, que entendem a questão da alimentação e nutrição de forma mais global, que têm a ver com as relações sociais, com nossos desejos, nosso emocional, e tenho conseguido me enxergar de forma mais positiva, mas ainda é uma relação difícil”, admite.

As dietas davam a ele resultados imediatos, mas, hoje, ele acredita que eram processos desrespeitosos com ele e com as próprias necessidades. Além de serem insustentáveis a longo prazo. “Depois, me gerava uma compulsão e eu voltava ao peso anterior, ou até ganhava mais”, relembra. Hoje, vê que nem ele nem os profissionais com quem tinha contato lidavam com a saúde dele, mas só com o peso. Passou por médicos que faziam análise superficial, não pediam exames e já responsabilizavam o peso pela queixa dele, qualquer que fosse.

Segundo a endocrinologista Cintia Cercato, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia Regional São Paulo, pesquisas mostram que apenas 5% das pessoas conseguem sustentar a perda de peso adquirida por meio de dietas restritivas. Outros 95% recuperam o peso, ou ganham até mais. Começa o famoso efeito sanfona. “Isso é ainda pior, porque a pessoa perde massa gorda e um pouco de massa magra também. Mas, quando recupera, recupera quase só a massa gorda, então, ainda piora a composição corporal”, explica Cintia.

Atualmente, Henrique procura uma conexão maior com o corpo e entender as necessidades dele e as reações dele de acordo com o que come e com a quantidade que come. “Eu tento ouvir meu corpo, mas, socialmente, a gente é condicionado a se guiar pelos estímulos externos, pelas diretrizes da sociedade e do mercado”, lamenta. Portanto, a tarefa não é fácil, mas, segundo ele, boa parte da pressão social vai embora.

Graças a esse processo, ele aprendeu a dosar melhor a quantidade de carne, por exemplo. “Eu já vinha percebendo, mas ficou ainda mais claro. Gosto muito de carne e, quando estou muito desconectado, como carne em excesso e isso tem um impacto muito ruim na minha digestão”, conta.

A atividade física, no entanto, ainda é um desafio maior para ele. “É muito difícil, para mim, estar em ambientes como academias. São lugares onde, ao longo da vida, me senti muito oprimido, por uma pressão estética muito forte”, afirma. Esse é mais um dos efeitos do estigma e do preconceito contra pessoas que estão acima do peso.


"Tenho procurado acompanhamento com profissionais que têm uma abordagem mais holística, que entendem a questão da alimentação e nutrição de forma mais global"
Henrique França, servidor público

Ataque ao número da balança

A endocrinologista Cintia Cercato garante que pessoas obesas ativas têm menor risco cardiovascular do que pessoas magras sedentárias. “Não é só uma questão de peso. O sedentarismo é um fator de risco muito maior. As pessoas com excesso de peso devem se cuidar, porque têm maior risco cardiovascular, mesmo com exames normais; o que não quer dizer que todo mundo tem que ser magro, que temos que cultuar a magreza”, afirma.

Ela explica que a obesidade, de fato, aumenta as chances de mais de 195 doenças, diabetes, alteração de triglicérides, asma, apneia do sono, irregularidade menstrual, ovários policísticos, o que precisa ser separado do estigma que a acompanha. “O grande problema é que existe uma ideia preconceituosa, como se fossem gulosas e preguiçosas. E tem muita gente obesa que é ativa e tem alimentação saudável. Existem diversas questões fisiopatológicas que levam à obesidade”, afirma.

A cronicidade da doença, no entanto, é o que, de acordo com a profissional, dificulta a adesão ao tratamento. “É uma doença crônica e ele deve ser crônico, contínuo. Um problema é a dificuldade das pessoas de o verem como de longo prazo”, afirma. Como consequência, o percentual de sucesso dele é baixo.

A auxiliar de saúde bucal Renata Barcelar, 35, afirma que aprendeu a se amar com o corpo que tem. Mas, é um esforço diário, em uma sociedade que a discrimina. “Outro dia, fui em uma loja de roupas comprar um presente para a minha sobrinha, e a vendedora me olhou como se eu fosse louca e perguntou se eu procurava algo pra mim”, relata. Para se defender, ela acabou fazendo uma piada sobre como aquelas roupas não lhe cobriam nem uma perna.

