A capital federal é abrigo de grandes monumentos, como a Catedral Metropolitana, o Complexo Cultural da República, o Palácio do Planalto e outras obras assinadas por Oscar Niemeyer. A cidade em forma de avião (ou borboleta) foi projetada pelo urbanista Lucio Costa e é Patrimônio Cultural da Humanidade desde dezembro de 1987. A forma como foram pensados os prédios possibilita uma visão sem igual do céu da cidade, e do horizonte, de todos os pontos do Plano Piloto. O olhar de cima também surpreende pela beleza, o eixo central desenhado em formato de avião tem seus encantos, como as famosas tesourinhas. A singularidade de Brasília é inspiração para uma produção cultural local muito característica.
Nos seus 60 anos de história, a capital tem inspirado diferentes expressões artísticas. A pulsante cena do rock, que marcou toda uma geração de brasilienses, teve início nos anos 1980, pelos corredores da Universidade de Brasília (UnB). Você deve se lembrar de Eduardo e Mônica, o casal que se conheceu em uma “festa estranha, com gente esquisita” e marcou de se encontrar no Parque da Cidade. Quem nos contou essa história de amor foi o grupo Legião Urbana. O shopping Conjunto Nacional também foi muito referenciado pela juventude roqueira nos anos 1980, como fez Capital Inicial em Anúncio de refrigerante. Plebe Rude tem até uma música chamada Brasília, na qual canta sobre as asas e eixos da cidade. A Torre de TV, a Rodoviária do Plano Piloto, e até o céu de Brasília também viraram poesia na voz dos artistas do reggae de Natiruts, a MPB de Djavan e de Ednardo.
A cidade aos olhos da moda
“Lucio Costa, enquanto urbanista, contribuiu para os grandes espaços vazios da cidade; Niemeyer, com as formas inusitadas dos edifícios e monumentos, e Athos Bulcão, com seus padrões geométricos e painéis de azulejos como uma estamparia”, detalha a professora da área de vestuário e design de moda do Instituto Federal de Brasília (IFB) Juliana Aragão Lemes da Costa.
“A cidade é um ‘Grande silêncio visual’ (Clarice Lispector) povoado por obras icônicas, não só de monumentos, mas de construções cotidianas marcantes, pontes, tesourinhas, residências. A cidade apresenta uma relação corpo-espaço muito singular, uma alteração da nossa referência natural de escala, proporção e senso estético. Quando a cidade é uma obra de arte, ela dá algo para nós que não estamos acostumados a ver, e essa sensação de olhar para algo tão excêntrico é uma oportunidade para a criação”, destaca a professora.
Brasília rende versos, prosa, filme, fotografia, música e moda, também. Marcas como Calvin Klein (2013), Guy Laroche (2013) e Louis Vuitton (2017) utilizaram as obras modernistas de Oscar Niemeyer como inspiração em suas coleções. Juliana Aragão Lemes da Costa explica que é comum a criação de moda com inspirações arquitetônicas. “A moda e a arquitetura, nas palavras de Martin Margiela, são ofícios que se encontram no pensar sobre o corpo, como proteger e abrigá-lo. Desse modo, quando há o processo criativo de moda, há momentos iniciais de coleta de referências de inspiração. Nesse momento, é possível que o espaço físico arquitetônico, no qual o corpo vive e age, seja uma referência de conexão criativa, pois o corpo está nas construções, paisagens e na roupa”, explica Juliana.
Estilistas como Martin Margiela, Rei Kawakubo, Tom Ford, Raf Simons e Hussein Chalayan utilizam-se dessas referências para criar. A aproximação da moda com o mundo da produção industrial foi impulsionada pelo movimento modernista. “Era um movimento que demonstrava interesse na produção em escala industrial, de forma a democratizar projetos que unissem beleza e funcionalidade”, conta a designer e consultora de moda e CEO da Escola de Moda e Negócios Fashion Campus (@fashioncampuscurso), Mábel De Bonis.
Exemplo desse movimento foi a escola de artes Staatliches Bauhaus, conhecida como Bauhaus, um centro alemão de artes aplicadas, sobretudo das artes plásticas, arquitetura e design, e que influenciou a estética moderna. Formada por um grupo eclético de artistas industriais, engenheiros, arquitetos, pintores, artesãos e designers, a Bauhaus foi um centro de apresentação das novas tendências artísticas modernas.
