Especial/Bichos

O poder da amizade

Ao verem os filhos estressados e ansiosos por causa do isolamento social, muitos pais cederam aos apelos e os presentearam com um animal de estimação. Conheça algumas dessas histórias

O Dia das Crianças chegou e ainda estamos em isolamento social. Comemorar uma data que é, sobretudo, a celebração da alegria infantil fica difícil em meio a uma pandemia. O cansaço mental e o estresse acabaram tomando conta não só dos adultos, mas dos pequenos, que, há mais de sete meses, viram o mundo de parquinhos, passeios, clubes e casas de amigos reduzido ao próprio lar. Além de se adaptarem ao home office, os pais precisaram virar professores, colegas de escola e animadores de brinquedoteca para manter a garotada feliz. E é aí que surgem grandes aliados para toda a família: os animais de estimação!

Muitas famílias, apesar da vontade em adotar um bichinho, acabam esbarrando em alguns obstáculos, como falta de tempo para treinar o pet e para orientar os filhos sobre as responsabilidades deles nos cuidados do novo amigo. O isolamento acabou permitindo que os pais tivessem esse tempo disponível e muitas crianças ganharam o tão esperado pet.

Na casa da biomédica e gestora em saúde Nayana Cambraia Viana Oliveira, 37 anos, e do gestor público Dennilson Cantanhede Oliveira, 34, a alegria veio em dobro. Depois de muitos pedidos dos quatro filhos mais novos para adotar um cachorro, a família acabou acolhendo as filhotes Viola Davis e Dix.

Heitor, 12, Tomás, 10, Otávio, 7, e Pérola Viana Oliveira, 5, pediam um animal de estimação há bastante tempo, e, mesmo morando em uma casa grande, Nayana avaliava que cuidar de cinco filhos — o mais velho tem 19 anos — era bastante trabalhoso, e um filhote aumentaria essa carga.

Além disso, um pouco antes do início da pandemia, o cachorro da família, Bolinha, morreu, e Nayana e Dennilson não desejavam passar pelo processo dolorido da perda de um pet nunca mais. Já as crianças queriam um novo animal mais que tudo — até salamandra chegaram a pedir aos pais.

Vencidos pelo cansaço
No processo de convencimento, obstinados, os quatro montaram uma apresentação. Heitor tem asma, assim, ele e os irmãos pesquisaram alternativas para que o animal não soltasse muito pelo e criaram uma lista com estatísticas e dados dos benefícios trazidos pelos pets. Enquanto os mais velhos falavam, os caçulas seguravam os papéis com as informações.

Diante da perseverança dos filhos, Nayana e o marido impuseram a condição das responsabilidades das crianças quanto aos cuidados com o pet e cederam. Totalmente contra a compra de animais, o casal levou os filhos ao Abrigo Fauna e Flora. “Precisamos valorizar o animal como um ser vivo e não contribuir para o sofrimento e abandono, por isso, jamais compraríamos. Ao adotar, ajudamos os animais, a nós mesmos, a cidade e os abrigos. Amor é amor, não tem raça”, ressalta a biomédica.

No abrigo, depois de escolher a primeira filhote, Otávio encantou-se por outra e convenceu a família a levar as duas, com o argumento de que ela ficaria “muito triste e sofrida sem a gente”. Foi assim que Viola Davis e Dix entraram para a família, há cerca de três meses.

Alegria e responsabilidade
O contato com as cadelas trouxe um respiro para a família isolada. Os momentos de interação aumentaram, assim como o tempo que passam no quintal e na piscina. “Mesmo com quintal grande, parecia que morávamos em apartamento. Além das aulas, o lazer e o contato com os amigos têm sido todo pelo computador. Com elas, ficamos muito mais tempo lá fora”, conta Nayana.

Dividindo as tarefas de alimentação, banho e limpeza das sujeiras de Viola e Dix, as crianças passaram até a cuidar melhor do quintal e curtir mais a piscina, que as duas adoram. Nayana percebeu que as tarefas e o compromisso de fazerem a parte deles deixou os filhos mais responsáveis e confiantes em suas funções.

A tensão da pandemia, o esgotamento, a dificuldade de dar a atenção necessária às questões escolares dos filhos, todos em séries diferentes, têm causado uma carga maior de estresse para a família, e a presença das cadelinhas tornou-se uma distração e uma diversão. As brincadeiras e os cuidados diminuíram consideravelmente a ansiedade das crianças e todos sentiram o impacto positivo da chegada das duas.

 

 

Os benefícios de crescer com animais

O psiquiatra Fábio Aurélio Leite explica que é importante que os pais apresentem o animal aos filhos como um novo membro da família e que seja criada uma relação de respeito, inclusive a personalidade e as características próprias de cada animal. Para ele, os benefícios que o convívio com os animais traz são muitos: as crianças desenvolvem mais atenção aos detalhes, como as necessidades do bicho, aumentam o senso de responsabilidade e aprender a cuidar de outro ser — o que as ajuda na percepção dos cuidados que precisam ter consigo mesmas.

