
x
Rubens: "Na prática, os únicos beneficiados foram os militares, se considerarmos que não lhes foram impostas quaisquer punições pelos crimes que cometeram, ao passo que aqueles que lutaram contra a ditadura sofreram perseguições, prisões, torturas, exílio etc" - (crédito: Rafael Lima)
O retorno à democracia no Brasil completou 40 anos no sábado, após o fim da ditadura militar iniciada com o golpe de 1964. Para o coronel da reserva e autor do livro Diários da Caserna, Rubens Pierrotti Jr, porém, a transição democrática ainda está incompleta.
Em entrevista ao Correio, Pierrotti destaca que o Brasil nunca puniu devidamente os militares envolvidos no regime, marcado por repressão, perseguição a opositores e assassinatos. Em sua visão, essa leniência abriu caminho para uma nova tentativa de golpe de Estado, com ampla participação de militares e do ex-presidente Jair Bolsonaro, que foi investigada pela Polícia Federal (PF) e será julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Outro exemplo de iniciativas antidemocráticas preocupantes é o almoço oferecido pelo Clube Militar da Lagoa, no Rio de Janeiro, com ingressos a R$ 100, para comemorar o golpe de 64, em 31 de março, na avaliação de Pierrotti Jr.
Saiba Mais
O coronel da reserva afirma ainda que, se não houver punição aos envolvidos, o país continuará sujeito a outras ações antidemocráticas no futuro. Alerta, porém, que é preciso também agir para mudar a mentalidade e o ensino dentro das Academias Militares, e estabelecer uma relação mais firme da sociedade civil e do próprio governo federal para inibir tentativas de tomada do poder por grupos de militares.
Rubens Pierrotti Jr. ingressou na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (Espcex) aos 15 anos, e fez carreira na Força por mais de 30 anos, ocupando o comando 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista. Leia abaixo a entrevista com o autor:
O que difere o tratamento dado pelo Brasil após a ditadura militar em relação a outros países da América Latina, como Chile e Argentina?
A maior diferença foi a impunidade que ocorreu por aqui. Durante a “abertura lenta, gradual e segura” para a redemocratização do Brasil, os militares fizeram aprovar a Lei da Anistia. Em tese, essa lei estaria beneficiando a todos, tanto as pessoas acusadas de crimes políticos contra o Estado brasileiro, quanto os agentes da repressão. Na prática, os únicos beneficiados foram os militares, se considerarmos que não lhes foram impostas quaisquer punições pelos crimes que cometeram, ao passo que aqueles que lutaram contra a ditadura sofreram perseguições, prisões, torturas, exílio etc.
Como os militares envolvidos foram beneficiados?
Além de se livrarem das sanções, muitos militares, pasmem, ainda foram recompensados pelos crimes que cometeram. O (Carlos Brilhante) Ustra (condenado em 2008 por tortura durante o regime militar) foi um deles, promovido, pelo Exército Brasileiro, quatro postos acima, de coronel diretamente a marechal, pela atuação durante a ditadura militar. A pensão de marechal do Ustra continua a ser paga a suas duas filhas. Isso precisa ser revisto.
Essa falta de punição e memória sobre a ditadura contribuiu para a tentativa de golpe de Estado investigada pela Polícia Federal, que envolve os ataques de 8 de janeiro?
Sem dúvida. A prova disso é que os envolvidos agora pedem o quê? Anistia. É mais uma comprovação de que a Lei da Anistia de 1979 foi um erro. Não podemos repeti-lo. Mas não só isso. Se observarmos a história, os militares cultuam essa perniciosa tradição golpista há muito tempo. Nossa República nasceu de um golpe. Então, além da falta de memória, punição e reparação sobre a ditadura, precisamos entender esse movimento dentro de uma perspectiva mais ampla, histórica, e também onde isso tudo é gestado.
E onde as ideias são gestadas?
Os militares são contaminados por essa mentalidade golpista ainda nos bancos escolares, durante a formação militar. É um tema espinhoso, já escrevi a respeito sobre a “forma(ta)ção militar” e a necessidade urgente de reformular os currículos das escolas militares. A mentalidade golpista combinada com a falta de memória, punição e reparação são ingredientes explosivos.
Há risco de novos atentados contra a democracia no futuro se os envolvidos na tentativa não forem punidos?
Continuaremos, sim, sob risco latente de novas tentativas de golpe e ações contra a democracia brasileira. Acredito que a PF, a PGR (Procuradoria-Geral da República) e o STF têm andado bem até agora no sentido de dar uma resposta adequada e proporcional à gravidade dos atos golpistas. Insisto, contudo, em um ponto: além de punir os golpistas, é preciso cuidar do “ovo da serpente”.
Onde essa mudança precisa acontecer?
