entrevista

Anistia seria inconstitucional, diz Souza Prudente

Desembargador aposentado ressalta que é impossível perdão aos condenados pelo 8 de Janeiro, mesmo com eventual aprovação de lei pelo Congresso

Souza Prudente:
Souza Prudente: "A Polícia Federal e o Ministério Público estão realizando um trabalho magnífico de investigação" - (crédito: PEDRO SANTANA / CB)

O desembargador aposentado Souza Prudente, professor da Escola de Magistratura Federal, enfatizou a gravidade dos atos extremistas de 8 de janeiro de 2023, considerando-os uma tentativa de "destruição do Estado Democrático de Direito" e uma ação "irracional" contra o resultado das urnas.

Souza Prudente destacou o papel fundamental das instituições, como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, que estão conduzindo as investigações e frisou ser impossível e "inconstitucional" a anistia para os condenados pelo 8 de Janeiro. A seguir, trechos da entrevista às jornalistas Ana Maria Campos e Jaqueline Fonseca no programa CB.Poder, parceria entre o Correio e a TV Brasília:

Como avalia o que ocorreu em 8 de janeiro de 2023?

Realmente foi registrada uma violência que nos deixou totalmente perplexos diante do que aconteceu ali. O movimento partiu para a destruição dos prédios públicos, como se estivesse com o propósito de mudar o resultado das urnas que elegeram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Algo irracional e de uma estupidez contra o Estado Democrático de Direito.

Que lições podemos tirar desse episódio? Talvez ensinar para os mais jovens a história de ditadura e de tortura do Brasil?

Esses jovens de hoje vivem uma realidade completamente diferente daquela que nós vivemos em 1964. Têm a mente guiada pela influência das fake news que circulam nas redes sociais. Mesmo assim, tudo isso depende da formação pessoal de cada. Creio que somente um jovem desorientado, sem o mínimo de solidez na sua formação, poderia criticar ou deixar de valorizar um sentimento democrático eficaz.

O senhor acredita que a investigação vai conseguir apontar culpados pelo movimento golpista?

Não tenho dúvidas. Acho que a Polícia Federal e o Ministério Público estão realizando um trabalho magnífico de investigação, analisando provas que são irrefutáveis, para apresentar ao Supremo Tribunal Federal. Um questionamento que costuma surgir é sobre a competência do Supremo para conduzir esses inquéritos. Ora, o que precisamos verificar é quem está à frente desses inquéritos. Sem dúvida, é um dos maiores constitucionalistas que temos no Brasil, que é o ministro Alexandre de Moraes. O trabalho dele na apuração dessas responsabilidades também é magnífico. Essa competência tem que permanecer com o Supremo.

O 8 de Janeiro não nasceu do dia para noite, foi arquitetado e formado nas redes sociais. A Meta anunciou que vai tirar mecanismos para conter a desinformação. Esse movimento pode causar riscos à democracia brasileira?

Acho que não há a mínima chance, até porque acredito que o Ministério Público Federal tem atuado com diligência, muita coragem e determinação nas ações necessárias para combater medidas dessa natureza. Sem dúvida, essas medidas não se inspiram nos princípios democráticos que praticamos aqui no Brasil. Acredito que isso deve chegar ao conhecimento formal do Supremo Tribunal Federal para que sejam tomadas as decisões necessárias para inibir medidas dessa natureza. Até porque o Supremo, em um processo relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, já demonstrou, com a suspensão da empresa X, que não aceita redes ou empresas que não respeitem as leis brasileiras. Daí vem a importância de destacar esse trabalho magnífico do ministro Alexandre de Moraes, desde o momento em que assumiu a sua cadeira como magistrado na Suprema Corte e também quando presidiu o Superior Tribunal Eleitoral. Isso tem sido uma marca de coragem do ministro Alexandre de Moraes, uma coragem que resulta da sua cultura. Eu costumo dizer: o juiz que não estuda, que não se aprimora nos seus conhecimentos científicos não tem coragem de decidir. A ignorância é um antídoto à coragem do magistrado. E a coragem deve ser uma das virtudes essenciais para o exercício da magistratura em qualquer grau de jurisdição no Brasil.

Fala-se muito sobre a anistia para os condenados pelo 8 de Janeiro. Como avalia isso?

