Especial

Desafio diário em família

Há mais de cinco meses em casa, sem aula presencial, crianças demandam atenção especial, o que tem resultado em um esforço maior para pais e filhos se adaptarem ao novo normal

A falta de aulas presenciais e o isolamento social têm se tornado um desafio cada dia maior para os pais que, há mais de cinco meses, além de acumularem as funções do trabalho, precisam acompanhar os estudos do filho e lidar com a ansiedade e nervosismo da garotada.

De repente, as aulas são nas telas — as mesmas que muitos pais passavam os dias tentando limitar. E uma espécie de homeschool foi imposta, já que muitas crianças — principalmente as menores — não se adaptaram ao novo formato. E pai e mãe acabam com uma função a mais: a de ensinar ou, no mínimo, acompanhar o aprendizado ainda mais de perto. Tudo isso, enquanto seguem com os afazeres domésticos.

Sem falar das outras demandas dos pequenos dentro de casa, por comida, ajuda com algum brinquedo, ligar aparelhos eletrônicos, mediação de brigas entre irmãos. E dos efeitos da falta de atividades e de socialização na vida deles: ansiedade, tédio, acúmulo de energia — fatores que têm reflexo no sono e na alimentação.

Ficar em casa para se proteger e proteger os outros de infecções por coronavírus tem se mostrado uma missão difícil para todo brasiliense. Mas, para as pessoas com filhos, a rotina ficou mesmo de cabeça para baixo e os desafios são diários. Os pais reclamam, conciliam atividades, acumulam funções, estressam-se, sentem-se culpados, preocupam-se e tentam, também, relaxar um pouco.

Com os dois filhos, Dante, 1 ano, e Bento, 4, em casa, Carla Resende, 36, empresária e confeiteira, e o marido André Barbosa, servidor público, precisaram se virar. Carla costumava trabalhar à tarde, na casa da mãe, que é sócia dela. O mais velho ia para a escola e o mais novo a acompanhava: dormia um pouco, ficava com a avó, com a funcionária da casa. Pela manhã, Bento ainda fazia judô e futebol.

Multitarefas

Agora, em home office, o pai trabalha sem parar no período da manhã — com uma demanda maior do que a normal —, enquanto a mãe se dedica aos filhos. À tarde, ele tenta conciliar a paternidade e o serviço, e a mulher trabalha. Enquanto André passou a ter uma carga horária profissional maior, Carla precisou transformar a empresa. Dona da Minari Doces, que fazia biscoitos, principalmente, para casamentos, viu-se com contratos cancelados e redução das encomendas. Reinventou-se e passou a vender os biscoitos amanteigados em pote.

Seria também no período da tarde as aulas on-line de Bento, que duram uma hora. Mas o pequeno não queria assistir a elas, não tinha interesse nem paciência. Recusava-se, distraía-se. “No começo, eu ficava nervosa, forçava. Pensava: todo mundo está fazendo, ele vai ficar para trás”, relembra Carla. O resultado era estresse geral para toda a família. Segundo a doceira, o filho tem um perfil agitado, gosta de esporte, de correr.

Depois de conversar com a equipe pedagógica da escola, com amigas e testar várias alternativas, a mãe percebeu que o que funcionava melhor era ela mesma pegar as atividades e explicá-las para que Bento fizesse. Dessa forma, estuda no momento mais propício para todos. Carla também decidiu montar uma rotina mais rigorosa para o filho e viu boas consequências: “Ele ficou mais tranquilo. Sinto que passei a conhecer mais o meu filho”, alegra-se. Para ela, esse foi o ponto crucial para chegarem a uma harmonia em casa. “Estamos mais unidos.”

Ajustes necessários

Para a pedagoga Fátima Guerra, professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), PhD em educação infantil pela Universidade de Ohio e ex-secretária de Educação do DF, do ponto de vista de saúde, os pais têm que procurar alternativas, justamente como Carla fez. “Na dúvida, na dificuldade, buscar informação com os professores, manter o contato sempre. Além disso, tem muita informação na internet. A família pode buscar conhecimento em todos os recursos disponíveis”, recomenda.

