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As consequências da pandemia: casos de depressão dobram

Neste Setembro Amarelo, é importante lembrar que, diretamente ligada ao suicídio, a depressão é uma doença e tem tratamento que vai além de pensar positivo. Outros entraves de saúde pública surgidos com a pandemia, as chamadas onda, preocupam especialistas

Paralelamente aos problemas de saúde causados pelo novo coronavírus e pelas mortes diretamente ligadas à covid-19, a pandemia no Brasil cria outros entraves de saúde pública com os quais é preciso lidar. Especialistas têm chamando esses fatores de ondas. A primeira é a da própria pandemia. A doutora em psiquiatria Alexandrina Meleiro, vice-presidente da Comissão de Saúde Mental do Médico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e vice-presidente da Associação Brasileira de Estudo e Prevenção de Suicídio (ABEPS), explica que a segunda onda é a de pacientes oncológicos e de outras doenças graves que estão ficando sem tratamento; a terceira, a de pessoas com enfermidades crônicas que deixaram de tomar medicamentos de uso contínuo, por medo de sair de casa para obter receitas; e a quarta, a dos transtornos mentais.

Com dados da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a médica alega que os casos de depressão dobraram durante a pandemia e os de ansiedade e estresse aumentaram em 80%. “O mais preocupante é que a quarta onda não começou depois da primeira, da segunda e da terceira. Ela se iniciou lá atrás, junto com a própria pandemia. E, diferentemente das outras, que terminam com o controle da covid-19, ela deve continuar. A expectativa é de que ela perdure por mais dois anos”, lamenta.

Mesmo antes da pandemia, o Brasil já era o país com mais deprimidos na América Latina e com mais ansiosos no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Agora, o isolamento, a sobrecarga de trabalho doméstico e profissional, e a crise econômica e política são gatilhos a mais com os quais os brasileiros têm precisado lidar e que vêm piorando a saúde mental da sociedade.

De acordo com o psiquiatra Michel Haddad, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), são 12 milhões de pessoas sofrendo de depressão e 18,6 milhões enfrentando a ansiedade no país. “O tripé genética, manifestações biológicas e ambiente desencadeiam as doenças. Um ambiente tão desfavorável, com tantos estressores, com a pandemia e as consequências dela, pode desarranjar o funcionamento do organismo”, explica.

Rodeada de incertezas

Doutorando do programa de biologia microbiana da Universidade de Brasília, Clara Vida Carneiro, 26 anos, voltou a trabalhar no laboratório há cerca de um mês. Foi difícil ficar longe. Ela já havia vivenciado ansiedade e depressão por conta das “truculências da academia”, há dois anos, quando terminava o mestrado. Isso a fez refletir bastante antes de entrar no doutorado. Chegou à conclusão de que seguiria em frente, mas tentando não se cobrar tanto, e “não se esgoelar por coisas sobre as quais não tem controle”.

A terapia é uma das ferramentas que a ajudam nesse tipo de decisão. Ela faz, desde 2016, e recomenda a todos. Conta que, às vezes, para por um período, mas sempre acaba voltando. Não estava fazendo quando a pandemia começou, mas precisou retomar. “É remoto. No início, achei que ia ser besteira, mas deu muito certo”, conta. Além disso, ela procura praticar ioga toda manhã. “É meu ritual, minha principal certeza do dia. Faz com que eu comece o dia com a cabeça mais centrada, tentando não pensar em notícia, em besteira, em perder a minha bolsa”, avalia.

Isolada desde março, a pandemia tirou Clara do laboratório, local que adora trabalhar, e as incertezas passaram a dominar a cabeça. “Eu amo fazer ciência, a pós-graduação, mas sempre houve um preconceito das pessoas, que falam que eu não trabalho, só estudo. Mas é um trabalho pesado e eu tenho que dar um retorno para a sociedade. Agora, então, piorou. Nosso país valoriza cada vez menos a pesquisa, não acreditam na ciência, na educação, na universidade pública”, reclama.

Alguns colegas perderam suas bolsas. Outros tiveram toda a pesquisa interrompida. E, na mente dela, questões e mais questões: “será que ainda vou ter um trabalho para o qual dar continuidade no laboratório?”; “será que a bolsa vai ser prorrogada?”. Sem falar na preocupação por nunca ter tido a carteira assinada.

Em uma das crises, decidiu se abrir em um grupo de WhatsApp com outros pesquisadores e professores da universidade. Contou que, embora estivesse trabalhando na pesquisa teórica, em sua qualificação, e escrevendo o capítulo de um livro para publicar, não estava se sentindo produtiva. Sentiu-se melhor por outras pessoas também terem se sentido à vontade para desabafar e relatar emoções parecidas. E o privilégio maior foi o orientador dela acalmar a todos: “Ele escreveu que, este ano, era para nós nos cuidarmos, principalmente da saúde física e mental, e que não seria o ano mais produtivo de ninguém mesmo.”

