Alugada pelo PL, no começo de 2022, para sediar o comitê de campanha dos candidatos do partido à Presidência da República, a casa localizada no conjunto 8 da QI 15, no Lago Sul, entrou no alvo da investigação da Polícia Federal (PF). No inquérito apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF), em novembro, o imóvel foi chamado de "QG do golpe" por causa da atuação do então candidato a vice na chapa de reeleição de Jair Bolsonaro, general Walter Braga Netto, um dos 37 indiciados pela PF. O endereço — em que foram encontrados documentos que ligam o militar à trama golpista — recebeu visitas frequentes de outros indiciados.
O que o Ministério Público quer saber, agora, é se houve uso de dinheiro dos fundos Eleitoral e Partidário para manter uma estrutura paramilitar com objetivo de impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República. Para juristas, caso a PF consiga provar que o comitê de campanha do Lago Sul foi usado como uma das bases da trama golpista que culminou nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, o PL estará em maus lençóis, com risco, inclusive, de perder o registro do partido na Justiça Eleitoral. Foi no segundo andar da mansão que Braga Netto reuniu seu staff de assessores, a maioria oficiais do Exército.
"Como a Constituição estabelece, não podemos ter partidos que funcionam como uma organização paramilitar, a serviço de planos que atentem contra o Estado Democrático de Direito com recursos públicos para planejar assassinatos. Usar os recursos do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral para uma atuação nesse nível, pode, sim, ensejar uma discussão sobre a cassação do registro de partido político no Brasil", disse ao Correio Gabriela Rollemberg, advogada especializada em direito eleitoral.
Ela aponta, porém, que esse é um "tema muito novo" e que deve ensejar debates no meio jurídico. Mas reforça que a legislação é clara em relação à participação de partidos em atos que atentem contra a democracia.
"Nunca tivemos uma discussão, na nossa democracia atual, sobre esse tipo de questão. Mas a Lei do Estado Democrático de Direito reforça essa visão, assim como a Constituição, em seus dispositivos. Também há previsão no Código Eleitoral e na Lei dos Partidos Políticos, que não deixam dúvidas de que os partidos devem atuar dentro do Estado Democrático de Direito, dos princípios constitucionais, da dignidade humana, sem admitir nenhum ato que vá contra isso", explicou.
O artigo 17 da Constituição, no parágrafo 4º, diz que "é vedada a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar". A Lei 9.096/95, conhecida como Lei dos Partidos Políticos, reforça a proibição, em seu artigo 6º: "É vedado ao partido político ministrar instrução militar ou paramilitar, utilizar-se de organização da mesma natureza e adotar uniforme para seus membros". São salvaguardas legais que estavam previstas no ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição de 1945, que previa, no artigo 141, a proibição de "organização, registro ou funcionamento de qualquer partido político ou associação cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem".
O Correio procurou advogados do PL para comentar o inquérito, mas não obteve retorno. Os advogados de Braga Netto afirmaram, após o cliente ser indiciado pela PF, que ele "não coordenou e não aprovou plano qualquer nem forneceu recursos". O general e mais 24 militares foram indiciados por crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa, cujas penas podem chegar, somadas, a 28 anos de cadeia.
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Ninguém subia ao 2º andar
De acordo com o relatório da Polícia Federal (PF), as articulações políticas do general da reserva Walter Braga Netto se estenderam além da derrota nas urnas, em outubro de 2022. Ele manteve o escritório funcionando até o fim daquele ano, quando a casa foi devolvida ao locador. Ao longo de quase seis meses, o movimento foi intenso no segundo andar da mansão, que recebeu políticos, correligionários e muitos militares.
De acordo com assessores da campanha de Jair Bolsonaro, que falaram reservadamente ao Correio, a estrutura montada por Braga Netto era apartada da equipe que atuava no primeiro andar, onde trabalhavam os profissionais de marketing, imprensa e produção audiovisual.
"Bolsonaro raramente aparecia. Ele usava mais o estúdio da produtora contratada, que funcionava em outra casa, também no Lago Sul. Braga Netto, ao contrário: ia quase todos os dias para o comitê, mas ele se trancava no segundo andar com seu time próprio", disse uma das pessoas ouvidas pelo Correio.
O acesso ao segundo andar era rigidamente controlado. Havia sempre um segurança na escada e outro, no hall do pavimento superior. Só subia quem tinha autorização de Braga Netto. Ninguém do time de profissionais que trabalhava no andar de baixo tinha permissão para subir.
Para a PF, o escritório do militar não era usado com fins eleitorais e, sim, como um local reservado à conspiração golpista. Uma vez por semana, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, reunia o chamado "alto comando" da campanha — Bolsonaro, Braga Netto, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o marqueteiro Duda Lima — para avaliar o andamento da corrida eleitoral, sempre no primeiro andar da casa.
Quando a derrota de Bolsonaro foi confirmada, o PL desmobilizou a equipe. Mas Braga Netto continuou utilizando o segundo andar do imóvel. As equipes que atendiam Bolsonaro e a ex-primeira-dama Michelle foram transferidas para a sede do PL, no edifício Brasil 21, no Setor Hoteleiro Sul.
Ao longo das investigações, a PF reuniu farto material com indícios de que o "bunker" de Braga Netto tinha outras finalidades — entre elas, fazer a ponte entre alguns militares e o acampamento de cunho golpista montado na frente do Quartel-General do Exército, no Setor Militar Urbano, que pedia intervenção militar. Outra suspeita é de que o endereço tenha sido usado para articular as estratégias de descredibilização das urnas eletrônicas.
De acordo com o relatório apresentado ao STF pela PF, "a residência utilizada pelo comitê da campanha de Bolsonaro (...) foi utilizada pelo general Braga Netto para realizar encontros com pessoas que defendiam uma intervenção militar. Tal fato explica os deslocamentos de Amauri Saad e José Eduardo de Oliveira e Silva entre o Palácio da Alvorada e o referido imóvel".
Saad e Oliveira e Silva são apontados como integrantes do Núcleo Jurídico do golpe. Entre novembro e dezembro de 2022, participaram de reuniões com o então assessor presidencial Filipe Martins no local. A PF mapeou, cruzando dados de aplicativos de mensagens e de geolocalização por torres de telefonia celular, os movimentos dos dois entre o comitê de campanha e o Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência, que tem vários registros de entrada dos investigados.