As mulheres têm ciclos. Hormônios fazem com que, ao longo de um mês, elas passem por mudanças físicas e emocionais. Mas, em uma sociedade que exige que as pessoas estejam sempre bem e eficientes, elas são obrigadas a atropelar essas exigências. Sofrem com cólicas menstruais, veem-se diante de termos pejorativos como TPM (a tensão pré-menstrual) e, muitas vezes, são ensinadas a sentirem nojo da própria menstruação.
Algumas mulheres, no entanto, tentam reverter essa lógica. Procuram adequar a rotina ao ciclo, conectar-se à própria natureza e se ver como parte dela. Para tanto, usam coletor menstrual e calcinhas absorventes — em vez de absorventes descartáveis — e até devolvem sangue à terra, em um ritual que chamam de “plantar a lua”. E, principalmente, procuram reconhecer os próprios padrões de comportamento ao longo do ciclo por meio de anotações.
Os ciclos femininos já estiveram diretamente ligados à natureza. No entanto, essa ligação foi perdida por causa da tecnologia e das mudanças culturais. “Arqueólogos e historiadores desconfiam que, inicialmente, a ovulação era condicionada à luz da lua. Como não existia luz elétrica, quando a lua ficava cheia, a maior disponibilidade de luz fazia as mulheres ovularem. Consequentemente, durava o ciclo lunar”, explica Nikole França, terapeuta integrativa em fitoginecologia.
Ela explica que isso não significa que a mulher precise tentar, novamente, regular o próprio ciclo com o da lua — ela é apenas um símbolo sobre como funcionam as fases femininas. “Serve para entender qual é a tendência das nossas energias. E os ciclos se transformam, também. Justamente por isso, é uma ferramenta interessante de entender o mundo interno. Por que eu troquei de lua? Os padrões existem dentro das subjetividades individuais, mas, quanto mais conectada e se conhecendo, menos misteriosas as flutuações serão”, afirma.
Plantar a lua
Mel Torezani, 22 anos, terapeuta holística e tutora nutrimind, achava nojento menstruar. Era um assunto sobre o qual a família dela simplesmente não conversava. Hoje, usa coletor menstrual, absorvente de pano e planta a lua dela. Cientificamente, o sangue é um ótimo fertilizante. O nitrogênio, o potássio e o fósforo presentes nele são bom nutrientes para as plantas. “Ritualizar a minha menstruação, algo que estava dentro de mim, me faz ver o sangue como algo sagrado. E como uma oportunidade de fluir. A gente pode imaginar que sai junto nossas dores, nossas questões mal resolvidas.”
A mandala lunar ajudou Mel nesse processo. Fez com que se reconectasse com seus ciclos, com seu útero. “Foi quando eu vi que ele não gerava só sangue, gerava vida. Era um centro de poder. Parei de ver como algo fisiológico, mas como algo sagrado, que eu deveria honrar”, orgulha-se. A terapeuta aprendeu a lidar com todos os sentimentos que vêm com os ciclos. “Antes da minha menstruação chegar, eu ficava superestressada. Hoje, procuro fazer um escalda-pés, meditação, banho de assento. E fazer desse momento algo melhor de ser vivido.”
O ritual de plantar a lua é inspirado em uma profecia Lakota — etnia indígena norte-americana —, em um tempo em que o sangue era sagrado, e não nojento. Segundo ela, se todas as mulheres devolverem seu sangue para a terra, não haverá mais tanta violência. Já que o sangue da menstruação não volta, então, a terra demanda das pessoas e dos animais.
Nikole França explica que a ideia não está ligada a nenhuma crença espiritual, mas é algo que ela encoraja, porque é sustentável, já que o sangue tem nutrientes para as plantas. “É saudável lidar com o sangue e encaminhar de volta para a natureza, com gratidão, por estar saudável, viva”, afirma.
Para ela, o sangue menstrual reflete um eu que morreu, a mulher que viveu o último ciclo com desafios, transformações. “Você, então, entrega aquilo para a terra transmutar aquela energia, agradecendo pelo último ciclo e colocando as intenções para o próximo. A gente ritualiza nossa vida, ajuda a entrar em contato com nossas vozes interiores, a pensar”, recomenda.
Seguindo a agenda lunar
A agenda lunar é uma ferramenta de autoconhecimento. Além de poder ser usada como um diário, ela tem diagramas ou mandalas lunares. Por meio de cores e símbolos, a mulher pode preenchê-la de acordo com as emoções e mudanças fisiológicas no corpo. Mais perto do centro da mandala, a ideia é marcar o primeiro dia da menstruação e pintar de vermelho mais claro e mais escuro, a depender do fluxo. No restante, é possível escolher cores que indicam desânimo, felicidade, estresse, energia ou o que quiser avaliar. Ao longo dos meses, é possível identificar padrões de comportamento dentro do ciclo.