 

Envolto em preconceito

A líder médica da Upjohn, divisão da farmacêutica Pfizer focada em doenças crônicas não transmissíveis, Elisabeth Bilevicius afirma que, em 2019, segundo pesquisas da empresa e a própria OMS, os dados sobre depressão no Brasil já eram preocupantes. “De lá para cá, fazemos uma reflexão de que, não só não melhorou, como a pandemia trouxe novos desafios”, afirma.

Estudo feito pela empresa, antes da pandemia, concluiu que as pessoas não veem a depressão como uma doença. Dos 2 mil entrevistados, 72% a entendem como mito ou não reconhecem que ela é mais comum em quem tem histórico na família. Além disso, quase metade (47%) acredita que para vencer a depressão basta ter uma atitude positiva perante a vida e alegria. “As pessoas não acham que, para controlar a pressão alta, é só se acalmar, mas, na depressão, ainda têm essa visão”, lamenta.

O psiquiatra Michel Haddad explica que o medicamento compõe o tratamento, mas não age sozinho. Além disso, quando o tratamento completo é feito precocemente, pode ser otimizado, e as pessoas recuperam a funcionalidade muito mais rapidamente. A psiquiatra Alexandrina Meleiro ainda completa: “Eu uso óculos há anos. Se eu tirar, não enxergo nada. Se eu colocar, volto a enxergar. Não significa que estou dependente dos óculos. Ele corrige minha deficiência. É isso que queremos que as pessoas tenham noção. A pessoa precisa daquilo, porque é uma doença crônica. As pessoas falam muito mal dos remédios. A pessoa precisa ter disciplina de pensar que sabe o quanto sofreu e não quer de novo.”

Grupos de apoio durante a pandemia

Arquivo pessoal - Sem emprego e isolado, Kayo César Borges Rodrigues viu a necessidade de voltar à terapia logo no início da pandemia

Cientes da situação atípica e também estressante pela qual a sociedade está passando, psicólogos de todo o Brasil passaram a criar grupos de apoio aos quais pessoas que se sentissem mais fragilizadas diante das consequências da pandemias poderiam recorrer. Um desses é o Comvida. Em cerca de cinco meses, o projeto atendeu a mais de 600 pacientes. Foram 1,5 mil horas de terapia gratuita.

A idealizadora e coordenadora do serviço, Teresa Freire, psicóloga clínica, terapeuta comunitária e mestre em psicologia, explica que, assim que a pandemia começou, preocupou-se com a saúde mental das pessoas, principalmente das mais pobres, muito mais sujeitas ao desemprego, ao desamparo, à falta de comida, à convivência familiar em uma casa muito pequena e com muito mais gente, à criminalidade, à violência doméstica. “Então, tivemos a ideia de atender voluntariamente. A princípio, éramos sete, depois 17, até chegar a 70”, conta. São voluntários do país inteiro com pacientes de dentro e de fora do Brasil.

Para ela, os planos e as ideias que todos tinham como projeção para o futuro foram obstruídos. “Uma das características para superar os problemas e ser resiliente é ter uma orientação positiva para o futuro, mas isso está mesmo mais difícil diante de uma sociedade mundial que está derretendo, esfacelando”, lamenta. Por conta disso, mesmo pessoas que nunca tiveram quadros ansiosos e depressivos estão suscetíveis.

Ansiedade a mil

Quando a pandemia iniciou, Kayo César Borges Rodrigues, 25, estava desempregado. Foi como um banho de água fria nas esperanças de conseguir um emprego. “Eu pensei: agora que não vou arrumar nada mesmo”, relembra. O irmão estava prestes a abrir uma sorveteria, na qual Kayo poderia trabalhar, mas o plano acabou engavetado ainda — há até três semanas, quando o comércio, finalmente, saiu do papel e Kayo começou a trabalhar. Motivo para comemorar.

A dificuldade de conseguir emprego e o isolamento social não fizeram nada bem para Kayo. No primeiro mês, o irmão e a cunhada mudaram-se para a casa onde mora com os pais e era tudo novidade, festa. “Nós sempre cozinhávamos, ficávamos juntos”, conta. Mas, quando o casal saiu, os fins de semana ficaram sem graça.

O rapaz passou a ter insônia, a ficar irritado por coisas pequenas. “Eu tive o privilégio de fazer terapia desde os meus 14 anos. Da última vez, recebi alta, no meio do ano passado. Então, quando percebi que estava no meu limite, procurei meu último psicólogo”, relata. O profissional o orientou que procurasse um projeto de terapia remota gratuita. Ele foi atendido por um psicólogo que estava no Rio de Janeiro, e adorou a experiência. “Com o tempo, fui me estabilizando, sentindo-me melhor”, avalia.

