Pintar o rosto, respirar fundo e entrar em cena, ou melhor, no quarto. Essa era a rotina dos voluntários de associações voltadas para a humanização em hospitais, que chegavam aos leitos prontos para arrancar gargalhadas e trazer mais leveza para os pacientes que ali estavam. No entanto, a pandemia do novo coronavírus e o isolamento social empurraram os profissionais da alegria para outros rumos. Agora, é preciso adaptar as visitas para que, mesmo distantes, eles estejam o mais próximo possível de quem precisa.
Guiados pela arte circense e da palhaçaria, os voluntários dessas organizações não governamentais (ONGs) atuavam em hospitais públicos e privados de todo o Brasil, levando distração para pessoas em situação de fragilidade, internadas ou incapacitadas. No entanto, desde que a pandemia chegou no país, essas atividades precisaram ser suspensas. Diante dessa realidade pouco acolhedora, a solução encontrada tem se ancorado em uma grande aliada do isolamento: a internet.
A Associação Laços da Alegria, criada em 2011 no Distrito Federal, já realizou mais de 850 ações em hospitais e atendeu a mais de 110 mil pessoas ao longo desses nove anos. Hoje, por meio das chamadas de vídeo, os voluntários viram-se diante de um novo desafio. “Nossas visitas virtuais são guiadas pelo próprio paciente. Uns gostam de só ouvir ou conversar; outros, de mágica e brincadeiras. Não existe uma fórmula pronta, cada encontro é único”, explica o diretor de Hospitais da associação, Marcus Fogaça.
Para agendar uma visita, ter acesso à internet é o único pré-requisito. Os interessados podem se cadastrar no site e aguardar as próximas instruções sobre o encontro, que tem duração de aproximadamente 30 minutos. “Receber a notícia de que as visitas seriam suspensas foi muito triste, porque aquilo já fazia parte da nossa rotina nos fins de semana, deixou um certo vazio”, desabafa a estudante de fisioterapia Mayanny Medeiros, voluntária da Associação Laços da Alegria há mais de dois anos.
Além do contato com os outros integrantes do grupo, o que mais sente saudade é da interação com os pacientes. “A gente gostava muito de estar lá, e eles também gostavam da nossa companhia. Era uma coisa muito gostosa e recíproca de fazer”, lembra a estudante. “Por outro lado, as visitas virtuais têm sido bastante interessantes. Estamos aprendendo muito com isso. Às vezes, acontece de o áudio chegar atrasado, a voz falhar, mas a gente vai se adequando, fazendo com que as visitas fiquem cada vez melhores, mesmo com as adversidades”, pondera.
Delivery de sorrisos
Como alternativa ao afastamento das rotinas nos hospitais, os Doutores da Alegria, ONG que atua há 29 anos com palhaços profissionais, criaram o Delivery Besteirológico — série de vídeos gravados pelos artistas em suas casas, veiculados nas mídias sociais da organização e, posteriormente, distribuídos, leito a leito, com a ajuda dos profissionais de saúde.
Esse foi apenas o primeiro passo para um grande conjunto de trabalhos virtuais que surgiriam, todos com o objetivo comum de arrancar sorrisos nos pacientes em isolamento. O projeto, que já alcançou mais de 7,5 milhões de pessoas, deu origem ao Plantão Besteirológico, visita dos palhaços ao vivo, mas, agora, por meio de chamadas de vídeo. Além disso, espetáculos e palestras para toda a família passaram a ser realizados on-line.
“Mesmo sem contato físico, estamos atentos para o que o corpo está falando, como ele se comporta. Os olhares conectados possibilitam tudo aquilo que virá adiante. Alegria, para nós, é o resultado desse encontro”, explica o diretor-presidente da organização, Luis Vieira da Rocha. “O isolamento está possibilitando rever nossas crenças e limites. Uma verdadeira reinvenção que veio pra ficar, mesmo quando a pandemia passar.”
Acostumados com o contato direto e a interação face a face, atuar a distância parecia uma barreira e tanto a ser vencida pelos palhaços. No entanto, as dificuldades não foram maiores do que a vontade de fazer o bem: “Nossa luta para continuar seguindo com nossos pacientes, mesmo que virtualmente, vem da nossa crença de que a arte pode ser um antídoto para momentos como o que estamos vivendo. São tempos difíceis, muitas barreiras rompidas. Mudança na forma de olhar e entender a realidade. Mas, com certeza, a arte é o caminho. É o que nos faz ser e continuar humanos”, completa o diretor.
Contadores de histórias
Além das brincadeiras e atividades, a contação de histórias é um recurso lúdico muito utilizado pelo voluntariado para entreter e alegrar, principalmente o público infantil. A Associação Viva e Deixe Viver, por exemplo, é uma ONG formada por mais de mil voluntários que contam histórias para crianças e adolescentes hospitalizados. O contexto da pandemia fez com que a dinâmica do grupo fosse alterada, mas não os impediu de fazerem a diferença.
“A gestão da Viva sempre esteve antenada na melhoria das relações humanas por meio da tecnologia. Desde março, acionamos nosso projeto de humanização via tecnologia, ou seja, a formação de voluntários, e o ensino continuado passou a ser ministrados a distância. São atividades que ampliam o conhecimento, tanto dos voluntários quanto das equipes de saúde e educação”, explica o diretor e fundador da ONG, Valdir Cimino, 59 anos.
No site da associação, é possível ter acesso às salas de contação de histórias, que ficam abertas de segunda a sexta-feira, das 10h às 12h, para todas as crianças que quiserem ouvir. Além disso, foi criada a Biblioteca Viva, espaço no qual é possível encontrar grandes influenciadores contando histórias diferentes toda semana.
Sophia Duarte, psicóloga do Hospital da Criança de Brasília (HCB), explica que a contação de histórias, no contexto hospitalar, promove a socialização e reduz o nível de estresse das crianças. “Ler histórias com elas, além de possibilitar uma troca muito grande, é uma forma de fazer com que se comuniquem com o mundo”, conta. “A leitura deve ser inserida na vida da criança desde cedo, ainda mais em um contexto em que ela se sente limitada e privada de outras vivências e contatos sociais.”
Saudade
Inspirada pelo trabalho de humanização no hospital onde o filho estava internado, Priscila Castello Branco, 41, acabou se tornando voluntária. Há três anos, ela publicou um livro infantil, Juju no hospital, no qual retrata, de forma leve e divertida, os momentos no ambiente hospitalar com o filho João, de 11 anos.
A advogada, que hoje estuda psicologia, viveu a experiência de passar por dois tipos de hospitais: um no qual ela e o filho não se sentiram acolhidos, e outro em que a humanização no meio médico era levada a sério. “Eu imediatamente percebi que os dias de visita dos voluntários eram diferenciados para meu filho. Ele começava o dia mais alegre quando era informado que teria a visita dos contadores de histórias, e esperava ansioso por eles”, lembra Priscila, que hoje faz parte da equipe de relações humanas da associação Viva e Deixe Viver.
Ela comenta, ainda, que a suspensão das atividades deixou um buraco no dia a dia das crianças, que tinham, nos momentos de descontração, um refúgio: “Está provado que esse tipo de trabalho traz enormes benefícios às crianças. A falta dos voluntários nos hospitais traz consequências que só poderemos avaliar melhor quando tudo isso acabar”, explica. “Tem sido uma experiência muito diferente e enriquecedora, mas a verdade é que estamos morrendo de saudades de atuar nos hospitais, olhando olho no olho, porque humanização é isso. É estar presente.”
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte
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