Entrevista

Portugal é exemplo de boas práticas ambientais, defende parlamentar

Presidente da Comissão de Agricultura portuguesa elenca políticas públicas para garantir a utilização consciente da água e destaca a fiscalização do agronegócio, por meio da redução de agroquímicos

A pesar da licenciatura em Direito, a deputada portuguesa da Assembleia da República filiada ao Partido Social Democrata, Emília Cerqueira, 53 anos, se especializou no agro: este já é seu quarto mandato à frente da Comissão da Agricultura e Pescas de Portugal, composta por sete deputados.

Emília é natural de Viana do Castelo, cidade ao Norte do país, localizada na província do Minho. Segundo a parlamentar, o ambiente rural influenciou sua trajetória na política. Ao Correio, ela relata as políticas públicas portuguesas lançadas para garantir o uso consciente da água e a limitação na aplicação de agrotóxicos, por meio da chamada agricultura de precisão. "Os pequenos agricultores não podem comprar agroquímicos sem terem uma formação obrigatória", frisou.

A deputada faz parte da Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação e é suplente na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Disse ver "com muita preocupação" o fortalecimento de grupos de extrema-direita em Portugal, como o Chega, pelo discurso racista, autoritário e autocrático e pela falta de respeito pelas diferenças. Ela também comentou sobre a ligação entre Brasil e Portugal. "É um país parceiro com quem temos, e pretendemos continuar a ter, uma relação estreita. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

O que a senhora pode nos dizer sobre a Comissão da Agricultura de Portugal, da qual é presidente e cumpre seu quarto mandato?

Tenho dedicado muitos anos do meu trabalho parlamentar à agricultura, sendo que em Portugal, ao contrário do que acontece aqui no Brasil, a Comissão da Agricultura tem outras competências, como alimentação, bem-estar animal, animais de companhia, florestas, uso eficiente de água, incêndios rurais e prevenção. Uma série de matérias que se interligam e se intercruzam. E também a segurança alimentar, que é um dos maiores problemas.

A agricultura em Portugal é semelhante a do Brasil?

Ao contrário do que se discute muito no Brasil, nós temos essencialmente uma agricultura integrada, ou a chamada agricultura para a coesão territorial. Nós somos um país muito pequeno, mas com realidades muito diferentes. Portanto, a atuação estatal é muito importante para a preservação e a coesão territorial do pequeno agricultor, para ajudar as populações a manterem-se nos territórios, e para o controle e a fiscalização do agronegócio — nós não chamamos assim, mas podemos resumidamente usar essa expressão daqui, do Brasil. Assim, precisamos estar muito atentos às boas práticas ambientais, por meio da redução de agroquímicos.

De que forma o país trabalha para reduzir o uso de agroquímicos?

Somos um dos países da União Europeia que mais reduziu a utilização de agroquímicos nos últimos anos. Baixamos em cerca de 40%, bem como otimizamos o uso eficiente da água. Hoje, o chamado agronegócio funciona essencialmente por rega (irrigação) gota a gota, que gerou uma poupança de água de mais de 25% nos últimos 10 anos. Há toda uma preocupação com o solo e o uso racional da água. As diferenças de realidades que existem no nosso país e que, se calhar, eu, enquanto mulher de direito, das leis, mais ligada a questões mais intelectuais, podemos dizer desta forma, às vezes, perco a noção daquilo que é a terra. Então, a agricultura trouxe uma outra experiência, que é uma maior conexão ao território, à terra, ao mundo real, digamos assim. E julgo que este é um dos maiores enriquecimentos culturais: ter uma noção maior do que é terra, e da verdadeira realidade com que se confrontam as pessoas, como a má nutrição e os desafios da alimentação.

Há uma preocupação com a conscientização sobre a alimentação saudável e o cultivo dos alimentos?

Nós, por vezes, tendemos a esquecer de que os alimentos não crescem na prateleira de supermercado e de que há um produtor que cultiva aquela terra, e de que há uma cadeia que tem que se fazer até (o alimento) chegar ao supermercado, à nossa mesa, à nossa casa. Fazemos esta ligação porque nós somos cada vez mais urbanos, e sabemos que este entendimento do que é o circuito dos alimentos é muito importante. Nos traz uma sensibilidade diferente, eu acho que isso é um grande ensinamento, até para fazermos melhores políticas públicas, quer nacionais, quer regionais.