Ela explica que é uma fase em que o aprendizado não pode ser negligenciado. Mas a base do ensinar e aprender é o diálogo. “É importante eles entenderem por que não estão indo à escola, que não é um castigo ou uma punição, e tentar estimular a cada passo. Uma forma é chamar a criança ou o adolescente para planejar juntos como vão estudar, como vai ser o horário. Já é um dado conhecido na psicologia social que o envolvimento é maior quando a criança participa da tomada de decisão e não vem como uma imposição”, sugere.

Na vida de mãe e pai, os desafios nunca acabam. Com mais tempo, sentindo-se mais entediado, sem atividade física e ansioso, Bento estava com a dieta um pouco pior. “Ele deu uma leve engordada. Aqui, sempre comemos muito bem. Agora, estamos fazendo mais substituições, dando mais frutas para ele”, conta Carla. E ele se envolve: “Fazemos bolo com aveia, sorvete de frutas. Estamos cozinhando mais”, detalha Carla.

A nutricionista infantil Sabrina Galdino de Silva, do @chegadebiscoito, considera superpositiva a participação da criança na preparação dos alimentos. Ela conta que o maior erro foi acharmos que a quarentena seria um período curto. “Virou um grande fim de semana, e os pais acabaram abrindo várias exceções”, afirma. Para ela, a ansiedade geral faz com que as crianças, e também os pais, comam coisas menos saudáveis. “Os alimentos não precisam ser vilões, mas é importante mostrar que tem outras coisas gostosas que fazem muito bem.” Sabrina acha importante evitar a associação de comida a sentimentos.

Com as adaptações feitas, agora, a família tem tranquilidade para manter Bento fora da escola, provavelmente, até o fim do ano. “Nós nos preocupamos, especialmente, porque o irmão tem bronquiolite e ficou na UTI por 23 dias”, relata a mãe, que prefere se resguardar até a vacina contra o novo coronavírus chegar.

Mantendo a boa alimentação
Estabeleça uma rotina com horários de comer
Não associe a guloseima a um prêmio
Coma à mesa, e não em frente à tevê
Não brigue ou fique bravo se a criança não quiser comer
Chame seu filho para ajudar na preparação da comida

Fonte: @chegadebiscoito


Diferentes realidades em casa

A bancária Mariana Reschke, 42 anos, e o servidor público André Mendes, 44, têm três filhos — Mateus, 14, Felipe, 6, e Henrique, 3 — e não veem a hora de as aulas presenciais voltarem. Ela trabalha de manhã; e ele, o dia inteiro. Além disso, estão o tempo todo cuidando da casa. Dividem tudo, mesmo assim, estão cansados.

A mãe brinca que o mais velho está “com a vida que pediu a Deus”. Ele passa a manhã na aula on-line e, depois, o resto do dia continua no computador jogando e conversando com os amigos. Mateus é totalmente autossuficiente, o que é algo positivo para o casal. O único problema é que a tela era algo que os pais tentavam limitar em casa e, diante da pandemia, veem-se sem alternativa.

No início do ano, até haviam colocado Mateus no inglês e na academia, para que ele tivesse outras atividades, mas o isolamento social adiou os planos. Mesmo quando os pais abrem a exceção de descer um pouco para os filhos correrem e andarem de patinete, o adolescente não se interessa. “A gente se incomoda mais do que ele”, diz Mariana.

Já a realidade dos mais novos é totalmente diferente. Muito mais dependentes, acabam exigindo mais dos pais. O do meio está sendo alfabetizado a distância, com aulas on-line. Mariana está feliz com o resultado, mas admite que é trabalhoso. “A gente tem que ficar em cima. Ele se dispersa, vai buscar água, vai correr atrás dos gatos”, conta a mãe bem-humorada. No começo, ela lembra que Felipe estava mais interessado. Era novidade, mas, com o tempo, cansou.

O sono da família também mudou. Os filhos estão dormindo cerca de uma hora mais tarde do que o normal, o que ainda não tem sido um problema na rotina da casa. Mas Felipe voltou a acordar de madrugada, o que o casal está tentando solucionar, limitando o tempo de tevê. “Depois do jantar, ele já não vê mais nada e, antes, a gente escolhe programas mais calmos, para não ficar agitado na hora de dormir.”