Estratégias para uma mente saudável

A psiquiatra Alexandrina Meleiro explica que é importante não confundir isolamento físico com social. É importante manter contato com os amigos e a família. Ela aconselha também a valorizar o sono, por ele ser reequilibrador. “É quando a gente recupera a oxidação do cérebro”, afirma. É importante dormir em um horário razoável para se beneficiar dos picos de hormônio. Além disso, procurar ter uma alimentação equilibrada e evitar álcool e cigarro.

Sobrecarga dentro de casa

Arquivo pessoal - Grávida do terceiro filho e sobrecarregada de afazeres, Amanda Stephanie Gaspari chorou por três dias consecutivos

A psicanalista Eloah Mastieri explica que ter ansiedade é normal. “É uma defesa do corpo diante de alguma ameaça”, explica. No entanto, há níveis seguros para ela, e a situação que vivemos, com a pandemia, a exacerbou. “Além do medo, da ameaça da doença, sem noção de como é, como não é, ainda existe a ansiedade do pós-pandemia. A gente não sabe o que vai encontrar no mundo”, considera.

Além disso, ela afirma que uma pessoa acostumada a sair muito para trabalhar ou para lazer sente uma perda do seu papel social. “Agora, confinada, uma parte da vida dela fica com uma sombra, sem saber como vai acabar.” Sem falar na sobrecarga de trabalho dentro de casa. “Antes, as pessoas tinham ajuda nos afazeres domésticos, as crianças iam à escola”, exemplifica.

Foi o que aconteceu com Amanda Stephanie Gaspari, 29, empresária. No início, a família curtiu a nova rotina, a possibilidade de ficar mais tempo junta. Mas não imaginaram que duraria tanto. Como ela e o marido são autônomos, ele precisou logo voltar à rotina de trabalho na empresa do casal, mas ela descobriu que estava grávida do terceiro filho e se viu no grupo de risco. O confinamento se tornou ainda mais importante.

Em meio aos hormônios da gestação, havia aulas on-line dos filhos, serviços domésticos, trabalho administrativo no negócio da família, incertezas do mercado de construção — ramo da empresa do casal —, isolamento social e falta de rotina. Tudo isso desencadeou a três dias consecutivos de choro. “Eu não sabia nem explicar por que eu chorava, mas não conseguia parar. Nunca tinha passado por isso antes, nunca tinha sentido aquele turbilhão”, relembra.

Buscando ajuda

Amanda lançou mão de algumas estratégias para se recuperar e evitar uma nova crise. Passou a acordar mais cedo, para começar o dia com mais calma, enquanto as crianças ainda dormiam. “Faço, então, uma reflexão, uma meditação, tomo meu café da manhã tranquila. Já deixo algo preparado para quando eles acordarem”, relata.

Até o filho mais novo entrou na jogada. Com 10 anos, ele ajudou a mãe em um painel de tarefas, para que a família tivesse uma rotina. Foi uma diversão. “Assim, ficou tudo mais ou menos com horário, para a gente não se perder. Porque, no início, a rotina estava toda bagunçada, acordávamos tarde, aí almoçávamos tarde, também”, relembra.

E, para completar, entrou em um grupo terapêutico on-line específico para gestantes. Três psicólogas acompanham as grávidas na plataforma. “Eu vi que tem muita gente passando pelo mesmo e é muito bom ver que não estou sozinha nisso, que não sou só eu naquele barco. Uma ajuda a outra”, alegra-se.

Cartilhas na internet

Pensando no momento único que estamos todos vivendo e no somatório de condições que levam à mudança do humor, o grupo de extensão Liga Acadêmica de Terapia Cognitivo-Comportamental do Departamento de Psicologia da UERJ, que fazia encontros presenciais com a comunidade, tem publicado cartilhas voltadas à saúde mental disponíveis, na internet, para toda a sociedade. “Elas são resultado de projetos anteriores, que foram adaptados para este momento de pandemia”, explica a doutoranda de psicologia Evlyn Rodrigues.

“Para quem faz o afastamento físico entre as pessoas, com crianças em casa, sem poder extravasar a energia, tarefas domésticas que, antes, não eram feitas pelos moradores. E para quem não faz, que tem bravamente que ir trabalhar: o medo de sair, usar máscara o dia todo, convivendo com o público, controlando-se para não pegar no rosto. Tudo isso cria um problema de natureza emocional devastador”, cita Angela Donato Oliva, coordenadora do grupo.

Confira as cartilhas:

LIGAndo pais, filhos e avós na #quarentena

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