
Ator de peso no processo de redemocratização do Brasil, Pimenta da Veiga atuou nos bastidores para a escolha de Tancredo Neves como candidato da oposição à chapa da ditadura militar na eleição presidencial, no Colégio Eleitoral, em janeiro de 1985. Líder do PMDB na Câmara à época, articulou a adesão da Frente Liberal e a composição com setores moderados do regime dos generais. Com a celebração, no sábado passado, do 40º aniversário da redemocratização do Brasil, nesta entrevista ao Correio Braziliense, Pimenta lembra de momento críticos daquele período. E compartilha sua visão sobre os riscos pelos quais a democracia passou com a tentativa de golpe de Estado tramada depois da eleição presidencial de 2022. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O senhor foi um dos articuladores da candidatura de Tancredo no Colégio Eleitoral. Como foi o processo de escolha dele como candidato da oposição?
Foi um momento raro na política brasileira, porque vivemos, àquela época, primeiramente, o espetáculo das ruas. Porque a candidatura de Tancredo, na verdade, começou na campanha das diretas. Foi ali que ele e Ulysses Guimarães tiveram uma postura de desprendimento, de patriotismo, que deveria servir de exemplo, inclusive, para este momento que vivemos. Ali ficou estabelecido que, se as diretas (com a aprovação da emenda Dante de Oliveira no Congresso) fossem vitoriosas, o candidato seria Ulysses. Mas, se não fossem, seria Tancredo. Tudo foi cumprido à risca. O mais entusiasmado defensor das diretas naquela memorável e histórica campanha estabelecida no Brasil inteiro foi Tancredo. Mesmo descrendo do sucesso, se empenhou profundamente. E, depois, com a derrota da emenda Dante de Oliveira, o primeiro a confirmar o nome de Tancredo na eleição indireta foi Ulysses. Foi, realmente, um momento raro de desprendimento, de patriotismo, de grande amor ao país. O Brasil está precisando reviver atitudes como aquela.
Nos bastidores, havia outros nomes cogitados antes da confirmação de Tancredo. Qual foi o papel do senhor nessa articulação?
Sabíamos que, não obstante existirem outros atores políticos importantes naquele processo, o que precisávamos era de alguém que tivesse a capacidade de unir o Brasil e de não despertar desconfianças. Tancredo tinha essa capacidade. Conseguiu unificar o Brasil e dar aos que iam deixar o poder a certeza de que não seriam o alvo principal de sua ação. Ele queria que o país começasse uma nova fase de concórdia, de entendimento e, portanto, iria deixar para trás o ódio, a dureza, aqueles tempos ásperos que tínhamos vivido até aquele instante.
Como foi a relação do PMDB com a Frente Liberal e com José Sarney nesse período? Havia resistência à presença de Sarney como vice?
Esse foi um dos momentos mais difíceis, porque o PMDB, com todo direito, era o principal protagonista daquilo. No entanto, sabíamos, por outro lado, que se não agregássemos novas forças políticas, nada aconteceria. Sob o comando de Tancredo — e, nesse episódio, também de Ulysses —, conseguimos agregar figuras de grande expressão. Por exemplo: pelo PFL, vieram Jorge Bornhausen, que era o presidente do partido, e Aureliano Chaves, que teve um papel também de grande importância. E, no momento final, a chegada de Sarney. É preciso relembrarmos que Sarney, até a véspera, era o presidente do PDS, que era o partido oficial, que havia tentado encaminhar uma candidatura para enfrentar a de Tancredo. Mas, a verdade é que, naquela ocasião, houve um momento de grande bom senso no Brasil. Foi um momento sublime.
Quando Tancredo foi internado, na véspera da posse, qual foi a reação dentro do PMDB? Houve um plano imediato para lidar com essa situação?
Esse foi o momento mais grave que vivemos depois da campanha das diretas, da campanha de Tancredo — que foi uma reeleição indireta, mas que reunia multidões em praça pública. Vencido tudo isso, na véspera da posse, estávamos, me recordo, num jantar comemorativo na Embaixada de Portugal. Estávamos lá (o jurista) Paulo Brossard, Fernando Lira, que era ministro da Justiça, o Fernando Henrique Cardoso, que era líder no Congresso, eu — entre outros. E recebemos a notícia de que Tancredo tinha sido internado. Quando soubemos disso, fomos direto ao hospital (de Base). Lá, recebemos a informação de que o caso era grave e que iria ser submetido a uma cirurgia, o que estabelecia a dúvida: quem toma posse? Como é que é? O vice-presidente? O presidente da Câmara, que era Ulysses? Nisso entra com muita tranquilidade — e me dá muito boa impressão — o general Leônidas Pires Gonçalves e pergunta de forma muito singela: "O que diz a Constituição?" Ulysses tentou responder a essa pergunta de cabeça, mas procuramos uma Constituição.
