
— "É incontestável que, no momento em que nós formos abrir à mulher o campo da política, ela terá necessariamente de ceder diante da superioridade do nosso sexo nesse terreno".
— "Qual é o seu objetivo, deputada Sâmia? Quer que eu encerre a sessão? Fique calada e respeite os demais deputados".
As duas frases foram verbalizadas em um intervalo de 133 anos. A primeira, dita pelo deputado Lauro Sodré, em 1890, durante a Assembleia Nacional Constituinte, fazia oposição às reivindicações das mulheres da época por mais participação feminina, sobretudo com a defesa do direito ao voto feminino. A segunda, do deputado Coronel Zucco, em 2023, durante a Comissão Parlamentar de Inquérito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (CPI do MST), no Congresso, serviu como um espelho do passado, por expressar um sentimento de obediência e submissão que as mulheres devem aos homens, segundo a ótica machista.
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Se hoje podemos dizer que em 1890 os tempos eram outros, em 135 anos poderão dizer o mesmo dos comentários feitos pelos homens de 2025. "Não é aceitável relevar falas machistas em função da idade, a gente sabe que existe uma questão geracional, mas isso não é justificativa", avalia a professora e pesquisadora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB) Michelle Fernandez.
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Principalmente quando as falas "diminuem todas as competências que ela tem", comentou, em referência à declaração recente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a escolha do nome de Gleisi Hoffmann para ocupar o cargo de ministra da Secretaria de Relações Institucionais (SRI). "Eu quero mudar, restabelecer com vocês (Câmara dos Deputados e Senado), por isso eu coloquei essa mulher bonita para ser ministra das Relações Institucionais", afirmou o presidente, durante lançamento do programa Crédito do Trabalhador, na quarta-feira.
"Tendo em vista que a gente está falando de uma mulher que ocupa um cargo de liderança, de poder, que tem muitas outras qualidades que podem ser ressaltadas e que efetivamente a fizeram chegar naquele cargo, nenhuma delas tem relação com a beleza dessa mulher", ressaltou a cientista política.
A lista de frases machistas e misóginas no campo da política ultrapassa os tempos e parece não haver indicativo de que a beleza de uma mulher em situação de guerra — como feito pelo ex-deputado estadual de São Paulo Arthur do Val, sobre as ucranianas, em 2022 — seja mais importante do que a situação de violação de direitos humanos em que ela se encontra.
Mas, assim como vale a crítica para os homens do espectro político ideológico progressista quando são machistas e misóginos, vale para as mulheres do espectro conservador. "Não basta ser mulher para defender os direitos das mulheres", disse a pesquisadora. "Sabemos que os direitos das mulheres têm mais possibilidade de serem defendidos quando temos mulheres em postos de liderança na política de forma geral, mas isso não basta, a mulher precisa ter alinhamento com esses direitos", disse a pesquisadora. Neste rumo encontra-se o PL Mulher. "O PL Mulher vai defender um estereótipo de gênero, que minimiza as mulheres e as coloca em uma posição inferior", explicou a professora.
Em 2023, o PL Mulher se estabeleceu como um segmento do Partido Liberal (PL) — que tem o ex-presidente Jair Bolsonaro como um dos filiados, personagem alvo do movimento "Ele Não", durante as eleições presidenciais de 2018 — com o objetivo de promover a participação feminina na política. De 2023 para 2024, o número de filiações femininas no partido foi de 345 mil para 399 mil, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Entre as pautas, o fim das cotas de 30% para mulheres na política, com a justificativa de promover a participação feminina pelo seu potencial e protagonismo, e não apenas para cumprir uma exigência legal, a defesa da família, a liberdade religiosa e o direito à vida desde a concepção são algumas delas.
"Cenário justo"
Por outro lado, a deputada federal Maria do Rosário (PT) atribui à cota de 30% para candidaturas femininas o crescimento na presença de mulheres nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados. "No entanto, ainda estamos muito distantes de um cenário justo", comentou a deputada. Apesar disso, para ela, "a organização das mulheres nos mais diversos espaços da sociedade foi fundamental para impulsionar políticas públicas e mudanças institucionais".
Na Câmara, embora em alguns momentos as mulheres da bancada feminina consigam atuar juntas, "há diferenças profundas de visão quando falamos sobre políticas para a igualdade de gênero. Enquanto algumas de nós lutamos para ampliar os direitos das mulheres, há grupos que se organizam para restringi-los. Precisamos de mais mulheres na política, mas também precisamos garantir que essas mulheres sejam comprometidas com o avanço dos nossos direitos e não com retrocessos", destacou Maria do Rosário.
Desafios na paridade
O Judiciário também apresenta desafios na paridade de gênero. "Quando me formei em 1997, regras carregadas de preconceito ainda eram comuns como, por exemplo, a aferição do cumprimento de saias na entrada de fóruns. Atualmente, os debates sobre a paridade contribuem para que passos sejam dados em direção ao melhor acolhimento de mulheres. No entanto, ainda há uma longa caminhada a ser realizada", comentou a defensora pública da União Daniele de Souza Osório.
Ao longo dos 17 anos de carreira, Daniele foi a única mulher a constar em uma lista tríplice para a Defensoria Geral Federal. Para ela, esse fato não lhe traz orgulho, mas preocupação "pois demonstra que embora existissem candidatas nas diversas eleições realizadas no período, elas não contabilizaram votos suficientes para estar entre os três primeiros colocados", explicou. Este tipo de acontecimento decorre de que, normalmente, as mulheres são cobradas além daquilo que é exigido dos homens. "A ascensão funcional costuma ser mais árdua para as mulheres, aspectos de suas vidas privadas são cobrados, como por exemplo se possuem filhos e se têm tempo suficiente para se dedicar à carreira."
Para enfrentar essas adversidades, a Resolução nº 525/2023, aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), implementou ações afirmativas de gênero com o objetivo de ampliar a participação feminina nos tribunais de segundo grau. Do total de magistrados no país, 39% são mulheres.
Embora tenha aumentado o número de mulheres no sistema de Justiça como um todo e sobretudo no Judiciário, ainda estão ausentes a paridade efetiva e a representatividade de classe e raça. Os números da composição étnica desses espaços não refletem o conjunto multiétnico da sociedade brasileira, lembra Daniele. Entre magistrados, negros e pardos representam apenas 11%.