Segundo a senhora, houve em Portugal uma redução de 40% do uso do agrotóxico nos últimos 10 anos. O que o país pode ensinar ao Brasil sobre o tema?

A União Europeia já proíbe uma série de agroquímicos autorizados em outras partes do globo, o que, às vezes, até nos causa alguns problemas com a introdução de alimentos de fora do bloco por não cumprirem estes requisitos. E nós temos uma lei muito restritiva na utilização dos chamados agroquímicos, tentando abordagens mais amigas do ambiente, por meio de agentes biológicos e de novas formas de combate a pragas de forma mais natural. Pode ser feito por meio da introdução de moscas ou de pequenos insetos que vão evitar pragas e doenças, ou por meio de investigação genômica, para estarmos mais protegidos contra as pragas. Há uma série de ferramentas que tentamos fazer substituição. Mas, para além da restrição da União Europeia, Portugal acolheu de forma proativa algo que me parece que é o futuro da chamada agricultura de produção, que é a agricultura de precisão. E essa é uma das grandes apostas que temos neste momento e que se distingue do agronegócio tradicional por conta da ideia de produzir mais com menos e em menos espaço, com o uso eficiente dos recursos da água e de todos os recursos do solo. Temos várias abordagens interessantes.

Quais são os recursos adotados pela agricultura de precisão?

Primeiro, tudo é altamente monitorizado. Hoje, por meio dos sistemas informatizados, consegue-se monitorizar o grau de umidade na terra, por exemplo, para ver se é preciso ou não umedecê-la, e escolher a melhor hora para fazer isto para que haja menos gastos de água, por meio de drones para ver se existe algum problema com a colheita. Portanto, é uma série de ferramentas, e usando até inteligência artificial e aquilo que a tecnologia nos permite para sermos mais eficientes na utilização dos recursos e dos agroquímicos. Esta forma de precisão também interessa ao proprietário do negócio que tem um custo muito mais reduzido. E instituímos algo que, inicialmente, pode não ter sido muito entendido, especialmente na pequena produção: os pequenos agricultores não podem comprar agroquímicos sem terem uma formação obrigatória.

Os agricultores precisam fazer cursos para usar agrotóxicos?

Exatamente, tanto para aplicação da agroquímicos quanto para a aquisição, é preciso ter uma formação. É um curso reduzido, de 78 horas ou 72 horas, para terem as noções básicas daquilo que é a aplicação dos agroquímicos. O que nós percebemos: durante muitos anos, as pessoas com menos formação pensavam que, se reforçassem a dose de agrotóxicos, teriam o melhor resultado. E não é verdade. Se calhar, até podem ter piores resultados. A dose foi estudada cientificamente. Se for dito que deve-se colocar 100 ml em 100 litros, é porque essa é a dose recomendada. Não deve ser 200 ou 300 ml, sob risco de envenenar os aquíferos, os solos e as próprias plantas, que ficam expostos a uma quantidade de agroquímicos desnecessária. Tem a ver com uma conjugação de políticas, quer no chamado agronegócio, quer na pequena agricultura, e temos tido resultados de fato muito satisfatórios. A água é um bem escasso, e nós temos que ter consciência que, se envenenarmos nossos aquíferos subterrâneos, o próprio ecossistema é afetado e pode ser morto.

Além da política de rega gota a gota na agricultura portuguesa, quais medidas de sustentabilidade se destacam para a manutenção do meio ambiente?

A gestão e o uso eficiente da água, para nós, é uma matéria de política estruturante, e de enorme preocupação. Aliás, nós aprovamos no mandato anterior, que era do governo socialista, a Lei de Bases do Clima. E na nossa Lei de Base do Clima, temos também a estratégia nacional como a das alterações climáticas, isto é, tudo holístico. Na nossa Constituição, temos a preservação do meio ambiente como um direito fundamental. Estamos falando de algo que, de fato, é transversal. E a consciência do uso eficiente de água, até por força das alterações climáticas sofridas no mundo inteiro, é matéria tratada em conjunto com a agricultura e o ambiente. Por isso, nós trabalhamos em ambos os ministérios, porque o Ministério do Ambiente em Portugal trata da água para consumo humano e para a preservação da biodiversidade dos recursos naturais, e o Ministério da Agricultura, da utilização da água para fins agrícolas.

Essas mudanças foram influenciadas por algum marco específico?

