Solidariedade

Alegria à prova de distância: voluntários em hospitais se reinventam

ONGs buscam soluções para entreter pacientes em isolamento social. Voluntários, que antes iam até os hospitais, hoje usam a criatividade para tornar o ambiente mais leve sem sair de casa

Bruna Yamaguti*
postado em 13/09/2020 08:00
Mayanny Medeiros, da Associação Laços da Alegria, sente falta dos encontros presenciais, mas conta que tem aprendido muito com o virtual  -  (crédito: Arquivo pessoal)
Mayanny Medeiros, da Associação Laços da Alegria, sente falta dos encontros presenciais, mas conta que tem aprendido muito com o virtual - (crédito: Arquivo pessoal)

Pintar o rosto, respirar fundo e entrar em cena, ou melhor, no quarto. Essa era a rotina dos voluntários de associações voltadas para a humanização em hospitais, que chegavam aos leitos prontos para arrancar gargalhadas e trazer mais leveza para os pacientes que ali estavam. No entanto, a pandemia do novo coronavírus e o isolamento social empurraram os profissionais da alegria para outros rumos. Agora, é preciso adaptar as visitas para que, mesmo distantes, eles estejam o mais próximo possível de quem precisa.

Guiados pela arte circense e da palhaçaria, os voluntários dessas organizações não governamentais (ONGs) atuavam em hospitais públicos e privados de todo o Brasil, levando distração para pessoas em situação de fragilidade, internadas ou incapacitadas. No entanto, desde que a pandemia chegou no país, essas atividades precisaram ser suspensas. Diante dessa realidade pouco acolhedora, a solução encontrada tem se ancorado em uma grande aliada do isolamento: a internet.

A Associação Laços da Alegria, criada em 2011 no Distrito Federal, já realizou mais de 850 ações em hospitais e atendeu a mais de 110 mil pessoas ao longo desses nove anos. Hoje, por meio das chamadas de vídeo, os voluntários viram-se diante de um novo desafio. “Nossas visitas virtuais são guiadas pelo próprio paciente. Uns gostam de só ouvir ou conversar; outros, de mágica e brincadeiras. Não existe uma fórmula pronta, cada encontro é único”, explica o diretor de Hospitais da associação, Marcus Fogaça.

Para agendar uma visita, ter acesso à internet é o único pré-requisito. Os interessados podem se cadastrar no site e aguardar as próximas instruções sobre o encontro, que tem duração de aproximadamente 30 minutos. “Receber a notícia de que as visitas seriam suspensas foi muito triste, porque aquilo já fazia parte da nossa rotina nos fins de semana, deixou um certo vazio”, desabafa a estudante de fisioterapia Mayanny Medeiros, voluntária da Associação Laços da Alegria há mais de dois anos.

Além do contato com os outros integrantes do grupo, o que mais sente saudade é da interação com os pacientes. “A gente gostava muito de estar lá, e eles também gostavam da nossa companhia. Era uma coisa muito gostosa e recíproca de fazer”, lembra a estudante. “Por outro lado, as visitas virtuais têm sido bastante interessantes. Estamos aprendendo muito com isso. Às vezes, acontece de o áudio chegar atrasado, a voz falhar, mas a gente vai se adequando, fazendo com que as visitas fiquem cada vez melhores, mesmo com as adversidades”, pondera.

Delivery de sorrisos

Os palhaços do Doutores da Alegria criaram a série de vídeos Delivery Besteirológico
Os palhaços do Doutores da Alegria criaram a série de vídeos Delivery Besteirológico (foto: Arquivo pessoal)

Como alternativa ao afastamento das rotinas nos hospitais, os Doutores da Alegria, ONG que atua há 29 anos com palhaços profissionais, criaram o Delivery Besteirológico — série de vídeos gravados pelos artistas em suas casas, veiculados nas mídias sociais da organização e, posteriormente, distribuídos, leito a leito, com a ajuda dos profissionais de saúde.

Esse foi apenas o primeiro passo para um grande conjunto de trabalhos virtuais que surgiriam, todos com o objetivo comum de arrancar sorrisos nos pacientes em isolamento. O projeto, que já alcançou mais de 7,5 milhões de pessoas, deu origem ao Plantão Besteirológico, visita dos palhaços ao vivo, mas, agora, por meio de chamadas de vídeo. Além disso, espetáculos e palestras para toda a família passaram a ser realizados on-line.

“Mesmo sem contato físico, estamos atentos para o que o corpo está falando, como ele se comporta. Os olhares conectados possibilitam tudo aquilo que virá adiante. Alegria, para nós, é o resultado desse encontro”, explica o diretor-presidente da organização, Luis Vieira da Rocha. “O isolamento está possibilitando rever nossas crenças e limites. Uma verdadeira reinvenção que veio pra ficar, mesmo quando a pandemia passar.”