Entre as principais características da escola estavam: união da arte e do artesanato; uso de materiais inovadores (madeira, aço, vidro), funcionalidade dos produtos artísticos, arquitetura e urbanismo, influência do construtivismo. “É, especificamente, nos fundamentos de Bauhaus, que eu vejo o modernismo mais presente em criações de moda”, analisa a consultora Mábel.
A escola focou em elementos como escultura, artesanato, cerâmica, tecelagem, metalurgia, marcenaria. Essas ideias modernas influenciaram diretamente o planejamento da “cidade sonhada”.
Inspiração no Planalto
Mábel De Bonis entende que inspiração tem a ver com algo que atinge o emocional de quem está criando, e é muito comum essa inspiração vir das cidades. “No caso de Brasília, essas criações são como um elogio à beleza, quanto a alguma motivação de crítica social. Moda não é simplesmente a transformação de tecidos em roupas, é uma das muitas formas de expressão artística humana”, conta a designer e consultora de moda.
Ao longo dos anos, percebemos o surgimento de inúmeros criadores que utilizam referências locais em sua produção. Como Cida Carvalho, Sandra Lima, Romildo Nascimento, Laletá, Ivson Samabourque, Viviane Kulczynski, Guilda, Vitorino Campos, entre muitos outros. “Interessante observar que cada um deles tem uma visão única da cidade e reproduz essa visão em suas criações. O estilista ao buscar inspiração, confere à sua coleção um caráter único, empresta a ela seu envolvimento emocional e agrega valor às suas peças”, acrescenta Mábel De Bonis.
A designer conta que, se for para escolher um monumento mais inspirador, a Catedral ganha, mas há inspiração até na natureza da capital. “Grafites pela cidade, o céu azul em contraste com o amarelo na florada dos ipês, as diversas nuances de cor no Lago Paranoá, o cinza do concreto aparente, os ângulos e curvas modernistas que pedem fotografias e desenhos”, afirma. “Enfim, são muitas as possibilidades.”
A professora Juliana Aragão também vê beleza no conjunto como um todo. “Minhas grandes inspirações da cidade são as quadras residenciais. Gosto dos espaços vazios dos pilotis e como eles permitem caminhar entre os edifícios, da composição geométrica que se forma entre os pilares, janelas, brises; e, por fim, dos painéis artísticos e do jogo de luz e sombra que se formam nos cobogós”, diz a professora.
Conheça algumas marcas que transformam a cidade em moda e acessórios:
Design com afeto
A cantora e designer Thaís Fread, 42, nasceu em Brasília e sempre achou o cenário da capital inspirador. “Brasília é uma grande inspiração para mim. E meu trabalho de designer está muito ligado à arquitetura da cidade. As obras do Niemeyer e as criações do Athos Bulcão são as que mais me causam impacto”, comenta a designer.
A brasiliense conta que a conexão com a cidade flui de forma muito natural, assim como o processo de criação de suas joias. “Lembro-me de, na minha infância e adolescência, visitar muito os monumentos. Também já fui bailarina e me apresentei várias vezes no Teatro Nacional. Meus pais me levavam para escorregar na rampa ao lado do Congresso, para brincar no Parque da Cidade. Tudo isso me traz uma memória afetiva muito boa e acho que é por isso que a arquitetura de Brasília se manifesta tão fortemente nas minhas criações”, relata Thaís.
Após retornar para Brasília, depois de alguns anos morando no Rio de Janeiro, a artista teve de se reinventar para encontrar outra fonte de renda. “Quando voltei, retomei a minha carreira de cantora, mas com o tempo vi que precisava de uma outra atividade para complementar a minha renda. Quando eu morava no Rio, tinha criado alguns acessórios e resolvi retomar esse trabalho. Mas, desta vez, eu desenvolvi peças que tinham uma ligação muito forte com a arquitetura de Brasília”, complementou a designer.
Assinada com o seu próprio nome, a Thaís Fread — Acessórios (@thaisfread) tem sete anos de existência. A marca registrada das produções são as formas geométricas, os círculos somados às linhas retas dão um toque de modernidade às joias, que traduzem, de forma impecável, a singularidade da cidade.
O monumento favorito de Thaís é o Teatro Nacional Claudio Santoro. “A parede lateral do teatro, que foi criada pelo Athos Bulcão, a pedido do Oscar Niemeyer, me inspirou em várias peças que criei. Pela memória afetiva e pela estética está muito conectada com a linguagem geométrica do meu trabalho”, finaliza a artista.