E lá estava: a posse será do presidente e/ou do vice-presidente. Não obstante essa disposição expressa, houve um movimento na Câmara, liderado por alguns deputados de muita expressão até, que sugeriam a posse do Ulysses. Fiquei muito preocupado porque isso podia gerar uma divisão naquele momento preocupante. Mas o (jurista) Affonso Arinos soltou uma frase forte: "Sarney não foi eleito vice-presidente de Tancredo, foi eleito vice-presidente do Brasil. No impedimento do presidente, toma posse o vice-presidente." Fui para a Câmara para tentar esclarecer as coisas e botar água na fervura. Convoquei a imprensa, me lembro que à 1h da manhã, e fiz esse raciocínio. E aí passou a ser adotado. Às 7h da manhã, já estávamos, de novo, voltando à Câmara para preparar a posse, que efetivamente ia ser realizada.
O senhor acredita que a doença do Tancredo foi subestimada nesse período?
Não, tanto que o doutor Renault me deu o aviso. E, ao receber a informação dele, perguntei: "O senhor falou com o Ulysses?" Ele disse: "Estou indo para lá agora." Ele fez as comunicações. Mas o que havia? Tancredo havia perdido parentes com problemas abdominais e tinha medo de que uma operação não fosse bem-sucedida, como desgraçadamente não foi. Então, queria tomar posse, porque completava o trabalho de vida dele, porque ele sempre sonhou em ser presidente. Mas, naquele momento, mais do que a ascensão à Presidência, seria completar a transição política. Ele julgou que, se chegasse lá, estaria consolidada.
Havia alguma articulação para impedir que Sarney assumisse a Presidência?
Havia um resíduo de resistência militar, mas era um resíduo. A prova é que, quando houve a posse, não obstante a doença de Tancredo, tudo correu normalmente. Toda a solenidade foi cumprida, mesmo sem a presença do presidente que saía. Os militares tiveram comportamento muito adequado.
Como o senhor avalia a transição do governo Tancredo para o de Sarney?
Como líder do governo, participava de uma reunião diária com ele às 9h — eu, o ministro da Justiça e os líderes no Senado e no Congresso. Todos os dias abríamos os trabalhos às 9h para avaliar, primeiro, a situação do Tancredo, a evolução do quadro dele, e, depois, os problemas que o Brasil continuava vivendo, com desafios surgindo em todas as direções. Sarney, ainda inseguro, porque não sabia se era vice ou se era presidente, não podia tomar as próprias decisões. Impôs, na verdade, o ministério deixado por Tancredo, não mudou nada.
Todos os cargos definidos foram mantidos, até alguns que ele não tinha anunciado, mas que constavam de um relatório com nomes de pessoas de confiança. Respeitou tudo. Algumas reações ocorreram, mas aquela tragédia da doença do Tancredo e da internação dele acabou superando as questões menores que surgiam. Ao final, todo mundo queria muito a recuperação do Tancredo e, por isso, dava apoio até que Sarney pudesse devolver o poder a ele. Infelizmente, isso nunca aconteceu. Sarney foi se firmando como presidente. Fez um trabalho de transição notável. Se Sarney teve falhas na economia e em outros setores, ninguém pode negar que a transição política que construiu teve grande importância.
O governo Sarney teve que lidar com desconfianças. Como o senhor viu esse equilíbrio no início da Nova República?
Foi muito difícil. Tínhamos preocupações com os militares, mas é preciso dizer que não houve imposições de nenhum tipo. A escolha do Leônidas foi notável porque era um oficial muito respeitado por todas as Forças Armadas, não apenas pelo Exército. Tinha muito comando, muita firmeza, e era um democrata. Portanto, ajudou muito nessa parte. As outras questões, como a economia, foram mais complicadas. Todos conhecem o Plano Cruzado, todas aquelas medidas que ocorreram. Alguns ministros da Fazenda não estavam, talvez, bem preparados para a função. Havia muitas injunções políticas e o Brasil ainda não tinha uma receita para se livrar daquela maldita inflação, que era irmã da corrupção. Do ponto de vista político, o trabalho do Sarney foi extraordinário, porque essa transição foi inspirada em Tancredo, mas foi executada por Sarney.
