Apontado como um dos principais articuladores da suposta trama golpista que culminou no 8 de janeiro de 2023, o general da reserva Mario Fernandes apresentou, em 2002, dissertação de mestrado em ciência militares, com 182 páginas, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Nela, defende a importância do papel dos chamados kids pretos. O Correio teve acesso ao texto acadêmico em que o oficial disserta sobre as Forças Especiais do Exército e orienta que elas devem ter autoridade para atuar livremente nos campos "social, econômico, político e militar" em caso de "guerra irregular".
Fernandes está entre os cinco presos na Operação Contragolpe, da Polícia Federal, que identificou um plano para assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. No governo de Jair Bolsonaro, o general da reserva atuou como secretário executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República e assessor do ministro da Saúde, general Eduardo Pazzuelo.
No texto intitulado Comando de Operações de Unidades Especiais (COpUEsp): análise crítica, o general, há 22 anos, ainda major, na página 25, afirma que, "no Brasil, embora as unidades especiais ainda estejam em estado embrionário, as autoridades militares já reconheceram a importância das Forças Especiais nos campos social, econômico, político e militar, priorizando seu treinamento e equipagem".
Porém, o trecho que chama a atenção está na página 169, na conclusão do estudo, quando o oficial se diz convencido — e busca fazer o mesmo com a banca examinadora — da relevância das Forças Especiais como único meio de combater o que chama de "guerra irregular".
"Até o momento, o 1º BFEsp (Batalhão de Forças Especiais) é a única U (Unidade) operacional apta à condução da Guerra Irregular e a uma variada gama de missões específicas, complexas e decisivas no contexto dos combates modernos", diz ele, no texto acadêmico.
Em seguida, complementa: "Essa U, vitoriosa desde sua criação, tem cumprido suas missões valendo-se dos lemas históricos que ostentam suas glórias: Qualquer missão; O ideal como motivação; Em qualquer lugar; A abnegação como rotina; A qualquer hora; O perigo como irmão; De qualquer maneira; A morte como companheira".
O trabalho acadêmico traz uma linguagem sóbria, bem diferente da usada pelo general nas conversas de WhatsApp encontradas pela PF. Em uma delas, Fernandes escreveu em um grupo de oficiais do Exército: "Me desculpe a expressão, mas quatro linhas é o c... Quatro linhas da Constituição é o caceta. Nós estamos em guerra, e eles estão vencendo".
Agradecimentos
No trabalho, Fernandes, logo na página 6, faz agradecimentos emocionados a Deus e, também, ao general Luiz Eduardo Ramos, que foi ministro do ex-presidente Jair Bolsonaro, e ao general Cesar Augusto Nardi de Souza, ex-membro do Alto Comando do Exército. Esse último integrou a banca avaliadora.
"Ao meu amigo, TC Inf (tenente-coronel de infantaria) Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira (Forças Especiais), ex-Cmt (comandante) da Seção de Instrução Especial da Aman, cuja liderança e exemplo profissional foram fontes de inspiração para esse trabalho", afirma ele, no texto.
'Análise crítica'
Do ponto de vista acadêmico, afirmar que o estudo apresentado é uma "análise crítica" suscita questionamentos, pois, na monografia, Fernandes faz uma narrativa sobre as operações de unidades especiais, não são, exatamente, ponderações. No documento, ao qual o Correio teve acesso, o oficial compara as Forças Especiais às estruturas existentes em exércitos e forças policiais de outros países. Na página 72, por exemplo, cita os Rangers norte-americanos, o Long Range Desert Group, ou Comandos do Deserto dos ingleses, Spetsnaz russos, Gurkhas indianos, Voluntários da Morte vietnamitas ou Recce da África do Sul.
Ironicamente, o texto também apresenta uma proposta de organograma para o Comando de Operações Especiais, grupamento que o general comandou 16 anos depois, em 2018, na gestão Bolsonaro. O oficial está fortemente vinculado ao 1º Batalhão de Forças Especiais, que se tornou conhecido como berço dos kids pretos. A alusão se refere ao fato de seus integrantes usarem um gorro preto. O militar fez parte da unidade entre 1988 e 1993.
Acesso restrito
Essa tropa de elite passou a ser alvo de investigações da Polícia Federal, que aponta suspeitas de estarem no centro da suposta organização criminosa que tramou o golpe para evitar a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nas apurações encaminhadas ao Supremo Tribunal Federal e, posteriormente, ao Ministério Público Federal, policiais afirmam que Fernandes foi um dos líderes do movimento. Na última semana, militares do Exército definiram "acesso restrito" à dissertação de Fernandes.
Tropa de elite do Exército
O grupo formado pelo Curso de Operações Especiais é treinado para atuar nas missões sigilosas com ambientes hostis e politicamente sensíveis. É o que define a norma interna do Exército. O apelido de kids pretos surgiu do costume de seus componentes usarem gorros pretos nas operações. De acordo com o inquérito da Polícia Federal, a estratégia a ser utilizada para executar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente, Geraldo Alckmin, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, foi ensinada nessa "escola".
Internamente, são militares considerados especialistas em guerra não convencional, reconhecimento especial, operações contra forças irregulares e contraterrorismo. O cálculo é que sejam em torno de 2,5 mil militares no país atuando nas Forças Especiais. São reconhecidos no Exército pelo apuro técnico, militar e bélico. Dos presos na operação Contragolpe, da PF, além do general Fernandes, havia outros quatro oficiais ligados ao grupamento.
O tenente-coronel Mauro Cid, principal delator do processo de investigação, fez parte dos kids pretos. Segundo ele, o general Mario Fernandes era um dos militares mais radicais do grupo. Fernandes foi preso preventivamente quando eclodiram as informações sobre as investigações da Polícia Federal.
Bolsonarista
Mario Fernandes, general da reserva, foi ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro. Atuou ainda como assessor especial do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello (PL-RJ). Em 2016, foi promovido a general de brigada em 2016. Em 2020, foi para reserva. Ele chefiou o Comando de Operações Especiais, os kids pretos.