40 anos de democracia

Parte II — Anarquia militar mexe com governo, diretas e sucessão

Bomba explode no Riocentro, mas quem se fragmenta é o governo Figueiredo. Campanha pela eleição presidencial direta ganha as ruas, só que não obtém votos na Câmara. Solução para a oposição é jogar as fichas no Colégio Eleitoral

No gramado do Congresso, Diretas Já escrito pelos manifestantes contra a ditadura -  (crédito: Luiz Marques/CB/D.A Press)
x
No gramado do Congresso, Diretas Já escrito pelos manifestantes contra a ditadura - (crédito: Luiz Marques/CB/D.A Press)

O atentado do Riocentro, resultado da anarquia militar, implode o governo, conforme anotou o ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel. Em 6 de agosto de 1981, o ministro Golbery do Couto e Silva — que também trabalhava pela abertura política desde o governo Geisel — demite-se da Casa Civil de Figueiredo, que semanas depois sofreria um infarto. Na tentativa de segurar as rédeas da conjuntura política, o governo envia ao Congresso um projeto de lei para turbinar o PDS nas eleições de 1982 e tentar conter o avanço da oposição.

Em janeiro, é aprovado um projeto que impede as coligações partidárias para a eleição de 15 de novembro e estabelece a vinculação do voto ao mesmo partido. Isso, porém, não salva o Palácio do Planalto da derrota maiúscula, meses depois, no pleito para os governos estaduais. Foram eleitos Tancredo, em Minas; Leonel Brizola, no Rio de Janeiro (não sem antes denunciar o Escândalo da Proconsult, empresa que computava os dados das urnas e dera a vitória ao pedessista Moreira Franco); Franco Montoro, em São Paulo; e José Richa, no Paraná.

Diretas Já

Nesse momento, Tancredo emergiria como a mais hábil liderança da oposição, mantendo diálogos tanto com personagens dentro do governo, quanto de fora dele. Como resumiria Aureliano, em depoimento a Ronaldo Costa Couto: "(Tancredo) nunca mergulhou profundamente no radicalismo. Então, ele necessariamente não assustava, criava condições de tranquilizar", salientou o futuro ministro das Minas e Energia. Pouco depois da posse no governo mineiro, em 15 de março de 1983, o futuro presidente passou a pregar publicamente uma concertação política nacional.

Ainda neste ano, o movimento de eleições diretas para a sucessão de Figueiredo começa a encorpar. Mas foi em uma entrevista de Teotônio Vilela ao programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, que a ideia das Diretas Já toma forma. O ex-senador por Alagoas era insuspeito: apoiara a ditadura militar e desapontou-se, assim como decepcionou-se com a abertura política. Para o Menestrel das Alagoas — homenagem em forma de canção feita por Milton Nascimento e Fernando Brant, e imortalizada na voz de Fafá de Belém —, era preciso acelerar a redemocratização. A insatisfação, no governo e na sociedade, era turbinada por uma inflação que fechou 1983 em 211% e um Produto Interno Bruto negativo de 2,9%, conforme dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A primeira manifestação pelas diretas foi no município de Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife, em 31 de março de 1983. Em 15 de junho de 1983, Goiânia saiu às ruas para pedir eleições presidenciais com voto popular.

Mas foi no ato de Curitiba, em 12 de janeiro de 1984, que as Diretas Já tornaram-se um movimento irreversível. Sessenta mil pessoas, aproximadamente, compareceram à confluência da Rua XV de Novembro com a Praça Osório, na Boca Maldita, para escutar o locutor esportivo Osmar Santos convocar ao carro de som uma vasta lista de oradores. Do evento participaram Tancredo, Montoro, Richa e o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães — entre outros.

Em 10 de abril, foi a vez do comício no largo da Igreja da Candelária, no Centro do Rio. A organização (não explícita) do evento ficou a cargo do governo fluminense, que tinha Brizola à frente. Na manifestação, além do governador, lá estiveram Tancredo, Ulysses, Montoro, Richa, o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, o primeiro deputado federal indígena Mário Juruna, a cantora Fafá de Belém, além de, novamente, Osmar Santos como mestre de cerimônia. Mas quem roubou a cena foi Sobral Pinto. Leu para uma multidão em silêncio o artigo primeiro da Constituição vigente, de 1967 — "O Brasil é uma República Federativa, constituída sob o regime representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios".

Mas, ao finalizar a declamação do parágrafo 1º ("Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido"), obteve a consagração. Pelo gesto, foi homenageado pela canção Vovô Sobral, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, incluída no LP Pelas Terras do Pau-Brasil, do sambista e pai do também sambista Diogo Nogueira.