Acostumados com o contato direto e a interação face a face, atuar a distância parecia uma barreira e tanto a ser vencida pelos palhaços. No entanto, as dificuldades não foram maiores do que a vontade de fazer o bem: “Nossa luta para continuar seguindo com nossos pacientes, mesmo que virtualmente, vem da nossa crença de que a arte pode ser um antídoto para momentos como o que estamos vivendo. São tempos difíceis, muitas barreiras rompidas. Mudança na forma de olhar e entender a realidade. Mas, com certeza, a arte é o caminho. É o que nos faz ser e continuar humanos”, completa o diretor.

Contadores de histórias

Depois de ficar no hospital com o filho, Priscila virou voluntária como contadora de histórias e escreveu um livro
Depois de ficar no hospital com o filho, Priscila virou voluntária como contadora de histórias e escreveu um livro (foto: Arquivo pessoal)

Além das brincadeiras e atividades, a contação de histórias é um recurso lúdico muito utilizado pelo voluntariado para entreter e alegrar, principalmente o público infantil. A Associação Viva e Deixe Viver, por exemplo, é uma ONG formada por mais de mil voluntários que contam histórias para crianças e adolescentes hospitalizados. O contexto da pandemia fez com que a dinâmica do grupo fosse alterada, mas não os impediu de fazerem a diferença.

“A gestão da Viva sempre esteve antenada na melhoria das relações humanas por meio da tecnologia. Desde março, acionamos nosso projeto de humanização via tecnologia, ou seja, a formação de voluntários, e o ensino continuado passou a ser ministrados a distância. São atividades que ampliam o conhecimento, tanto dos voluntários quanto das equipes de saúde e educação”, explica o diretor e fundador da ONG, Valdir Cimino, 59 anos.

No site da associação, é possível ter acesso às salas de contação de histórias, que ficam abertas de segunda a sexta-feira, das 10h às 12h, para todas as crianças que quiserem ouvir. Além disso, foi criada a Biblioteca Viva, espaço no qual é possível encontrar grandes influenciadores contando histórias diferentes toda semana.

Sophia Duarte, psicóloga do Hospital da Criança de Brasília (HCB), explica que a contação de histórias, no contexto hospitalar, promove a socialização e reduz o nível de estresse das crianças. “Ler histórias com elas, além de possibilitar uma troca muito grande, é uma forma de fazer com que se comuniquem com o mundo”, conta. “A leitura deve ser inserida na vida da criança desde cedo, ainda mais em um contexto em que ela se sente limitada e privada de outras vivências e contatos sociais.”

Saudade

Inspirada pelo trabalho de humanização no hospital onde o filho estava internado, Priscila Castello Branco, 41, acabou se tornando voluntária. Há três anos, ela publicou um livro infantil, Juju no hospital, no qual retrata, de forma leve e divertida, os momentos no ambiente hospitalar com o filho João, de 11 anos.

A advogada, que hoje estuda psicologia, viveu a experiência de passar por dois tipos de hospitais: um no qual ela e o filho não se sentiram acolhidos, e outro em que a humanização no meio médico era levada a sério. “Eu imediatamente percebi que os dias de visita dos voluntários eram diferenciados para meu filho. Ele começava o dia mais alegre quando era informado que teria a visita dos contadores de histórias, e esperava ansioso por eles”, lembra Priscila, que hoje faz parte da equipe de relações humanas da associação Viva e Deixe Viver.

Ela comenta, ainda, que a suspensão das atividades deixou um buraco no dia a dia das crianças, que tinham, nos momentos de descontração, um refúgio: “Está provado que esse tipo de trabalho traz enormes benefícios às crianças. A falta dos voluntários nos hospitais traz consequências que só poderemos avaliar melhor quando tudo isso acabar”, explica. “Tem sido uma experiência muito diferente e enriquecedora, mas a verdade é que estamos morrendo de saudades de atuar nos hospitais, olhando olho no olho, porque humanização é isso. É estar presente.”

*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

  • Os palhaços do Doutores da Alegria criaram a série de vídeos Delivery Besteirológico
    Os palhaços do Doutores da Alegria criaram a série de vídeos Delivery Besteirológico Foto: Arquivo pessoal
  • Depois de ficar no hospital com o filho, Priscila virou voluntária como contadora de histórias e escreveu um livro
    Depois de ficar no hospital com o filho, Priscila virou voluntária como contadora de histórias e escreveu um livro Foto: Arquivo pessoal

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação