Especial

Unidos por uma causa

As dificuldades impostas pela pandemia levaram à criação de iniciativas que buscam reunir, em uma mesma plataforma, produtores locais prontos para comercializar, de forma on-line, sua criação

A união, mesmo que de longe, on-line, de máscara, é fundamental para minimizar os impactos negativos da pandemia do novo coronavírus. Ela é uma das responsáveis pela continuidade da raça humana desde os tempos mais longínquos. Foi o instinto de sobrevivência que fez com que os primeiros grupos sociais se formassem. Hoje, essa união se faz tão necessária quanto naquele período, mas vem em outros moldes. No espírito de autoproteção, surgiram por Brasília diversas iniciativas que reúnem produtores locais, criando espécies de feiras on-line que priorizam os produtos nascidos e criados na capital.

Entre essas plataformas está o Mercado Local. No papel, ele nasceu bem antes da pandemia. E, quando ocorreu o fechamento do comércio, os criadores viram a necessidade de não só aumentar como adiantar a inauguração para julho. Um dos três sócios-fundadores, Augusto Gouveia Fontes, 29 anos, conta que a ideia é facilitar acesso aos produtores locais. “Sabemos que Brasília tem esse movimento de incentivo, mas era difícil encontrar tudo em um lugar só. Daí, surgiu a ideia dessa grande loja on-line.”

Augusto acredita que, no isolamento, o movimento de valorização da produção da capital se intensificou, além de ter ocorrido uma grande migração para o comércio on-line, até mesmo de pessoas que nunca tinham feito esse tipo de compra antes.

A demanda por parte dos produtores também cresceu. Os 10 cadastrados do início do Mercado Local logo se transformaram em 30, passando por todo tipo de categoria, desde alimentos, decoração até cosméticos.

Os sócios, que hoje formam uma equipe de cinco pessoas, garantem que a inclusão é um dos focos da plataforma — todo o tipo de artesão, empreendedor e produtor do DF que queira ter presença on-line pode se cadastrar. Em conversas com os vendedores, Augusto conta que a maior dificuldade eram as entregas. “Muitos deles queriam participar, mas não tinham como entregar os produtos. A partir disso, decidimos incluir a entrega nos nossos serviços”, conta.

Apoio logístico

Com um armazém para acomodar os artigos, os produtores não precisam se deslocar sempre que fazem uma venda — a mercadoria de todos fica concentrada em um único espaço, o que facilita as entregas e até as compras de mais de uma loja ao mesmo tempo.

Augusto destaca que o foco no comércio local permite não só a valorização e o auxílio aos micro e pequenos empreendedores, mas, também, uma divulgação de itens que antes não seriam vistos. “Muitas vezes, existe um produto que atende ao lado da sua casa e você se desloca para mais longe para comprar outro que não tem a mesma qualidade.”

Além de fortalecer o comércio e gerar empregos, um dos focos do Mercado Local é o cuidado com a sustentabilidade e o consumo consciente. Produtos artesanais, com menos conservantes e mais saudáveis, são uma constante na plataforma. “É uma corrente. É muito importante ver a nossa comunidade crescer e as pessoas que precisam comprar esse ou aquele item aproveitando a necessidade para ajudar o próximo, comprando de quem faz e exercitando um consumo consciente”, ressalta.

Brasiliense, assim como os sócios, Augusto acredita que a iniciativa é uma das formas de cuidar da própria casa, da cidade em que nasceu e cresceu. Para ele, ajudar a comunidade é uma das formas de cultivar a sensação de dever cumprido, devolvendo tudo que a cidade já proporcionou.

O site conta, hoje, com um aplicativo para Android e se prepara para lançar a versão para IOS. Os preparativos para o Natal também estão a todo vapor, com cupons e ofertas.

Se não vou à feira, ela vem até mim!