Higiene do sono

A estratégia é o que a pediatra -eral Anna Luiza Alves, do @pediatraemcasa, chama de higiene do sono: “Evitar estímulos de telas próximo ao horário de dormir”. E indica aproveitar esse momento para curtir a família. De acordo com a especialista, atividades que eram mais controladas estão sendo abusadas para os pais poderem trabalhar, terem algum sossego. “A gente sabe que está difícil evitar, mas as telas geram muita ansiedade”, afirma.

Segundo a médica, outra situação prejudicial e comum tem sido dormir mais tarde durante a pandemia. “As famílias estão numa reestruturação em casa. No início, todo mundo achou que seria mais rápido, mas já se vão cinco meses e, na vida de uma criança menor, é muito tempo”, afirma.

Com bom senso, o dormir mais tarde pode não ser um problema tão grande. Anna Luiza entende que, muitas vezes, o fato de a criança dormir cedo pode causar o não convívio com os pais. “Aí, dá para dormir uns minutinhos mais tarde”, reforça. Além disso, por experiência com mães e pais, ela sabe que é cômodo para alguns que o filho durma mais tarde, porque, assim, acorda mais tarde e os adultos conseguem aproveitar o início da manhã para trabalhar.

Mas Anna Luiza explica que dormir à meia-noite e acordar às 10h não é o mesmo que dormir às 22h e acordar às 8h, mesmo que se durma as mesmas 10 horas. Portanto, não se deve exagerar. “Nós temos um relógio biológico que controla nosso sono e nossa vigília. E ele é regido, principalmente, pela melatonina. E é durante o sono que temos o pico do hormônio do crescimento, por volta das 2h. Não adianta dormir só à 1h”, explica.

Crianças e telas

Até 2 anos
A Sociedade Brasileira de Pediatria e a Organização Mundial da Saúde não recomendam o acesso às telas por menores de 2 anos.

2 a 5 anos
Ambas instituições recomendam o máximo de uma hora por dia.

Mais de 5 anos
A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda o limite de duas horas por dia, sempre monitorado.

Fonte: @pediatraemcasa


Quando a atenção é especial

A especialista em educação positiva Ingrid França percebe que a situação está complicada tanto para as crianças quanto para os adultos. E explica que todos se beneficiam muito de uma rotina bem estabelecida, principalmente os pequenos. “O jeito é delimitar os horários, explicar que precisam respeitar o tempo de cada coisa. Como criança não entende bem o tempo, eu dou a dica de colocar despertador”, afirma.

Para isso, Ingrid recomenda a confecção de um quadro de rotina, com todas as atividades da criança. “Ela precisa de uma certa previsibilidade. O quadro de rotinas é uma ferramenta muito positiva a partir de 4 anos. Não precisa ser muito rebuscado, mas, quando você disser que está na hora do lanche e ela não quiser, você não vai responder: ‘Vai lanchar porque estou mandando’. É só falar para olhar o quadro”, exemplifica.

Na prática, em casa, ela conta que o próprio filho chama muito a atenção dela. Então, suprir essa necessidade dele é a primeira coisa que faz no dia, para mantê-lo calmo. Ingrid critica a pressão para que a garotada de até 6 anos tenha aulas on-line. “Se ela gostar, se for divertido, prazeroso para ela, ótimo. Mas não é algo indispensável. Fazer uma criança sentar na frente de um computador pode até ter um efeito negativo. Em geral, ela não consegue permanecer sentada, o pai fica estressado e o prazer da escola vira uma coisa sofrida para a família inteira, e vai ser maléfico”, opina.

É o caso de Luciara Cardoso, 39, servidora pública, e o filho Samuel, 5 anos. E, se estar em casa nesse contexto de pandemia, aulas on-line e isolamento social é difícil com crianças neurotípicas, imagina com aquelas que têm alguma condição especial. Samuel tem um autismo leve. Na escola, contava com a ajuda de uma estagiária, que o acompanha em todas as atividades, como previsto na Lei Federal nº 12.764.

Já em casa, era ele, a mãe e a aula on-line. Todo dia, por 45 minutos. Além disso, havia atividades em folhas xerocadas e em livros para fazer. Com uma necessidade a mais de paciência na criança para esperar todas falarem e chegar a vez dela, Samuel, que tem baixa tolerância a barulho, ficava estressado, dispersava-se, e perdeu completamente o interesse.

