O ex-presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Argentina, Javier Milei, têm algo que os une muito além da afinidade ideológica: ambos se aproveitam das garantias dadas pelas constituições brasileira e argentina para demolirem a democracia. A acusação é de um dos principais constitucionalistas argentinos, Raúl Gustavo Ferreyra, professor titular da Universidade de Buenos Aires, uma instituição com mais de 200 anos de existência. "Eles desejam apenas o poder público para aniquilar o adversário e que exista na comunidade uma única opinião: a deles", aponta. Para o acadêmico, tanto Bolsonaro quanto Milei são resultados daquilo que classifica como "hiperpresidencialismo", e que considera um dos males da América Latina. Esse "hiperpresidencialismo" dá ao vencedor das eleições um poder extraordinário, que facilita o aparecimento de líderes com tendências onipotentes e messiânicas. Leia a entrevista a seguir.
Em recente entrevista, o senhor acusou o presidente Javier Milei de abusar dos decretos com a "única finalidade de destruir a Constituição e o Estado". Este é um dos métodos das novas autocracias, que destroem o Estado por dentro pela corrupção do arcabouço jurídico. Há algum meio de impedi-los antes que completem a obra que pretendem erguer?
O Estado constitucional e democrático é a maior construção para alcançar uma paz relativa e um bem-estar suficientemente estendido. Esses denominadores autorizam a decisão sobre o grau de pacificação e o grau de acesso aos bens básicos que existem em uma sociedade. Por isso, constituem uma referência para quantificar e qualificar a vida dos seres humanos que vivem em cada comunidade — ou seja, quão afortunados ou quão desafortunados são os indivíduos dessa sociedade. Milei declarou que ele é a pessoa que destrói o Estado. Em pleno século XXI, o Estado constitucional é o ente constituído por uma escritura fundamental, a Constituição. Ela é a regra mais alta da ordem jurídica, é a base do Estado. Sem Constituição, não há Estado e democracia. Consequentemente, a hipótese de "destruição do Estado" envolveria a destruição da Constituição. A Constituição Federal da Argentina é uma das mais antigas do mundo. Foi elaborada em 1853 e, desde então, foi reformulada cinco vezes, embora nunca tenha alterado sua base normativa. Milei poderia tentar destruir a Constituição. No entanto, o instrumento contém uma norma no artigo 36, que dispõe que "a Constituição mantém a sua vigência mesmo quando seu cumprimento é interrompido contra a ordem institucional e o sistema democrático". Tais atos são irrevogavelmente nulos e sem efeito.
Personagens como Milei e Bolsonaro parecem nascer e se fortalecer graças às lacunas legais e, por que não, até de certa ingenuidade nas leis. Se apresentam como figuras anti-sistema. Existe uma explicação para que a sociedade demore a perceber esses personagens como ameaças?
Na pergunta anterior, mencionei a Constituição da Argentina, um instrumento que determina um ambiente ideal para a democracia e o desenvolvimento institucional. A Constituição do Brasil, de 1988, com todas as suas reformas, é uma das melhores do mundo para a paz, solidariedade e democracia. Bolsonaro e Milei se aproveitam do método democrático, garantido pela Constituição, para demolir a própria democracia. Eles desejam apenas o poder público para aniquilar o adversário e que exista na comunidade uma única voz: a deles.
O senhor acredita que as sociedades levam a sério personagens como Milei e Bolsonaro devido a um certo "sebastianismo" inerente a todas?