Juliana Simões, 26, publicitária, tem dificuldade de anotar tudo, mas começou a usar depois de participar de algumas rodas de conversa e de oficinas com outras mulheres. O que ela mais gostou foi da possibilidade de não só anotar aspectos práticos, como a data da menstruação, mas, também, emocionais. “Eu adaptei à minha realidade. É um processo de autoconhecimento e consciência, em que a gente vai reconhecendo padrões nossos”, relata.
A jovem nunca teve aversão à menstruação nem à cólica. Mas, com a aproximação desse período, sentia-se desanimada. “E eu não entendia o porquê. Ficava procurando motivos externos.” Hoje, ela se sente muito mais consciente do que era antes sobre o próprio ciclo e sobre tudo que o acompanha. “Estamos acostumados a menstruar, a naturalizar aquilo, mas não a refletir sobre nem a prestar atenção. E, quando começa, a gente se sente mais conectada”, afirma.
Mudança de vida
Para Juliana, o autoconhecimento e a consciência do corpo e do momento em que ele está trazem facilidade para lidar com as coisas. “A gente consegue trabalhar e entender melhor os nossos sentimentos. Se estou mais desanimada para fazer tal coisa, eu respeito, respeito meus limites. Trata-se de perceber o que nosso corpo diz.”
Além disso, o estilo de vida que a agenda trouxe promoveu mais mudanças na vida de Juliana, que, hoje, tem contato com grupos de pessoas que falam muito sobre o feminino, o apoio de umas às outras e, também, sobre sustentabilidade. “Eu me apeguei bastante a causas sustentáveis; antes, usava absorvente descartável, passei a usar coletor menstrual e calcinha absorvente, que é melhor para o meio ambiente e para nossa saúde.”
Adaptação da rotina ao ciclo interno
Marina Miranda, 30 anos, ativista de projetos colaborativos, conta que adaptou cerca de 90% da rotina ao próprio ciclo. Isso não teria sido possível se não trabalhasse com o parceiro nem tivesse passado por um processo de autoconhecimento com a agenda lunar. O período menstrual vinha com muitas cólica. “Não é que tenha deixado de sentir dor completamente, mas passei a respeitar meu ciclo, e isso fez com que melhorasse bastante. Adaptei as planilhas financeiras ao meu calendário lunar; não seguimos o calendário gregoriano.” E acredita que é possível para todas.
“Eu tinha muita espinha, cólica, nojo do próprio sangue”, relembra Marina, que sofria com a menstruação. Hoje, entende que estava tudo interconectado: “A gente sente dor porque é o corpo mostrando que algo está errado. Esse contexto em que temos que atropelar todos os nossos ciclos para encaixar reuniões, trabalhos, em momentos e datas sem nenhuma conexão com o que eu estou passando nos derruba. Se eu estou na minha lua nova, menstruada, eu preciso de introspecção. Tudo o que eu puder fazer para ficar recolhida, melhor”.
Herança intergeracional
Para Marina, a agenda lunar serve para que a mulher não fique desconectada sem saber quando vai menstruar, por que está estressada, por que está triste. Ela começou a usá-la para tentar tornar a vida mais leve. “Queria entender se as vezes que eu brigava com meu parceiro tinha algo a ver com meus ciclos internos. Queria reconhecer meus padrões: os positivos e os negativos”, relembra. Com consciência, ela acredita que a mulher pode transmutar.
Ela gostou tanto, que deu de presente para a irmã, conversou a respeito com a mãe. Tentou fazer com que todas as mulheres de quem gosta conhecessem. Nem todas deram bola, mas ela gostou de tentar. “Cada mulher está no seu processo, na sua descoberta. Se eu puder passar para a frente, vai ser lindo. Eu uso como uma ferramenta, um presente que vou deixar para as minhas netas. Uma cura intergeracional. É um trabalho bem interno, a gente vai fazendo e o mundo vai se abrindo.”
As luas femininas
Nova: fase menstrual. Arquétipo da bruxa anciã, do inverno. É necessário se recolher para viver o que se passa dentro de si e deixar tudo ir com o sangue.
Crescente: fase pré-ovulatória. Arquétipo da donzela, da primavera. Ideias devem ir para o papel e do papel para a ação, para que a energia não seja desperdiçada.
Cheia: ovulação. Arquétipo da mãe, do verão. Criatividade e produtividade ficam em alta.
Minguante: pré-menstrual. Arquétipo da feiticeira. Momento de introspecção, quietude. A tensão vem da falta de espaço para parar e se observar.
Acesso para todas
Uma pesquisa de 2018 da marca de absorventes Sempre Livre apontou que 22% das meninas de 12 a 14 anos no Brasil não têm acesso a produtos higiênicos adequados durante o período menstrual. A porcentagem sobe para 26% entre as de 15 a 17 anos. Além disso, as adolescentes costumam perder dias de aula por conta do período menstrual.