Imagine que, enquanto o Brasil pune os golpistas, cadetes (futuros oficiais) “aprendem” na Academia Militar que os criminosos são heróis, mártires do revanchismo da esquerda. Estudei nessas escolas e sei bem como os cadetes são doutrinados. Não será um trabalho fácil reformular os currículos militares. Primeiro, porque os militares vão chiar, como de praxe, mal-acostumados com governantes lenientes. Segundo, por uma questão prática: como mudar a mentalidade dos filhos dos militares, muitos deles que optam pela carreira das armas, depois de eles mesmos já serem contaminados por visões equivocadas no seio familiar?
Vimos, recentemente, o Clube Militar do Rio de Janeiro anunciar um almoço em 31 de março para comemorar o golpe de 1964. O que ainda permite que ações assim ocorram?
Somos nós, brasileiros. No mês passado, motivado pelo premiadíssimo filme Ainda estou aqui, o Levante Popular da Juventude fez um protesto em frente ao edifício onde mora o general José Antônio Nogueira Belham, ex-comandante do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações — Centro de Operações de Defesa Interna, principal órgão de repressão da ditadura). O militar é acusado pelo Ministério Público Federal pelo assassinato e desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva. Palmas para esses jovens! Ações como essas deveriam ser mais comuns.
E como você vê essa iniciativa do Clube Militar?
Esse almoço no Clube Militar da Lagoa é um deboche contra os brasileiros, de militares que se acham acima da lei, um escárnio contra Rubens Paiva, contra Fernando Santa Cruz, contra Stuart Angel e tantas outras vítimas da ditadura. Alô, Levante Popular da Juventude, estão sabendo do almoço? Que tal darem uma passadinha por lá? Deixo também um alerta: esse almoço não é coisa somente dos delírios do “pessoal de pijama” (oficiais da reserva ou reformados). Muitos militares da ativa frequentam o Clube, têm contato e são influenciados por antigos colegas e comandantes.
O senhor faz a distinção entre “oportunistas” e “golpistas” nessa tentativa que será julgada pelo STF. Na sua visão, por que o golpe não ocorreu? A PF avalia que foi porque comandantes das Forças não embarcaram no plano.
A “Intentona Bolsonarista” não obteve êxito por algumas razões. Cito a própria inépcia dos golpistas; falta de apoio externo (em especial, dos EUA) e interno (como da imprensa); a resposta oportuna e adequada do governo federal, principalmente em não decretar GLO (operação de garantia da lei e da ordem), deixando de colocar na rua uma tropa não confiável, porquanto conivente com os acampamentos golpistas. Respondendo à sua pergunta mais diretamente: não houve falta de oportunistas (a imensa maioria), mas, sim, de golpistas ativos. “Não embarcar no plano” quer dizer que o comandante do Exército e o Alto Comando do Exército decidiram não apoiar as ações diretamente, mas isso não significa que não estivessem na torcida.
Como assim?
Eu comparo com o (general Humberto) Castello Branco, que não se envolveu diretamente no golpe de 1964, mas se tornou o primeiro presidente da ditadura militar, um claro exemplo de oportunista, de um golpista passivo. Nos tempos atuais, o general (Hamilton) Mourão, por exemplo, eleito senador, por que se envolveria diretamente na tentativa de golpe? Preferiu ficar na torcida. Se desse certo, ótimo para ele. Faria parte do governo golpista. Se não desse, como não deu, ele garantiria o cargo de senador para proferir declarações estapafúrdias e defender a anistia para os colegas de farda.
O presidente Lula assumiu o Planalto em meio a uma relação tensa com os militares e escalou o ministro da Defesa, José Múcio, para acalmar os ânimos. Há precedentes desse tipo de tratamento?
Essa relação delicada com os militares não é exclusividade do governo Lula. O Ministério da Defesa foi criado em 1999 durante o governo FHC (Fernando Henrique Cardoso). A questão é que os militares nunca engoliram bem essa mudança de status, a perda de poder pelo rebaixamento dos ministros a comandantes de cada Força. Por isso, para não ferir suscetibilidades, ao longo dos anos, a nomeação do ministro da Defesa tem sido “negociada” com os militares. Isso, por si só, já desvirtua o cargo, subverte a essência. A ministra Maria Elizabeth Rocha, que acabou de assumir, como primeira mulher, a presidência do Superior Tribunal Militar (STM), declarou que o poder civil é que tem de nortear o poder militar; e não o contrário. No Brasil, às vezes, temos de falar o óbvio. Mas como se o ministro da Defesa, sistematicamente, tem cumprido um papel de títere dos militares?
Essa relação branda é adequada no contexto com tantos militares investigados na tentativa golpista?
O Múcio chegou a defender os acampamentos que pediam golpe, como manifestações democráticas, e passa pano o tempo todo para os militares. Enfim, na minha opinião, o Múcio já deveria estar fora há muito tempo do cargo, que não vem honrando. O presidente Lula é um hábil negociador, mas isso não pode adentrar pela leniência. Essa relação branda adotada pelo presidente Lula e por governos anteriores não é acertada e só atrasa a longa transição da ditadura para a democracia que já dura 40 anos, e não se completa.