Sem forçar a barra

No início, a mãe forçava a barra: “Tem que participar”, pensava. “Foi muito estressante, superdesgastante. No início, era muita atividade todo dia, um volume muito grande, ainda tinha que assistir às atividades”, relembra. Luciara viu-se em uma situação em que ou trabalhava, ou fazia com o filho tudo o que a escola mandava. Decidiu desencanar um pouco. Faz as atividades que consegue, embora se preocupe com a possibilidade de o filho estar atrasado.

Mesmo com as mudanças, Luciara sentiu a necessidade de retornar com a terapia do filho e foi orientada pela neurologista a conversar com a escola sobre a possibilidade de um encontro da professora só com Samuel, o que tem sido feito uma vez por semana, há cerca de dois meses, e tem funcionado melhor. Ainda assim, ele sente falta e pede para voltar à escola e à natação.

Em casa, coisas nas quais Samuel não prestava tanta atenção passaram a ser percebidas e a incomodá-lo, como o latido dos cachorros dos vizinhos. Ele tem tido mais crises, começou a ficar nervoso e até a se morder. Para ajudar, começou a tomar a medicação para o autismo, o que aumenta o apetite. Mesmo assim, Luciara prefere lidar com as situações em casa e esperar mais um pouco até voltar à rotina normal.

Jornada dupla, tripla...

Desde que a pandemia começou, a pediatra Marcelle Amorim, 41, tem sempre a companhia de algum dos filhos na cama. Dante, 10 anos, e Helena, 8, passaram a acordar no meio da noite e a ir para o quarto dela. “Sempre vai um ou outro. Quando não são os dois.” Ela sente que as crianças estão bem mais ansiosas. Nos primeiros dois meses de quarentena, Helena fazia malas e pedia para viajar.

Acostumados a ir para Teresina ver a família a cada dois meses, a saudade dos avós aperta. Já perderam duas viagens que estavam programadas, uma na Semana Santa e outra nas férias de julho. “Não dá para a gente arriscar. Mesmo que faça exame antes, tem todo o trajeto, avião, é perigoso”, lamenta. Para amenizar um pouco, em um fim de semana, Marcelle os levou a Corumbá para um piquenique dentro do carro mesmo. Depois disso, Helena contentou-se.

Médica da Secretaria de Estado de Saúde, Marcelle não teve opção de ficar de home office. Os horários de trabalho dela são, principalmente, pela manhã e duas vezes à noite, em plantões de 12 horas. Os filhos estudavam no período matutino. Agora, não conseguem acompanhar as aulas on-line. “Eles não dão conta de ficar uma hora e meia na frente do computador”, reclama a mãe.

Médica e professora

Como os vídeos ficam gravados, Marcelle chega do trabalho, por volta das 14h, e começa a segunda jornada: de professora. Fica cerca de uma hora e meia com Helena e mais uma hora e meia com Dante. Estudar com os dois ao mesmo tempo, ela considera impossível. Mesmo assim, não é fácil: “A Helena é tranquila, mas o Dante reclama muito”.

De manhã, as crianças ficam livres, fazem apenas uma ou outra atividade mais rápida de caligrafia ou outro tema. Antes, ainda faziam atividades físicas — taekwondo, balé. Para a médica, o aprendizado não tem sido o mesmo, mas ela conversou com a equipe pedagógica da escola e ficou mais tranquila. “Ela falou para fazer o que der e que o currículo do ano que vem está sendo refeito. Para mim, a finalidade é manter o hábito de estudo, a responsabilidade. Claro que quero que aprendam, mas o hábito é mais importante”, explica.

O tempo de tela é outra coisa que preocupa Marcelle. “Eu sempre tentei seguir a recomendação de só duas horas por dia, mas, sem atividades, fica difícil.” Dante é o que mais abusa, com videogame e conversando com os amigos. Ela já planeja estratégias para diminuir o uso. Mesmo assim, não pretende mandar as crianças à escola até que saia a vacina. “Eu não quero arriscar minha sogra, que fica muito com eles. Até lá, é administrar o estresse.”