Nós temos muitos marcos. Portugal assinou todos os compromissos internacionais para redução das alterações climáticas, o Acordo de Paris, o de Tóquio, sempre fomos comprometidos com as metas. A partir daí, houve uma série de mudanças legislativas e de práticas que tiveram de acompanhar esse nosso compromisso mais global e mais geral. E nós somos claramente pioneiros na aposta das energias renováveis por meio, essencialmente, da energia eólica. Atualmente, temos alguns projetos no mar, como o largo da costa Viana do Castelo, onde há turbinas off-shore flutuantes para aproveitamento do vento e das ondas do mar. Outros objetivos comuns são a substituição dos veículos de combustão por veículos elétricos, a eficiência energética dos edifícios — porque se os edifícios forem energeticamente mais eficiente vão diminuir o consumo de energia para mantermos temperaturas otimizadas nas casas, para que tenhamos uma amplitude térmica que seja amiga do ambiente, mas que haja ao mesmo tempo eficiência térmica.

Quando essa mudança cultural começou a acontecer?

Na verdade, nós começamos a fazer a transição para a energia verde e a apostar na energia eólica há quase 30 anos. A partir de 2015, momento em que nós assinamos o Acordo de Paris, iniciamos um caminho para a neutralidade carbônica, tal como o Pacto Ecológico europeu, que acelerou essa transição. São compromissos que afetam todas as políticas e se tornaram uma bandeira para Portugal. Já as mudanças na alimentação nas escolas é mais recente. Sempre houve preocupação, mas a proibição de venda de refrigerantes, deste tipo de alimentos, começou há cerca de oito anos.

Brasil e Portugal têm estreitado laços quanto ao viés climático?

Eu acredito que Portugal e Brasil têm uma relação muito privilegiada, e isso faz com que nos entendamos melhor. Falamos a mesma língua, embora com sotaques diferentes, mas partilhamos muitos princípios, valores e cultura. Mesmo em política, quando nós conseguimos entender o outro, facilita-nos as relações. Para nós, o Brasil é um país parceiro com quem temos, e pretendemos continuar a ter, uma relação estreita, nesta matéria e em muitas outras. Somos dois países que compartilham muita história, e espero que compartilhemos ainda mais no futuro.

Qual a maior influência do Brasil em Portugal atualmente?

A cultura brasileira é uma cultura que se impôs em Portugal há muitos anos. Nós compartilhamos um grande amor pela cultura brasileira. Como eu acredito que são as pessoas que fazem os países, para além da política, a maior influência que o Brasil tem tido em Portugal nos últimos anos são mesmo as pessoas que têm vindo para o nosso país. Muitas delas recuperam as suas raízes em Portugal, e na esmagadora maioria fazem parte da nossa sociedade.

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O que a senhora vê aqui no Brasil de herança portuguesa recente no que se refere à governabilidade global no século 21?

Na verdade, acho que o Brasil bebe um bocadinho de nós, da cultura europeia. Nós somos a porta da Europa, e somos países com uma forte ligação. Julgo que, mesmo em termos políticos, legislativos e de políticas públicas adotadas na União Europeia, acabamos por ser uma referência para o Brasil. E para nós, também, o Brasil é, sem dúvida, a nossa grande referência na América do Sul. Isso politicamente, na postura que tem o presidente Lula, porque assumamos que é disso que estamos falando. Eu prefiro falar apenas do atual presidente.

Há avanços visíveis na política nos últimos anos, como o aumento das mulheres no parlamento em Portugal, mas por outro lado há partidos de extrema-direita, como o Chega, que estão crescendo. Como a senhora vê isso?

Com muita preocupação. Primeiro porque em Portugal, independentemente das diferenças políticas, sempre estivemos unidos por bases fundamentais como o respeito pela liberdade, pela democracia, pela igualdade, pela dignidade da pessoa humana, pela não discriminação. Portanto, mesmo politicamente com uma visão diferente para a sociedade, esses fatores nos uniam profundamente. E, de repente, temos um partido populista que tem um discurso que roça claramente o racismo, o autoritarismo, a autocracia, a misoginia, a falta de respeito pelas diferenças. Estou falando de nacionalidade, de raça, de orientação, de gênero, de todas as diferenças, num discurso que, muitas vezes, é claramente de ódio. E vemos com muitíssima preocupação o crescimento desses movimentos pelo mundo inteiro.


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