A rigor, temos que fazer uma distinção com base no que estabelece a Constituição. No artigo 5º, inciso XXXVI, está escrito que a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Não será possível jamais cogitar qualquer lei ou emenda à Constituição que contrarie esse dispositivo, exatamente por ser cláusula pétrea o instituto do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. O ato jurídico perfeito se refere a uma decisão já transitada em julgado, como, por exemplo, a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que determinou a inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro até o ano de 2030. Portanto, não há mais o que se cogitar sobre qualquer lei de anistia a favor de Bolsonaro em face dessa decisão. Isso é coisa julgada, imutável, e qualquer lei ou emenda à Constituição que siga nessa direção será declarada pelo Supremo Tribunal Federal como flagrantemente inconstitucional. O Poder Judiciário, por sua vez, só poderia rever uma decisão dessa natureza se fosse provocado, já que ele não age de ofício. E essa provocação teria que ser feita pela parte competente e dentro do prazo legal. Esses prazos, entretanto, já se esgotaram, tornando a decisão imutável. No que se refere às situações do 8 de Janeiro, em que algumas pessoas ainda não foram julgadas, talvez, nessa vertente, pudesse ser cogitada uma lei de anistia. Mas isso não seria justo, porque, por conta de uma demora no julgamento de uns, eles ficariam isentos, enquanto outros, já julgados, estariam cumprindo pena. Isso seria, sem dúvida, injusto com as pessoas que praticaram os mesmos crimes. Portanto, é algo que deve ser apreciado pela Suprema Corte, considerando também o princípio constitucional da isonomia de tratamento das partes envolvidas nesse contexto. No que se refere àqueles que já foram julgados, não será possível cogitar qualquer tipo de anistia. Ou seja, mesmo que o Congresso aprove algo nesse sentido, certamente o Supremo vai considerar inconstitucional. E, como eu disse, o Judiciário só pode decidir se for provocado. Mas temos um Ministério Público muito diligente, que, sem dúvida, não deixará passar uma situação como essa.

O senhor é autor de uma decisão histórica que permitiu a abertura de arquivos da Guerrilha do Araguaia. Como foi essa determinação?

Essa decisão foi histórica por vários motivos. Em primeiro lugar, esse processo era o mais antigo da Justiça Federal do Brasil, com mais de 25 anos de tramitação. Envolvia os parentes de desaparecidos políticos durante a Guerrilha do Araguaia, que buscavam, por meio dessa ação, obrigar a União a indicar as sepulturas de seus entes queridos para que pudessem ser lavrados os competentes atestados de óbito. Esse processo está agora sendo cumprido após mais de duas décadas, com a exumação dos corpos e a entrega de um relatório oficial do Ministério da Guerra, datado de 5 de janeiro de 1975, sob pena de multa diária. Gostaria de deixar claro que, em ações como essa, voltadas à proteção dos direitos humanos, o que se busca não é apenas uma indenização, mas a garantia de um direito humano fundamental: o resgate e a identificação dos corpos e a obtenção de informações oficiais sobre os desaparecidos. Esse direito à informação deve ser assegurado, com os dados disponibilizados pelos Ministérios do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Foi com base nesse princípio que tomamos, por maioria, a decisão que teve repercussão mundial. Essa ação não busca uma punição, mas sim um reconhecimento de direitos, e, em sua natureza, é um processo estruturalmente relevante. Recentemente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sob a presidência do respeitado constitucionalista ministro Roberto Barroso, determinou que fossem emitidos novos registros de óbito para todos os desaparecidos políticos, corrigindo a causa da morte, que, até então, estava registrada de forma falsa. A causa real, que é o desaparecimento forçado durante o regime militar de 1964, deve ser devidamente registrada para que a verdade histórica seja reconhecida e respeitada.

Sobre essa decisão do CNJ de mudar a causa mortis dos perseguidos e mortos na ditadura, qual é a importância para a honra e a memória das vítimas?

Além da emissão de uma certidão de óbito correta, a Comissão da Verdade, durante o governo Dilma, apurou 434 mortes políticas, que, até então, não estavam devidamente identificadas. A determinação do CNJ, portanto, atende em parte a essa demanda, ao garantir a emissão de certidões de óbito que registram efetivamente a causa da morte. Contudo, a abertura dos arquivos permitiu que as pessoas compreendessem a história de seus parentes, o que vai além da simples identificação dos corpos, pois envolve um reconhecimento histórico mais amplo. O objetivo dessa ação é precisamente identificar os corpos ou ossadas de seus parentes. Em 1988, um grupo de advogados do Brasil formou uma comissão para investigar indícios que levassem à localização desses corpos e obteve informações relevantes. Um registro curioso revela que um lavrador encontrou, próximo a uma vala onde foram enterrados guerrilheiros decapitados, uma lata de leite Nestlé que continha as carteiras de identidade de alguns deles. Outros corpos, porém, não pertenciam apenas a guerrilheiros, mas também a pessoas comuns, sem envolvimento com o movimento, além de comunidades indígenas que foram não apenas mortas, mas destruídas por esse movimento durante a ditadura militar.

A ditadura militar tem sido muito debatida nas redes sociais após o filme Ainda estou aqui. O senhor já assistiu o ao filme? O que achou?

Ainda não assisti, mas quero muito ler o primeiro livro. Acho que é uma obra inigualável para registrar a memória de Rubens Paiva, principalmente por ter sido escrita pelo seu filho. Com certeza, também vou assistir ao filme. É uma coincidência incrível como acontecimentos históricos importantes se conectam, como essa decisão do CNJ sobre as certidões de óbito, que acredito ter sido proposital. Creio que o presidente do CNJ, por provocação da atual ministra dos Direitos Humanos e Cidadania, escolheu anunciá-la em 10 de dezembro de 2024, data em que se comemora a Convenção dos Direitos Humanos em todo o planeta. Além disso, a premiação da atriz Fernanda Torres parece ser outra coincidência significativa, ocorrendo justamente no dia em que celebramos os valores democráticos e repudiamos a abominável agressão ao Estado Democrático de Direito no Brasil. Acho tudo isso muito interessante.

 

 


Juliana Sousa
postado em 09/01/2025 03:55
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