Milei e Bolsonaro são frutos exóticos dos sistemas "hiperpresidenciais". Em sistemas de governo como os do Brasil e da Argentina, está constitucionalmente prevista a possibilidade de que surja um "líder providencial", um "messias", um "enviado celestial". O "hiperpresidencialismo" é um sério problema constitucional na América do Sul, porque autoriza o desenvolvimento desses processos autocráticos e destrutivos da democracia. No "hiperpresidencialismo", tudo é para o vencedor de uma eleição. Na prática, por sua própria natureza, é uma autocracia eletiva. É quase um paradoxo. Quem vence a eleição acredita ter direito a tudo — e quando digo tudo, é tudo aquilo que ele deseja. Assim, na Argentina, desde 1994, surgiu um novo animal político: o "monopresidente", um funcionário eleito por quatro anos, reunido na única identidade de sua única pessoa, e que se julgará a si mesmo como o enviado, o líder, o messias que, com um golpe de mágica, fará a realidade se transformar em puro bem-estar. Esse critério, que move o "monopresidente", é próprio de uma sociedade fechada, totalmente oposta a uma sociedade aberta e plural, guiada pela razão que induz e que valoriza o diálogo respeitoso e tolerante da cidadania.
Tanto Milei quanto Bolsonaro ficaram entusiasmados com a volta de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos. Ambos têm certeza de que o presidente norte-americano eleito os favorece e os empodera. O senhor crê que isso seja uma verdade ou, mais uma vez, estão apenas mobilizando seus apoiadores?
Trump não foi um defensor das instituições constitucionais dos EUA e da sua forma democrática. No entanto, foi eleito pela segunda vez para presidir a República. O desprezo que Trump destila contra as instituições democráticas, que garantiram sua vitória, é muito semelhante aos argumentos autocráticos de Bolsonaro e Milei. No entanto, entendo que as ideias econômicas de Trump, aparentemente alinhadas com certo protecionismo, seriam muito diferentes, por exemplo, do livre comércio, tão desigual quanto impiedoso, que Milei idealiza, mas ainda não consegue colocar em prática. Por tudo isso, sim, acredito que Bolsonaro e Milei tentam cativar seus eleitores, especialmente os irracionais, para mobilizá-los em torno da ideia de que Trump seria uma fonte de recompensas genuínas para eles. Nada mais distante da realidade, pois isso jamais aconteceu na história das relações entre EUA—Brasil e EUA—Argentina ao longo de quase dois séculos.
Assim como Bolsonaro, Milei renega a ditadura militar argentina. Qual é o impacto dessa postura nos argentinos?
A ditadura militar que assolou a Argentina com seu terrorismo de Estado, de 24 de março de 1976 a 10 de dezembro de 1983, é uma das etapas mais sangrentas e horríveis da história do nosso país. Toda a sociedade disse "nunca mais" em 1983. Uma decisão imutável e inalterável. "Nunca mais" significa isso: não há possibilidade de regressar ao horror. O próprio artigo 36, citado anteriormente, institui uma "cláusula de eternidade" da democracia para a Argentina, cujos efeitos benéficos deveriam ser para nós, para a nossa posteridade e para todos os homens do mundo que desejem habitar o solo argentino, como diz o Prefácio da Constituição. Atualmente, estão sendo realizados julgamentos contra os responsáveis pelo terrorismo de Estado, até mesmo por roubos de crianças recém-nascidas em centros clandestinos de detenção. Muitos criminosos estão na prisão cumprindo duras penas. A Argentina é um modelo mundial no julgamento do terrorismo de Estado. Não há e não haverá impunidade. O julgamento e a punição de cada responsável é uma realidade objetiva e irreversível, porque faz parte do presente, do futuro e da memória dos argentinos.
Bolsonaro tentou capturar as Forças Armadas, assim como as polícias e outras instituições do aparato de segurança e inteligência. Mesmo impossibilitado de voltar ao poder, tem apoiadores entre militares e policiais. Milei também trabalha nesse sentido de, eventualmente, obter a adesão de militares e policiais a um projeto autocrático?
É altamente possível que Milei faça essa tentativa. No entanto, a presença e importância dos policiais e militares, como fator de poder, são completamente diferentes na Argentina do que no Brasil. Para ser mais claro: numa escala de 1 a 10, as forças militares brasileiras teriam sete pontos de influência. Na Argentina, hoje, dificilmente chegariam a dois. O descrédito, a falta de confiança e a aversão aos policiais e militares na Argentina são imensos.