Em 2018, a Escócia foi o primeiro país a disponibilizar de forma gratuita absorventes em escolas e universidades. Na última terça-feira, foi aprovada uma lei no país que estabelece que os produtos estejam disponíveis gratuitamente em locais previamente designados, como centros comunitários, associações juvenis e farmácias.
O tabu (e a negação) da menstruação
A terapeuta Kali Dasa, 48, detestava menstruar. Tomava remédios ininterruptamente para evitar essa fase natural do ciclo. Sentia muitas cólicas. Sofria. “Há uns oito anos, senti o chamado de compreender que havia muito mais no fato de a mulher ter o poder de gerar vida, criar vida”, conta. Passou a conversar com outras mulheres, procurou entender o próprio ciclo, e as coisas mudaram: “Vi que a menstruação fazia parte do entendimento de como ser mulher é maravilhoso”.
Durante o período menstrual, ela se sentia menos eficiente. Parecia que a própria capacidade diminuía e isso lhe fazia mal. “Hoje, entendo que é um momento de introspecção. Mesmo que a gente tenha que trabalhar, ansiamos por recolhimento, então, choramos, sofremos, porque não estamos conseguindo nos recolher. Parei de sentir a cólica como antes, porque aí comecei a estudar ervas”, relata.
A terapeuta integrativa em fitoginecologia Nikole França explica que é cobrado que as pessoas sejam lineares e estejam sempre dispostos a produzir. “Quando a gente não está, por qualquer razão, independentemente de ser mulher, somos recriminados. E quem nasce em um corpo que menstrua tem uma carga fixa imensa, um momento do ciclo em que você sabe que não estará disponível. Se as pessoas aceitassem que a vida não é linear, é cíclica, nos desenvolveríamos psicologicamente.”
Menopausa
Kali descreve como se sente durante o período menstrual: “É visceral a sensação do recolhimento, de não falar com ninguém. Não é depressão ou ser antissocial. É um momento mágico, porque, quando a gente quer se conhecer, tem acesso a momentos de sabedoria. É um portal que abre para dentro da gente”. Consciente disso, conseguiu adaptar um pouco a rotina. No primeiro dia de sangramento, procura não fazer atendimentos, fica quieta e não encontra pessoas.
Fazer as pazes com a própria menstruação permitiu que Kali vivesse melhor a fase que se aproxima na vida dela: a menopausa. “Culturalmente, é um estigma, mas toda mulher vai chegar na menopausa naturalmente ou quimicamente. Mas é um medo, porque dizem que resseca tudo, cai cabelo, aumenta a osteoporose, diminui a libido. Eu sou muito grata por ter encontrado esse caminho de volta para mim, porque eu entendo que meus ciclos continuam, não vou deixar de ser mulher, só não vamos sangrar. Esse período da menopausa muitos chamam de ‘plenipausa’: é um auge de sabedoria, experiência de vida, ano após ano”, agradece.
De mãe para filha
Fernanda Bueno, 41, analista corporal e artesã, sempre quis ter uma relação diferente com as filhas da que tinha tido com a mãe. “Aos 17 anos, fui mãe solteira por não conhecer os meus ciclos. Minha mãe não conversava comigo. Uma vez, achei uma camisinha e ela brigou comigo, disse que era balão e reclamou que eu era muito curiosa”, relembra. Com a primeira filha, pesquisou muito para ajudá-la no período da puberdade.
Há alguns anos, durante uma meditação, conta que sentiu o que descreve como uma experiência metafísica. “Era como se eu sonhasse acordada. Uma mulher me entregava um coração pulsando”, conta. No mesmo dia, a filha mais nova, Sofia, foi até a mãe contar, toda feliz, que havia menstruado. Ela interpretou que deveria fazer algum ritual com a filha pela menarca.
Pouco tempo depois, foi convidada a participar de uma roda de mulheres. “Entendi que tinha esse movimento de mulheres que falavam sobre o sagrado feminino”, conta. Foi o grupo, então, que fez o ritual para abençoar Sofia, com banho de ervas, e a menina entrou nessa cultura.
Fernanda, por meio da agenda lunar, anotando o que sentia ao longo do próprio ciclo, entendeu várias coisas sobre si. “Percebo que, nos momentos em que minhas emoções estão mais conturbadas, a menstruação é mais dolorida e abundante. E dentro da minha vida inteira, meu ciclo era muito dolorido, intenso, cheio de endométrio, e eu relaciono com a minha história de vida, com relacionamentos abusivos”, conta.
Agora, perto da menopausa, ela, que queria ter bem mais filhos do que os três gerados, procura focar em nos planos: uma nova profissão, cuidar de futuros netos, fazer assistência voluntária.
Para evitar que Sofia só descobrisse tudo isso mais velha, todo ano, Fernanda lhe presenteia com uma agenda lunar. “Hoje, ela é uma menina dentro dessa cultura. Usa absorventes laváveis, mesmo com mulheres mais tradicionais da família sendo contra, achando nojento. Ela argumenta e defende”, orgulha-se a mãe.