
Silvestre Gorgulho — jornalista, ex-secretário de Cultura de Brasília, foi secretário de Imprensa do Governo José Sarney de 1987 a 1988
José Sarney é um predestinado. Várias imagens do filme Maranhão 1966, de Glauber Rocha, sobre sua posse em 31 de janeiro de 1966, como 48º governador do Maranhão, são usadas num outro épico do cineasta baiano: Terra em Transe.
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Premiado em Cannes e outros grandes festivais, Terra em Transe — que tem no seu elenco figuras notáveis da arte nacional, como Jardel Filho, Paulo Autran e José Lewgoy — sobrevive atualíssimo em sonhos revolucionários, golpes, traições políticas, censuras, poesia, populismo, críticas da esquerda, críticas da direita, tropicalismo para se tornar um clássico do cinema brasileiro.
A vida e a obra do editor, jornalista, político, escritor e poeta José Sarney seguem a mesma trajetória utópica, polêmica e conflitante de uma verdadeira terra em transe. E não é para menos. Não só por ter participado na juventude de movimentos literários em jornais e revistas, mas por ter ocupado todos os cargos eletivos do país. Dos 94 anos, 75 foram vividos no transe jornalístico, cultural e político. José Sarney é um recordista da República. O mais longevo político da história brasileira. Foram 61 anos de mandatos eletivos de primeira grandeza: 39 como senador — cinco mandatos, sendo um incompleto por ter sido eleito vice-presidente da República, em 1985. Como deputado foram 12 anos, como governador foram 5 e como presidente da República também 5 anos. Foi quatro vezes presidente do Congresso Nacional e, como senador, representou o Maranhão e o Amapá. Ultrapassou o recorde do Patrono da Casa, Ruy Barbosa, que ocupou a cadeira do Senado por 31 anos. Sarney ocupou-a por 39. O mais surpreendente é que chegou ao mais alto posto político do país, tendo a complexa missão de substituir Tancredo Neves como presidente da República na vida real, quando Tancredo era o Salvador da Pátria no imaginário popular.

José Sarney é um pensador. Seu lado intelectual é menos lembrado, mas é mais forte e consistente do que o lado político. A literatura fala muito mais alto em sua biografia, ganhando em 14 anos da política.
Em 1947, começa como profissional ao ganhar um concurso de reportagem do jornal O Imparcial. Aos 19 anos, cria o Suplemento Literário de O Imparcial e, logo, é eleito para a Academia Maranhense de Letras. Em 1950, edita a revista A Ilha, com Luiz Carlos de Bello Parga e Bandeira Tribuzzi. Lançou seu primeiro livro de poesia, Canção Inicial, em 1952. José Sarney contabiliza 75 anos de literatura. Escreveu 122 livros com 172 edições, vários deles traduzidos em 12 idiomas. Hoje, é membro e decano da Academia Brasileira de Letras.
A história há de registrar que o governo José Sarney foi um divisor de águas em relação ao meio ambiente. Para refrescar a memória, foi Sarney que criou o Ibama, na implementação do Prev-Fogo, na criação do maior número de unidades de conservação num só governo e, mais importante, reduziu em 30% as queimadas e desmatamentos na Floresta Amazônica. A Conferência de Desenvolvimento Sustentado da ONU, de 1992, seria realizada no Canadá. Foi José Sarney que se empenhou, pessoalmente, e conseguiu trazê-la para o Brasil. O ex-presidente orientou o embaixador Paulo de Tarso Flecha de Lima a negociar a troca de Toronto pelo Rio de Janeiro, oferecendo a Secretaria-Geral do evento ao canadense Maurice Strong. Assim, a Rio-92 se tornou referência ambiental do planeta, quando 175 chefes de Estado e de governos marcaram presença na primeira semana de junho de 1992.
Dois fatos ainda a relembrar: foi Sarney que proibiu a pesca da baleia no Brasil e, no seu governo, o país deixou de ser vilão do meio ambiente para dar exemplo ao mundo.
Vindo do meio rural, profundo conhecedor e defensor da Embrapa, Sarney resolveu dar condições para a agricultura de sequeiro. Criou o Ministério da Irrigação e chamou o ex-presidente da Embrapa, Eliseu Alves, para dirigir a Codevasf. Deu-lhe a missão: investimento em projetos públicos de irrigação e atendimento para a agricultura nordestina da região do Vale do Rio São Francisco. No início de seu governo, a área irrigada era de 2,1 milhões de hectares. Em 1990, quando deixou o governo, a área irrigada era de 2,4 milhões de hectares.
A cultura brasileira teve dois momentos históricos: a criação do Ministério da Cultura, em 1985, e a aprovação da Lei de Incentivos Fiscais em benefício às atividades culturais, batizada como Lei Sarney. Quem se lembra? A Lei Sarney foi assinada em 2 julho de 1986. A escolha da data tinha motivo. O autor queria fazer três homenagens: ao Dia da Bahia, "Dois de Julho", ao maior escritor brasileiro Jorge Amado e à aniversariante do dia, escritora Zélia Gattai, mulher de seu compadre baiano. O casal veio a Brasília especialmente para, no Palácio do Planalto, participar da cerimônia de assinatura da lei.
A Lei da Cultura é uma teimosia de José Sarney. Durante o seu primeiro mandato de senador, em 1972, apresentou a primeira proposta de uma lei de incentivos à cultura. Houve dificuldades para implementar a parceria público-privada em pleno governo militar. De 1972 a 1984, por cinco vezes, José Sarney tentou aprovar uma lei da cultura. Só conseguiu fazê-lo em 1986, porque era o presidente da República. A sistemática da lei era pautada no cadastramento da empresa proponente e não por projetos. Isso deu margem a várias distorções que precisavam ser adequadas.
Essa adequação veio em 1991, com o presidente Fernando Collor, quando o então secretário de Cultura, embaixador Sérgio Rouanet, fez aperfeiçoamentos na Lei Sarney e mandou um novo projeto de lei para o Congresso. Atualizou o anterior, agora pautado no cadastramento de projetos e não de empresas. Collor sancionou a nova lei em 23 de dezembro de 1991 e fez questão de mudar-lhe o nome. A Lei Sarney virou Lei Rouanet. O mercado político é assim mesmo. Cheio de vaidades. Não faltam padrinhos para filhos bonitos.
Lusófono de carteirinha, nasceram da cabeça de José Sarney duas iniciativas culturais globais: a criação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP) e o tombamento de Brasília como Patrimônio Cultural da Humanidade, chancelado pela Unesco em 7 de dezembro de 1987. Ambos os projetos foram tocados com competência e determinação pelo ex-ministro da Cultura e ex-governador de Brasília, José Aparecido de Oliveira.
José Sarney viu a luz do sol pela primeira vez em Pinheiro, interior do Maranhão, em 24 de abril de 1930. Impressionante que, sempre guiado por um simples candeeiro, teve oportunidade de conhecer a luz elétrica — símbolo da modernidade — somente aos 12 anos, quando foi fazer exame de admissão no Liceu Maranhense, em São Luís. No escuro e na luz, José Sarney soube atravessar florestas, pular riachos, cruzar fronteiras, subir montanhas e garimpar estrelas. A um mês de completar 95 anos, José Sarney continua um meteoro em política, cultura e na defesa da democracia.
É um predestinado.