Nos últimos anos, Brasília viu nascer diversas feiras e eventos ao ar livre nos quais era possível expor e vender todo tipo de produto autoral, além, é claro, de comer bem e consumir entretenimento brasiliense de qualidade. A necessidade crucial do isolamento, no entanto, tirou o prazer de passar a tarde no Parque da Cidade ou no Eixão, descobrindo e conhecendo os sabores e valores da nossa cidade. Mas nem a covid-19 parou as criadoras da Feirinha do Quadrado.

Antes de ser feira, ela foi o blog Quadrado, criado em 2012 pelas jornalistas Carolina Nogueira, 44, e Daniella Cronemberger, 41, com o intuito de debater o uso e a ocupação da cidade. O blog virou site, o engajamento cresceu e as conversas, que começaram no on-line, migraram para o “mundo real”.

Os encontros de entusiastas dos inúmeros cafés da cidade, artesãos, artistas e pequenos empreendedores logo se tornaram espaços para exposições, shows e workshops. Em 2016, ocorreu a primeira feirinha, no Ernesto Café. Em 2018, com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), deu um passo além e aconteceu no Museu Vivo da Memória Candanga, expandindo o debate para além do Plano Piloto e permitindo que muitas pessoas conhecessem o espaço, uma riqueza da nossa cidade.

O sucesso se repetiria em 2019, mas o FAC foi cancelado. Em fevereiro de 2020, ocorreu a reativação dos projetos do ano passado, porém, pouco tempo depois, a pandemia foi decretada e a feirinha se tornou inviável. Tudo parado novamente e os produtores locais precisando mais do que nunca do apoio da cidade.

Ver os recursos parados de um lado e a população precisando daquele suporte financeiro foi o que motivou Carolina e Daniella a não esperar o ano que vem para tocar o projeto. “A cidade precisava continuar acontecendo, as pessoas precisavam do dinheiro e ele estava ali. Dani é mais pragmática e foi quem nos impulsionou a fazer tudo on-line”, lembra Carolina.

Assim, em 2020, o Quadrado fez o caminho inverso e saiu do mundo físico, voltando para o on-line, onde nasceu. Para manter o aspecto afetivo e aconchegante do projeto, o planejamento começou com a inclusão da comunidade por meio das redes sociais.

Fora do Plano

Foram escolhidos 50 expositores de 11 regiões administrativas que têm seus produtos expostos desde o dia 14 de novembro na plataforma, que fica no ar até 20 de dezembro. Além de comprar os presentes de Natal, os brasilienses poderão acompanhar lives com debates e shows, como o da banda Samba Urgente, que arrastou multidões na cidade no ano passado. A renda será inteiramente dos empreendedores.

“Apesar da tristeza de não termos o calor humano, o formato on-line nos proporcionou muitas coisas que não sei se conseguiríamos fazer presencialmente. Demos passos mais largos nesse olhar pela cidade, chegamos mais longe na RAs e temos visões diferentes nos debates. Não temos como comemorar em meio a uma pandemia, mas conseguimos trazer algo de bom para as pessoas e a cidade e nos reinventar”, observa Carolina.

O projeto também traz um guia on-line do Museu Vivo da Memória Candanga, além de oficinas virtuais e gratuitas com artesãos do museu.

Um espaço exclusivo para os artesãos

Outra iniciativa que nasceu da cidade cuidando de si mesma foi o Artesanato Virtual de Brasília. Criado em parceria pela Secretaria de Turismo do DF e a Federação das Associações dos Artesãos do DF e Entorno (Faarte-DF) e lançado em março, o projeto reúne mais de 400 cadastros.

Com o apoio da plataforma brasiliense Square City, o site reúne os artesãos e cada um tem a sua loja on-line, onde todos os seus produtos ficam concentrados. Além disso, o cadastro e a permanência no site não têm nenhum custo para o artesão. A dificuldade das entregas também deixa de existir, uma vez que o site disponibiliza motoboys, que pegam e entregam os produtos.