Descobrindo outras artes
“Sou brasiliense, pioneira, desde 1 ano de idade, nascida em Minas Gerais”, conta Leticia Brasileiro, 61 anos, designer, com formação em artes plásticas pela Faculdade Dulcina de Moraes. “Cresci em Brasília, tenho uma identidade muito forte com a capital. Sua arquitetura sempre despertou meu olhar para a arte e a beleza. Suas formas, cores, seus monumentos, esculturas, vitrais, tudo inspira e influencia o processo criativo. Ter as obras de Lucio Costa, Athos Bulcão, Oscar Niemeyer, Marianne Peretti, Ceschiatti, Burle Marx, Lelé Filgueiras, só para citar alguns, é inspirador.”
Há sete anos, Leticia juntou-se com duas amigas para dar vida à marca Laletá (@laletabrasil). “A marca surgiu da inquietude de uma designer gráfica que queria explorar outras artes. Com alguns anos acumulando imagens de Brasília, convidei Thaiza Barros, formada em moda, para produzirmos camisetas explorando a arquitetura da cidade. Fez parte também desse sonho Lais Barros, que seria nossa administradora”, conta a designer. Em 2016, Thaiza e Lais deixaram para realizar outros sonhos.
A Laletá produz vestuário com estamparias inspiradas na cidade. Leticia conta que é da observação da cidade que surgem os seus projetos. “Vou registrando formas e imagens quando circulo pela cidade e quando começo a criação de uma nova coleção, busco elas no meu ‘HD’ e, a partir daí, pesquiso, fotografo, desenho, junto todas as referências e desenvolvo a ideia, até chegar na estampa desejada”, explica.
Para ela, o equilíbrio das formas com natureza é o que dá à cidade de Brasília a mística de inspiração para tantos criadores. “Não tenho um monumento mais inspirador, o que influencia é o conjunto e sua integração com a cidade e a natureza: formas, curvas, cores, movimento, fluidez, amplitude”, afirma Leticia.
Amor de infância
A designer de joias e ourives, Sarah Magalhães, 33 anos, é idealizadora da marca de joias feitas à mão Urbanoise (@urbanoise), que produz brincos, gargantilhas inspirados, entre outros, em grandes monumentos da capital. “Como sou estudante de arquitetura e uma brasiliense nata, sempre tive uma relação de amor com a cidade. Tenho memórias muito especiais dos anos 1990, de quando a minha mãe me levava para passear, de como a cidade era tão calma e charmosa, poucas pessoas, um clima bem gostoso. Essas lembranças nunca saem da minha mente, acho que isso contribuiu também para a minha inspiração.”
Sarah conta que desde criança tem facilidade para trabalhos manuais. Ela começou em 2016, criando acessórios em couro, mas a designer sentia falta de alguma coisa. “Quando a minha filha nasceu, em 2018, eu estava aflita procurando algo para trabalhar, de uma forma que eu pudesse ficar em casa, pois o mercado de trabalho é muito cruel com mulheres que têm filhos. Então, tive a ideia de reformular a Urbanoise e revender joias em prata em um estilo minimalista. Participei da minha primeira feira, o Picnik, e foi um sucesso. Desde então, a marca foi ficando conhecida, conta a empresária.
À medida em que a marca crescia, a dificuldade para encontrar fábricas que tinham a cara da Urbanoise aumentava. “Como era venda no atacado de uma fábrica, muita gente comprava e esgotava ou, às vezes, não saiam as peças no estilo que eu queria. Então, decidi que precisava fazer o curso de ourivesaria para fazer as joias com a minha identidade, sem depender de terceiros. E, em janeiro de 2019, a Urbanoise virou uma marca 100% autoral, comenta.
A designer explica que os desenhos dos monumentos são parte do seu processo criativo. “Transformar as formas da cidade em joia é um processo que requer muita calma e ideias esboçadas para um resultado final de qualidade.” Entre as construções da capital, Sarah seleciona o Teatro Nacional como o mais inspirador. “Foi um dos primeiros a serem construídos na cidade. Amo a característica modernista e a perspectiva em que ele (o teatro) foi erguido. O uso de blocos de concreto e vidros dá tudo o que ele precisa para ser incrivelmente belo.”
*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira
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