E a atenção com o outro se desenvolve de forma natural, como consequência da relação de amizade que se desenvolve. “É um aprendizado afetivo, o que torna mais eficaz e saudável para a criança.”

Marcelle Passarinho Maia, psicóloga do Hospital Santa Lúcia, acrescenta que a convivência com animais faz com que as crianças se tornem mais afetivas, atenciosas, empáticas e solidárias, além de ser um aprendizado importante sobre o ciclo da vida e sobre como lidar com a perda de um ser amado.

Durante o isolamento, outras vantagens tornam-se mais valiosas. Marcelle aponta que a interação com os bichos aumenta a liberação de hormônios relacionados ao bem-estar e ao prazer, diminuindo a presença dos ligados ao estresse, como o cortisol.

Os pets são também a companhia para os filhos únicos e, ao brincar e ocupar as crianças, permitem que os pais tenham momentos de descanso após o dia em home office. Fábio acredita que os animais têm o poder de nos fazer esquecer momentaneamente sobre a pandemia. “Eles não querem saber de álcool, máscara nem sabem o que é covid. Estão ali, animados e felizes, sempre prontos para brincar e são um verdadeiro alívio da luta e do sofrimento que vivemos”, completa.

 

 

Lili e os celulares sem bateria

Mãe de três filhos, a nutricionista Fernanda Ramos Monteiro, 40 anos, resistia aos pedidos incessantes da prole para adotar um animal de estimação. Mesmo amando cachorros e tendo tido três na infância, temia que a responsabilidade com o pet recaísse sobre ela.

Durante o isolamento, os pedidos de Josué, 13, Valentina, 12, e Sarah Ramos Monteiro, 10, ficaram ainda mais frequentes. Perseverantes na missão, os três prometeram que cuidariam de todas as necessidades do cachorro e apelaram até para a chantagem emocional. “Eu dizia que já tinha muitos filhos e um cachorro seria muito trabalho a mais, até que eles disseram que não seria justo tirar o direito deles de ter um pet só porque tinham irmãos”, lembra Fernanda.

O obstáculo dos gastos também foi prontamente vencido. Ao serem confrontados sobre o dinheiro necessário para pagar por vacinas, ração, brinquedos e cuidados com o pet, os três se voluntariaram para contribuir com as mesadas.

Diante dos pedidos e do compromisso dos filhos, Fernanda e o marido avaliaram e decidiram que o momento seria ideal. Por ser da área da saúde, a mãe não parou de trabalhar fora, mas o pai está em home office, o que permitiria que os dois orientassem e supervisionassem os filhos até que eles pegassem o jeito nos cuidados com o pet.

Pesquisa cuidadosa
Depois de ver alguns cães de raça, Fernanda percebeu que não aceitaria pagar por um cão enquanto existem tantos animais abandonados precisando de amor. “Falei isso para meus filhos e a reação deles foi a esperada: eles não se importavam com raça ou aparência, só queriam o amor de um cãozinho.”

Depois de muita pesquisa nas redes sociais dos abrigos da cidade, o administrador Carlos Augusto de Sousa Monteiro, 39, foi com os filhos ao Abrigo Fauna e Flora e todos se encantaram por um filhote, mas, sem a presença de Fernanda, não quiseram se precipitar. Ao descobrir que o pet tinha sido adotado, a choradeira tomou conta da casa.

Poucos dias depois, o destino fez sua parte e a família encontrou Lili. Adotada há pouco mais de 20 dias, ela se tornou a alegria da casa. Nos primeiros dias, os três se dividiram em plantões noturnos para cuidar das necessidades da filhote, e Lili aprendeu até mesmo alguns truques. Completamente adaptada ao novo lar, foi responsável por uma série de mudanças positivas na casa.

Os celulares foram esquecidos e chegaram a ficar dias desligados, sem bateria.Os primos precisaram pedir que o pai ligasse para Fernanda para saber porque Josué, Valentina e Sarah não apareciam mais on-line para jogar.

A família, que já era bem unida, passa ainda mais tempo junta, curtindo as fofuras de Lili. Até a irmã de Fernanda foi influenciada e acabou adotando a irmãzinha de Lili. “Foi algo muito bom para todos nós. As crianças se sentem até mais vivas, sabem que, apesar de tudo, a vida continua e tem alegria, não estamos só parados, trancados em casa”, considera Fernanda.

E a nutricionista reforça a importância da adoção responsável e consciente. “Hesitei porque precisava estar muito segura da decisão. O animal não é um objeto que pode ser devolvido a qualquer momento ou depois da pandemia. É uma vida que tem que ser cuidada e valorizada.”

 

 

Onde adotar

Abrigo Fauna e Flora
Instagram: @abrigofaunaeflora
Entre em contato e agende uma visita. Todo domingo, das 12h às 17h, voluntários recebem doações na 108 Sul.