Segundo o artesão e presidente da Faart, Hebert Tavares de Amorim, 47, a vontade de proporcionar um espaço on-line para o artesanato da cidade já existia e foi acelerado pela pandemia e a necessidade urgente dos trabalhadores, que recebem ajuda e cursos para montarem a própria loja virtual.

O artesão ressalta que a vitrine virtual permite que as pessoas conheçam um pouco mais sobre o que está perto e até mesmo mais longe, onde ele não iria normalmente. “Ela nos permite mostrar o que a cidade tem a oferecer. É possível descobrir que sua vizinha vende um bolo maravilhoso e você perdia tempo indo a uma padaria distante e que não oferecia um da mesma qualidade. Além disso, torna-se possível descobrir artesanato na região administrativa mais distante e não somente na Torre de TV.”

Hebert acrescenta que a plataforma traz uma mudança na visão do consumidor, que, muitas vezes, enxerga o artesanato apenas como lembrancinhas e itens de decoração. Ele acredita que a presença on-line vai ajudar a mostrar que, “além da beleza, o artesanato traz a funcionalidade, desde panos de prato até móveis, passando por todo tipo de utensílio para a casa”.

Apaixonado pelo trabalho manual, Hebert nasceu no dia do artesão, 19 de março, e em uma família com uma longa história com o artesanato. Aos 6 anos, já ajudava a mãe e a avó a criar colchas. Para ele, ver a valorização desse trabalho é a realização de um sonho.

Segundo Hebert, as feiras de artesanato de Brasília e os trabalhos manuais movimentam mais de R$ 20 milhões por mês e 90% dos trabalhadores são mulheres. “Neste momento em que o desemprego se intensificou e tanta gente precisou buscar alternativas, a valorização do nosso mercado torna-se ainda mais importante e necessária. O artesão ter um espaço sete dias por semana e 24 horas por dia é um avanço enorme.”

Os orgânicos do Mangút

Em uma disciplina do curso de engenharia de produção da Universidade de Brasília (UnB), um grupo de sete alunos, coordenado pelo professor Sanderson Barbalho, criou o Mangút, um site que reúne produtores de orgânicos de Brasília para auxiliar as vendas no período de isolamento.

A iniciativa, assim como diversas outras, foi pensada pré-pandemia e tornou-se realidade diante da necessidade premente da população. O Mangút saiu do papel após ser contemplado em um edital do grupo Silo — Arte e Latitude Rural, organização da sociedade civil que se dedica a acolher e promover projetos culturais em zonas rurais.

O edital buscava incentivar iniciativas dedicadas a diminuir os impactos causados pelo novo coronavírus nos meios urbano e rural. “Quando fomos selecionados, alunos de outros cursos uniram-se para nos ajudar a projetar tudo. Conseguimos sair do zero para uma plataforma funcional em uma semana. O trabalho começava às 5h da manhã e não tinha hora para acabar, mas foi muito legal”, lembra o professor.

Com o apoio financeiro do Silo, o espaço é disponibilizado de forma gratuita aos produtores orgânicos. E Sanderson ressalta a importância de incentivar a alimentação da terra e livre de agrotóxicos, daí o nome do projeto — a expressão Mangút é um retorno às origens, sendo o nome ancestral que os povos indígenas brasileiros usavam para “alimentação”.

Para entrar na plataforma, os produtores fazem um cadastro e apresentam seus certificados de orgânico. Em seguida, atualizam onde estarão expondo seus produtos e que tipo de frutas, verduras ou legumes estão vendendo. Dessa forma, o consumidor entra no site e pode ver, em uma espécie de feed, o que está disponível e onde.

Sanderson lamenta que a plataforma escolhida inicialmente apresente algumas instabilidades técnicas, mas garante que o projeto segue vivo. “Estamos trabalhando no novo sistema para continuar atendendo os trabalhadores da agricultura e a população”, garante.