
Este mês eu vou completar 57 anos no Correio Braziliense. Mais de meio século. Entrei nesta casa em 1968, o ano que Zuenir Ventura disse que "não acabou" no título do livro, no qual conta como transcorreu no Brasil o ano que iria se tornar lendário por conta de manifestações estudantis contra o sistema.
Foram momentos dramáticos, mas nada parecido com a agonia que se viveu na véspera do dia 15 de março de 1985, 40 anos atrás. Estava tudo preparado para a posse de Tancredo Neves, primeiro presidente da Nova República, período que sucedeu a ditadura militar. À época, eu era responsável pela cobertura jornalística no Itamaraty (para entender de política externa, fazia algumas cadeiras no curso de Relações Internacionais na UnB, que tinha à frente o embaixador Rubens Ricúpero).
Na manhã de 14 de março (era quinta-feira), os primeiros chefes de Estado a chegar vinham de perto: presidentes Raúl Alfonsín, da Argentina, e Julio Maria Sanguinetti, do Uruguai. À tarde, a revoada de aeronaves na Base Aérea ficou mais intensa. Um Ilyushin, de fabricação soviética, trouxe o comandante sandinista Daniel Ortega, até hoje no poder na Nicarágua. Eram tantas os governantes estrangeiros que vinham prestigiar a redemocratização brasileira que o então chanceler Saraiva Guerreio decidiu ficar direto, recebendo os visitantes ao pé da escada dos aviões.
Tudo transcorria de acordo com o previsto até o fim da missa na Dom Bosco, de onde Tancredo saiu com uma expressão de dor, levando várias vezes a mão à região do baixo ventre. Não deu para aguentar mais. Precisava ser atendido com urgência. Um raio não teria efeito maior do que essa notícia na Redação. E agora?
Com o presidente eleito deitado numa mesa de cirurgia do Hospital de Base, quem assumiria os destinos da Nação? O vice-presidente eleito, que ainda iria tomar posse, ou o presidente da Câmara dos Deputados? A discussão se prolongou noite adentro. Por falta de uso, não estava à mão a Constituição, guardada na biblioteca do Correio, que já tinha fechado a porta. O meio mais rápido era alguém trazer a Carta Magna até nós. Foi o que fez meu sobrinho Eduardo Sabo, que montado em sua moto veio com a mochila com os livros do curso de Direito da UnB, nas costas, nos salvar.
Enquanto o Brasil inteiro discutia se seria José Sarney ou Ulysses Guimarães a substituir o enfermo em tão má hora, voltei à Base Aérea para uma última cobertura. Eram mais de duas horas do dia 15 de março, quando desembarcou de Cuba o gigante barbudo. Mesmo à distância do curral da imprensa, deu para entender, por leitura labial, a pergunta atônita de Fidel Castro a um diplomata brasileiro: "Qué pasa?"
Finalmente, veio a conclusão das consultas entre juristas, especialistas e políticos, que decidiram aquilo que a Constituição era omissa. Será o vice-presidente eleito!
"Eu soube que ia assumir a Presidência às 3 horas da manhã do dia 15", relembrou Sarney, três semanas atrás numa memorável entrevista ao Correio, publicada domingo, 23 de fevereiro.
Quando raiou o dia, a edição estava fechada. Voltei para casa, tomei banho e um café forte, e me vesti depressa para chegar cedo à posse no Palácio do Planalto. Quando José Sarney, do alto de seus quase 55 anos, emocionado, abriu o discurso dizendo "estou com os olhos de ontem", eu comentei baixinho, no quadrado da imprensa, frente às autoridades: "Eu também, presidente".
Assim, insone, vi renascer a democracia no Brasil.