Gatil Luz Violeta
Instagram: @gatilluzv
Fátima: (61) 9 9416-0375
Cleber: (61) 9 9964-7263

Projeto Acalanto DF
Instagram: @projetoacalantodf

Projeto Adoção São Francisco
Instagram: @adocaosaofrancisco

Adote Cat
Instagram: @adotecat

Abrigo Miau Aumigos
Instagram: @miauaumigos

 

 

Companhia de todas as horas

Para combater a solidão do filho de 4 anos, a auxiliar administrativa Jéssica Karla Ferreira Miranda, 32, e o empresário Thiego Alves de Carvalho, 36, decidiram que a adoção de um cão seria a melhor alternativa. Durante o isolamento, Arthur, 4, deixou de ir à creche e, apesar de ter um irmão mais velho, Diogo Ferrreira Carvalho, 15, a grande diferença de idade entre os dois aumentou a necessidade de alguém com quem o caçula pudesse brincar.

Assim, depois de uma pesquisa pelas redes sociais, o filhote Luke entrou na família há cerca de 20 dias. Arthur, que passava os dias pedindo a atenção da mãe, agora fica as tardes ocupado, brincando com o novo amigo.

Jéssica conta que o filho está mais animado, comunica-se mais e ficou mais ativo. A tevê deixou de ser protagonista, os dois filhos acabam passando menos tempo no quarto e curtem mais a área externa da casa, pegando sol e interagindo. E Luke conquistou também os adultos. Durante a noite, toda a família acaba passando mais tempo junta, ao redor dele.

Aprendendo a compartilhar
A necessidade de um amigo também foi o que convenceu a servidora pública Brenda Moreira Rodrigues, 39, a adotar um cãozinho para o filho, Miguel Moreira Rodrigues Fonseca, 9. Filho único, ele convivia com os cachorros da mãe, adotados antes de ele nascer, mas sentia falta de ter um filhote com quem pudesse crescer junto. Além disso, queria se sentir responsável por um animal de estimação.

Brenda, já com dois animais em casa, adiava o momento, mas a solidão do isolamento começou a afetar Miguel, que desenvolveu estresse e um quadro de ansiedade. “Eu não queria naquele momento, mas percebi que, para ele, era algo bem importante ter o próprio pet e um novo amigo”, conta.

Miguel queria um golden, mas Brenda sempre priorizou a adoção de animais abandonados. “Foi a minha oportunidade de passar um ensinamento altruísta: por que não adotar? Conversei e mostrei que existem muitos cães que não são como nos filmes, mas que mereciam o mesmo amor. E ele topou”.

Ao visitar um abrigo, Miguel viveu o famoso amor à primeira vista com a filhote Marvel e, desde a chegada da amiga, há dois meses e meio, o estresse e a ansiedade diminuíram. Brenda observa que Miguel, como filho único, está aprendendo a ceder e a cuidar de alguém.

Acordando de noite com o choro da filhote em adaptação, está aprendendo a priorizar as necessidades e a respeitar a personalidade e o tempo de Marvel. Os idosos Gregor, 10 anos, e Nina, 12, também receberam bem a nova cachorrinha, que trouxe a alegria típica dos bebês para o lar. “É um amor incondicional que ensina a partir do olhar, do contato. É fundamental”, afirma Brenda.

 

 

Adoção com responsabilidade

Durante o isolamento, os abrigos de Brasília precisaram suspender as feiras de adoção, fazendo com que aumentasse o número de animais sem lar. Wellington Fabiano, do Abrigo Fauna e Flora, conta que a alternativa para grande parte dos voluntários foi criar feirinhas pelas redes sociais, nas quais as pessoas poderiam conhecer os animais e depois buscá-los.

Apesar da necessidade de incentivar as adoções, o voluntário ressalta que a preocupação com a responsabilidade é sempre maior, pois o animal sofre muito ao ser devolvido ou abandonado novamente. “Conversamos com as pessoas sobre como será quando o isolamento acabar e muitos não pensam nisso e acabam desistindo. Mas é melhor que desista antes do que abandonar esse animal depois”, considera.

Nas feirinhas semanais, cerca de 15 animais costumavam se adotados. O número caiu para cinco ou seis, mas muitas famílias têm aparecido interessadas nos pets. Wellington notou que a adoção de gatos também se tornou mais expressiva. Ele acredita que muitas pessoas que vivem em apartamento e querem um animal mais independente pós-pandemia acabam escolhendo os felinos.

Ajuda
Lucimar Aparecida Pereira, idealizadora do projeto Acalanto, avalia que desde o início de março, sem as feiras presenciais, o número de adoções caiu e que a alternativa foi apelar para as redes sociais e fotógrafos parceiros para mostrar os animais que precisam de novos lares. Apesar do esforço, muitos pets não foram adotados. “A feirinha tinha aquele amor no ar, as pessoas passavam, batiam o olho e se apaixonavam. Agora, é mais difícil”, comenta.

Com os novos desafios, os voluntários passaram a se empenhar mais nos pedidos de doação de ração e medicamentos para os pets, além de ajuda financeira para a quitação de débitos com os veterinários.

Wellington ressalta que quem assina o termo de adoção são os pais, sendo eles os responsáveis finais pelos animais. “Chamamos a atenção para o fato de que o animal não é um brinquedo ou objeto, mas um ser vivo que precisa ser tratado como tal.”