Na sequência do ano novo, um rito de passagem no qual as esperanças se renovam, o Brasil se ufana com a merecidíssima conquista do Globo de Ouro de melhor atriz por Fernanda Torres, protagonista do filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, sucesso de bilheteria no Brasil e da crítica mundial.
O filme não repetiu o feito de Central do Brasil, do mesmo diretor, que ganhou o Globo de Ouro em 1999, mas redimiu a não premiação de Fernanda Montenegro, sua protagonista, diva da cultura brasileira — numa das melhores interpretações de sua carreira no cinema —, que aparece no final do filme, quando a matriarca da família Paiva já estava com Alzheimer.
Foi bonito ver ícones do cinema mundial, como Kate Winslet e Tilda Swinton, reverenciarem a vitória de Fernanda Torres, o que significa o reconhecimento também da qualidade do nosso cinema pela Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood, a meca da industrial cinematográfica mundial. Uma vitória da cultura brasileira e, ao mesmo tempo, um resgate da nossa história política.
Rubens Paiva era político, engenheiro e jornalista, foi deputado federal, em 1962, pelo PTB paulista. Como parlamentar, defendia reformas sociais progressistas do governo João Goulart, deposto pelos militares. Foi cassado pelo Ato Institucional nº 1, logo após o golpe militar de 1964. Eunice Paiva, sua esposa, de um dia para o outro, viu sua vida revirada, tendo que se reinventar para conduzir sozinha a família de cinco filhos, sem seu companheiro de vida, sem renda, enfrentando diariamente o medo e a incerteza de encontrá-lo vivo ou morto.
Ao contrário de outras obras do gênero, o filme de Walter Salles tem uma dramaturgia muito forte sentimental e política. Segundo a crítica de cinema Lilia Lustosa, Fernanda Torres protagoniza o filme com "uma atuação contida, equilibrada e justa, talhada na medida exata para retratar uma mulher de coragem e fibra que, sem fazer escândalo, nunca se calou e nunca aceitou o desaparecimento do marido". Ainda estou aqui é inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, seu filho, escritor, dramaturgo e jornalista paulista.
"Eunice não apenas sobreviveu à prisão e às consequências da ditadura, como usou-as como força motriz para encontrar um novo caminho. Formou-se em direito, tornou-se uma ativista das causas indígenas e dos direitos humanos dos desaparecidos durante a ditadura civil e militar, tendo sido uma das principais vozes para a promulgação da Lei 9.140/95, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação em atividades políticas durante esse período", destaca a crítica de cinema.
Amplo repúdio
O assassinato de Rubens Paiva só começou a ser esclarecido após o fim da ditadura. Marival Chaves, ex-agente do regime militar, anos depois, em depoimentos públicos e à Comissão Nacional da Verdade, revelaria práticas sistemáticas de tortura, ocultação de cadáver e execuções realizadas pelos órgãos de repressão, incluindo o DOI-Codi.
Marival foi sargento e trabalhou no Centro de Informações do Exército (CIE). Segundo ele, o ex-deputado foi torturado "por ordens superiores". Em uma dessas sessões de tortura, não resistiu. Seu corpo foi esquartejado e descartado no mar, uma prática comum na época, para ocultar provas de assassinatos cometidos pelo regime.
Segundo o ex-agente Marival Chaves, em depoimento à Comissão da Verdade, os responsáveis seriam o coronel do Exército Rubens Paim Sampa, comandante do DOI-Codi, no Rio; o capitão do Exército Frederico Aramis de Oliveira; o major do Exército Alfredo Paulo Charlet; e o delegado do Dops e agente do DOI-Codi Manoel Thomaz Pereira.
A revisão do caso hoje está na alçada do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda estou aqui é um exemplo da história como presente na atual conjuntura política, na qual o ex-presidente Jair Bolsonaro e um grupo de militares, entre os quais alguns generais de Exército e um almirante de esquadra, são acusados de tentativa de golpe de Estado.
O Globo de Ouro vem às vésperas do 8 de janeiro de 2023. O que se viu naqueles atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes, quando foram depredados o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, ainda hoje é amplamente rejeitado pelos brasileiros. Um ato em repúdio ao golpismo, organizado pelo Palácio do Planalto, será realizado amanhã e reunirá representantes dos Três Poderes.
O prêmio vem também às vésperas da posse de Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos, que volta ao poder mesmo depois da tentativa de golpe para impedir a diplomação de Joe Biden, em 6 de janeiro de 2022. Segundo o cientista político e CEO da Quaest Felipe Nunes, os atos de 8 de janeiro de 2023 guardam semelhança com o 6 de janeiro de 2022.
Entretanto, a repercussão na opinião pública é muito diferente. Dados de pesquisas YouGov mostram que em janeiro de 2021, logo depois da invasão do Capitólio, 9% dos americanos aprovavam fortemente os atentados, enquanto no Brasil foram 4%. Em janeiro de 2022, um ano depois, esse percentual passou para 14%; no Brasil, chegou a 6%, menos da metade. Em janeiro de 2023, chegou a 20%.
Segundo Nunes, "Biden errou ao partidarizar o tema. Isso permitiu aos republicanos se recuperarem do mais violento ataque à democracia americana". Pesquisa Quaest divulgada nesta segunda-feira mostra que ainda hoje 86% dos brasileiros desaprovam as invasões do 8 de janeiro de 2023, e 7% aprovam. Outros 7% não sabem ou não responderam.
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