O senhor acredita que, se Tancredo tivesse governado, o Brasil teria tomado um caminho diferente?
Tancredo tinha adquirido sabedoria, tinha atingido o máximo da habilidade política, da compreensão das pessoas, do encantamento das lideranças, da esperança gerada. Foi realmente uma coisa que não vi em outro momento da minha vida. Tanto que a primeira entrevista depois da eleição foi tão importante que foi feita no plenário da Câmara. Nunca tinha visto isso. Foi tão perfeita que gerou um comentário que quero reproduzir. Tancredo não queria que o (ditador chileno Augusto) Pinochet viesse (para sua posse). Então, mandou uma farpa no Pinochet. Antes de acabar a entrevista, o Pinochet já tinha dito que não viria mais à posse, que era exatamente o que Tancredo queria.
Quais foram os principais desafios para consolidar a democracia naquele período?
Eram, primeiramente, mostrar que o governo democrático é mais eficiente. Não era possível que o governo ficasse errando, que a inflação disparasse, que a pobreza aumentasse. Mas, além disso, era preciso fazer a transição. Insisto nesse ponto porque temos exemplos de vizinhos nossos que, até hoje, não conseguiram completar uma transição política bem feita. E qual era a regra? Não estava escrita, não tinha sido proclamada, mas, na verdade, era o sentimento do qual todos estávamos imbuídos: não podíamos fazer concessões, mas, também, não podíamos fazer provocações. Eu, por exemplo, fui condecorado pelas três Forças Armadas. Frequentei o gabinete dos ministros da Marinha, da Aeronáutica e do Exército para conversar, dialogar e ajudar na concretização da transição. A eleição de Tancredo foi um ato de suma importância, mas podia ter sido desqualificada adiante. O espírito era esse, o esforço foi esse.
O que o senhor considera o maior legado de Tancredo para a política?
Acho que o legado de Tancredo é sua vida, que foi espetacular. Tancredo, muito jovem ainda, foi vereador, deputado estadual, deputado federal, ministro da Justiça de Getúlio Vargas. Depois, foi primeiro-ministro — o único do Brasil, já que o parlamentarismo durou pouco tempo. Foi governador de Minas, senador, deputado federal por inúmeros mandatos. Era um homem de enorme qualidade. Mas seu objetivo de vida era ser presidente da República. E, por um destino cruel, no momento crucial, quando a alcança, lhe é negada a posse devido à doença que o acometeu. Sua principal contribuição à política não foi material, foi evitar que essa transição ocorresse de forma desqualificada. Ou, pior ainda, que não tivesse ocorrido. Se tivesse um recrudescimento da ditadura, talvez hoje a história do Brasil fosse outra. Tancredo conseguiu, pelo que representava e pelos sinais que emitia, unificar o país. Não me recordo, em nenhum tempo deste país, de multidões tão grandes nas ruas em torno de uma candidatura indireta. Nem antes, nem depois de Tancredo. Representou a unidade nacional.
E o legado de Sarney?
É preciso lembrar que não era a figura central naquele momento. Teve uma dificuldade enorme em se colocar como presidente, porque ele mesmo dizia, até a morte de Tancredo, que estava ali provisoriamente. Reiterava isso constantemente para não parecer que estava usurpando direitos. Mas, depois que se efetivou, fez um trabalho que o Brasil deve muito a ele. Porque chegou à Presidência de forma inesperada, com toda a crise que isso gerou, e conseguiu, apesar das dificuldades, completar a transição com maestria.
E a recente tentativa de golpe de Estado, no fim de 2022. Como o senhor avalia esse episódio?
No meu primeiro mandato como deputado, o AI-5 ainda estava em vigor. Sei o que aquilo significava. Nenhum país evolui se não tiver liberdade. A democracia precisa ser a principal preocupação de todos os homens públicos. Vi com extrema preocupação — e com desencanto — o 8 de Janeiro. Houve, ali, uma clara tentativa de destruir a democracia. É imperdoável. Por outro lado, me sinto satisfeito ao ver que as instituições brasileiras se fortaleceram ao longo dos anos, tornaram-se muito sólidas.