Milei esteve há poucos dias no Brasil para o G20. Tinha a intenção de se opor ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sobretudo ao não endossar a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. Foi, porém, vencido pelo pragmatismo, pois corria o risco do isolamento ante a comunidade internacional. Em questões de Estado, o senhor acredita que o Milei do discurso é um (bravateiro e arrogante) e o institucional é outro?
Isso foi puro pragmatismo político. Duvido que Milei atribua um papel importante às palavras escritas. Seu desprezo por tudo o que é institucional, ou seja, o resultado da construção cidadã do Direito, é gigantesco. O que quero dizer é que ele poderia assinar algo e fazer ou propor um estado de coisas completamente diferente no mesmo momento. Milei não confia no Direito nem na palavra pública. Ele só confia, talvez, em si mesmo e em sua irmã.
O governo brasileiro acredita que, apesar da animosidade entre Milei e Lula, será possível manter uma relação pragmática entre Brasil e Argentina. Mas Milei demitiu, recentemente, a embaixadora Diana Mondino, que parecia guiar as relações internacionais com uma postura realista. O governo brasileiro está sendo ingênuo?
O Brasil é uma potência mundial, que cresce todos os dias, e a Argentina não é. Desde Fernando Henrique Cardoso e, depois, com Lula, apesar de suas enormes diferenças ideológicas, a república brasileira tem um lugar central, proeminente e fundamental na discussão global. A Argentina não tem esse assento e não terá. A relação entre Brasil e Argentina sempre será fértil, porque todos os cidadãos sentem a irmandade e não haverá governo ou líder que consiga vencer esse laço perpétuo e indestrutível. Não há ingenuidade no Brasil, porque a diplomacia brasileira, durante todo o século XXI, demonstrou ser uma das mais eficientes, desempenhando um papel fundamental na promoção da paz e do bem-estar.
O presidente argentino trabalha com a certeza de que será uma espécie de "ponta de lança" de Trump na América do Sul, de tornar-se uma influência capaz de virar o continente na direção de um alinhamento com o futuro presidente norte-americano. O senhor acha que Milei exagera ou há algum fundo de realidade?
Exagera. No ano que vem, haverá eleições na Argentina e serão eleitos 50% dos membros da Câmara dos Deputados e 33% dos membros do Senado. Essa eleição, crucial, será um plebiscito sobre o desastre institucional, econômico e financeiro que Milei provoca. A Milei interessa que os fortes, uma parte pequena da população, se tornem cada vez mais fortes, enquanto os fracos (quase toda a população) se tornem cada vez mais fracos. O eixo de sua gestão consiste em destruir os aposentados, os pensionistas, a saúde pública, a educação pública e as obras públicas. Na história da humanidade, há exemplos de sociedades que apoiaram eleitoralmente líderes que só trouxeram dor, caos e sofrimento. Esses povos, com o tempo, recuperam e desenvolvem sua memória coletiva. Em 1933, o Parlamento alemão autorizou a lei "de habilitação", o começo do mal global. Hoje, 90 anos depois, consumada a tragédia, a Alemanha é uma das principais democracias do mundo, com uma Constituição magnífica e um Tribunal Constitucional respeitado por todos.
Milei se posicionou como um possível líder na América do Sul alinhado com os interesses de Donald Trump e, mais amplamente, dos EUA. No entanto, a Argentina tem uma longa tradição de relações estratégicas com a China e o Brasil. Acredita que, apesar da retórica, Milei realmente conseguirá inverter as orientações da política externa argentina?
Milei terá de manter relações com a China e o Brasil. Os homens que fazem negócios na Argentina, desde tempos imemoriais, farão com que ele saiba disso.
China e Brasil são os dois maiores parceiros comerciais da Argentina. O senhor acredita que, com Milei, os EUA poderiam assumir um papel preferencial?
Os EUA têm economia e produção muito consolidadas. Os produtos argentinos, em sua maioria bens primários, dificilmente poderão competir com os americanos. Vou dar um exemplo: se a economia dos EUA mede 100, em comparação a da Argentina não chegaria nem a um ponto dessa medição. É inimaginável que os EUA permitam uma competição leal, pois se prejudicariam.
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