O ganho de peso veio na gravidez da filha. A partir daí, passou a ter vergonha de sair de casa, queria se esconder das pessoas e desenvolveu síndrome do pânico. Também começou a ter apneia do sono, a qual o pneumologista associou à obesidade. No entanto, depois de quatro anos de diversas dietas restritivas, de atividade física, de remédios naturais que prometiam emagrecer e de muito sofrimento, ela entrou na fila para uma cirurgia bariátrica. “Recebi laudo do cardiologista, do pneumologista, do psicólogo, do nutricionista e do endocrinologista”, conta. Apesar da ansiedade da espera pela cirurgia, hoje, sente-se melhor, consegue se olhar com mais carinho. Mas, toma antidepressivos para evitar recaídas.

No ano passado, ela foi convidada para fazer propaganda de uma loja de roupas plus size. Além de receber muitos elogios, as peças que veste são vendidas rapidamente. “Isso me fez muito bem, fez eu ver outro lado meu, da obesidade”, conta. Mesmo assim, ainda considera difícil não procurar defeitos em si no espelho ou em fotografias.

Com uma alimentação saudável e uma vida relativamente ativa, tentando fazer algumas caminhadas, Renata encontrou o próprio equilíbrio, mas ele ainda é muito vulnerável. Nas redes sociais, segue mulheres com corpos inalcançáveis, nem por ela, nem por ninguém, mas também segue as plus size. Voltou à terapia há alguns meses, depois da perda da mãe, e segue procurando estabilidade emocional e física.

Foco no comportamento

A nutricionista Marcela Brum lamenta que profissionais de saúde estejam focados em olhar o peso do paciente, em vez do todo. “Classificar uma pessoa, só pelo peso, como saudável ou não saudável é errôneo, porque faz com que muita gente nem procure atendimento médico. Tem pessoas que estão há anos sem ir ao ginecologista por isso. Sabe que, chegando lá, vão pedir pra emagrecer”, afirma. Para ela, isso vem de uma estrutura social gordofóbica.

Em vez disso, ela propõe trabalhar com outros parâmetros, que não o peso ou a forma física. “Imagina uma pessoa que vai ao nutricionista e, no primeiro mês, perde 5kg. A nutricionista dá parabéns. Ela volta pra casa feliz e continua as orientações. No outro mês, ela volta e não emagreceu nada. O nutricionista conta e pede pra continuar, na fé. Essa pessoa vai sair do consultório desestimulada e vai abandonar tudo que estava fazendo”, supõe Marcela.

Para ela, se a profissional focasse, desde o início na mudança de comportamento, o fim da história poderia ser diferente. “A gente precisa focar no que está na mão do paciente. Ele não pode determinar que vai perder 3kg. Peso, não está na mão do paciente determinar, mas comer vegetais, frutas, descansar, dormir bem, fazer atividade física está. Não deveríamos focar na consequência, que é a perda de peso, mas nos hábitos, temos que olhar esses parâmetros”, finaliza.

Nas redes sociais

Segundo Sophie Deram, pesquisas mostram que a maior parte das pessoas acima do peso que entram em um consultório, vai ser atendida por menos tempo, vai ser menos escutada e vai sair de lá com uma dieta restritiva, independentemente do problema que a levou a procurar o serviço de saúde. Sobre isso, a influenciadora digital escreveu nas redes:

Ju Romano (@ju_romano): “Não tem como questionar a saúde de um corpo gordo se você não questiona o próprio sistema de saúde que estigmatiza o corpo gordo. Não cabe aos fiscais de internet questionar um corpo que não é o seu, o corpo gordo não deve satisfações e MERECE RESPEITO e ACESSO. Só assim, dá pra começar a falar sobre saúde”

Arquivo pessoal - Henrique França desistiu de dietas restritivas e procurou profissionais que trabalhassem com a nutrição de uma forma global
Reprodução do Instagram - Ju Romano é influenciadora digital e fala sobre a opressão ao corpo gordo