A apoteose veio em 16 de abril, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Mais de 1,5 milhão de pessoas compareceram no último comício das Diretas Já. Antes, em 25 de janeiro, os paulistas tinham mostrado engajamento na campanha, ao reunirem aproximadamente 300 mil pessoas na Praça da Sé. Naquele dia, Chico Buarque cantou Apesar de você, Moraes Moreira puxou o Frevo das Diretas e a atriz Fernanda Montenegro — mãe da premiada Fernanda Torres, por Ainda Estou Aqui — cobrou de Figueiredo "anistia total para o povo através das diretas", conforme relato de Elio Gaspari, em A ditadura acabada.

Os comícios empurravam o governo contra a parede e aumentavam a pressão pela aprovação, no Congresso, da Proposta de Emenda Constitucional 05/1983, a Emenda Dante de Oliveira. De autoria do deputado do PMDB mato-grossense, pretendia restaurar as eleições diretas para presidente com novas redações para dois artigos da Constituição de 1967.

Segundo a PEC, o artigo 74 seria reescrito assim: "Presidente e vice-presidente da República serão eleitos, simultaneamente, entre os brasileiros (...) por sufrágio universal e voto direto e secreto, por um período de cinco anos". Já o artigo 148 diria: "O sufrágio é universal e o voto é direto e secreto." Pesquisa do Ibope à época aponta que 84% da população eram favoráveis à emenda.

O governo Figueiredo, porém, não se intimidaria com a pressão das ruas e as articulações da oposição. Dias antes da votação da PEC no Congresso, em 25 de abril de 1984, é decretado estado de emergência no Distrito Federal, em Goiânia e em nove municípios do entorno da capital. É suspenso o direito de reunião e recrudesce a censura à imprensa. Brasília estava isolada. O objetivo era evitar manifestações pró-Diretas e peitar o Congresso. Ulysses classifica a medida como "ato ditatorial que afronta a nação".

Como executor do estado de emergência, ninguém menos que o agora comandante militar do Planalto, Newton Cruz. Manda bloquear estradas e prender seis pessoas que jejuavam, em frente à Catedral de Brasília, a favor das Diretas — dois jornalistas que conversavam com os manifestantes também foram detidos. Dois dias antes da votação da PEC, o general desfila na Esplanada dos Ministérios montado sobre um cavalo branco, à frente de 6 mil militares e 116 tanques e carros de combate. Oficialmente, tratava-se de celebrar o aniversário do Comando Militar do Planalto.

Buzinas e panelas

Na véspera da votação da PEC, os brasilienses fizeram um buzinaço na Esplanada dos Ministérios. Por entre os carros, Newton Cruz reagiu chutando e distribuindo golpes de rebenque. "Buzina agora, seu filho da puta!", berrava, irado. Em depoimento a Ronaldo Costa Couto, o general justificou seu gesto afirmando que agiu conforme a Constituição.

"Pessoalmente, eu era a favor das Diretas. Agora, o general Newton Cruz estava cumprindo sua parte como executor das medidas. E passou a ficar junto à opinião pública como o quê? Como o carrasco das eleições diretas", disse, conforme registrado em Memória viva do regime militar — Brasil: 1964-1985. As buzinas tocaram até a madrugada de 25 de abril, data da votação da PEC, acompanhadas de um panelaço.

Mesmo cercado por policiais militares, na manhã da votação milhares de pessoas ocuparam o gramado em frente ao Congresso. Brincavam, cantavam e dançavam. Em certo momento, deitaram-se e escreveram "Diretas Já" com seus corpos. Com a imprensa sob censura, o pouco que se sabia era por meio de relatos passados para sindicatos e outras entidades da sociedade civil.

A sessão entrou pela madrugada de 26 de abril. Ao final, a frustração: faltaram 22 votos para que a PEC fosse aprovada. Teve 298 dos 320 (dois terços dos deputados) necessários, sendo que o governista PDS ajudou com 54 — além de 65 contrários e três abstenções. De acordo com o site Memorial da Democracia, foram 112 ausências de parlamentares pedessistas. A proposta foi arquivada.

Vivendo a ressaca da derrota, a oposição vislumbra duas saídas: continuar brigando pelas diretas e se articular pela eleição indireta, "com uma candidatura que pudesse vencer no Colégio Eleitoral, com os votos dos partidos de oposição e de dissidentes do PDS" — segundo o jornalista José Augusto Ribeiro, em Tancredo — A noite do destino. Nesse momento, os esforços convergem na direção de Tancredo, via articulação de Montoro. O governador paulista é incumbido de convencer Ulysses de que sua postulação dividiria a oposição. Argumenta, também, que o mineiro aglutinaria as forças de seu estado, sucesso que o presidente da Câmara não obteria em São Paulo.

Como resumiu o então secretário-geral do PMDB, Afonso Camargo, a José Augusto Ribeiro: "Se a mudança ainda não pode ser realizada por meio da eleição presidencial direta, a 'mudança já' será 'Tancredo já', no Colégio Eleitoral".

 

postado em 30/03/2025 03:55