A primeira mulher eleita presidente da Assembleia Nacional de São Tomé e Príncipe, Celmira de Almeida do Sacramento dos Santos Lourenço nasceu com a conquista do país pela independência de Portugal, em 1975. "Fui eleita para esta legislatura (em 2022), presidente da Assembleia Nacional. Então dos 55 deputados, tive 52 votos favoráveis, um voto branco e duas abstenções praticamente", contou, antes de iniciarmos a entrevista.
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Aos 49 anos, ela é uma das figuras mais proeminentes da política santomense, em um regime democrático recente, com primeiras eleições democráticas há apenas 33 anos. Deputada pelo círculo de Mé-Zóchi desde 2010, Celmira nasceu e cresceu em Trindade, município a 12km da capital, São Tomé. Mais velha de nove irmãos, filhos de um pai professor e uma mãe doméstica, estudou matemática e biologia à luz de uma candeeira a petróleo. "Tinha que fazer doces para pagar o transporte. Eu fazia também pastéis (bolos), só não fazia gelado (sorvete) porque na minha zona não tem energia", conta.
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Conciliou trabalho, estudos e família e política. Teve um casal de filhos. Em entrevista exclusiva ao Correio, a vice-presidente do seu partido, a Ação Democrática Independente (ADI), e ex-presidente da Rede das Mulheres Parlamentares fez reflexões sobre a trajetória, os desafios da liderança política e as metas para o futuro da nação. A deputada destacou a importância da recente aprovação da lei da paridade, que estabelece uma meta de 40% de representação feminina nas próximas eleições, e as preocupações com a qualidade alimentar no seu país.
Confira a segunda entrevista da série Mulheres no Poder:
Como são distribuídas as oportunidades para homens e mulheres no parlamento de São Tomé e Príncipe?
A desigualdade de gênero ainda é bastante sentida no nosso país. Mesmo no parlamento, que é uma casa legislativa, só recentemente, na legislatura anterior (no fim de 2022), conseguimos aprovar uma lei de paridade, que não é 50-50, é de 60% (homens) para 40% (mulheres). Ela ainda não foi implementada por não ter sido promululgada a tempo de entrar em vigor para as últimas eleições. Portanto, nós só começaremos a tirar partido desta legislação nas próximas eleições legislativas. Mas o nosso tribunal constitucional já está sensibilizado para inviabilizar as listas que não tiverem esta paridade aprovada na Assembleia Nacional. Mas, além das questões sociais, a desigualdade de gênero está muito presente em nossa cultura.
De que forma?
As próprias mulheres, muitas vezes, não conseguem se libertar. Enquanto parlamentares, precisamos emponderá-las, para que elas possam estar em qualquer lugar onde os homens estejam. Precisamos trabalhar para que, na situação em que ambos tenham a mesma formação (escolar e acadêmica), ela não seja deixada para trás por ser mulher. Nós sabemos que os homens podem não ter qualificação nenhuma, mas quando são chamados podem tudo. Já as mulheres, quando são chamadas, começam a ser muito cobradas. E, como há de saber, também temos que lidar com o racismo. Uma mulher negra, num país como São Tomé e Príncipe, para conseguir ser erguer, precisa provar ter muitas qualidades, porque é censurada mesmo pelas mulheres. Portanto, temos um trabalho árduo pela frente, para criar essa sensibilização. Mas já demos um passo importante, que foi a lei de paridade.
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A senhora já veio ao Brasil outras vezes, quando fez parte do quadro da Assembleia Parlamentar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), e da Rede de Mulheres Parlamentares. Em julho, também esteve em Maceió para a 1ª edição da Reunião de Mulheres Parlamentares, dando importantes passos para os santomenses no cenário internacional.
É uma honra para mim, enquanto mulher e governante, num país pequeno no Golfo da Guiné, ser chamada para o P20 e poder analisar questões humanitárias a nível igual com todas as mulheres dos outros países. Porque as decisões resultantes chegarão no meu país.
A sua participação ativa na tomadas de decisões representa uma quebra de paradigmas.
Quando nós temos mulheres bem organizadas, bem estruturadas, nós temos um país economicamente mais evoluído. Costuma-se dizer que a pobreza tem a cara feminina. Não sei por que, e não precisa ser assim. A mulher pode estudar como um homem pode estudar. A mulher pode fazer as coisas, uma boa parte delas, como os homens podem fazer. Nós sabemos que há algumas limitações porque somos iguais, sim, mas de gêneros diferentes, então, a constituição fisiológica é diferente, mas nos lugares de decisões, nas atitudes, tudo que os homens fazem nós podemos fazer. Dizer que a pobreza tem o rosto feminino é limitar os espaços ocupados por mulheres. Enquanto elas forem colocadas na posição de "só servirem" — para cuidar com filhos, cuidar do lar, cuidar do marido, lavar e passar —, a pobreza terá o rosto feminino. Em situações como essas, ela não será capaz de deixar o lar onde está se for preciso, mesmo se sofrer alguma violência. E acontece de, muitas vezes, ela ser maltratada. Portanto, se nós conseguirmos empoderá-las todas, nivelá-las ao ponto de cada uma conseguir, por si só, o seu meio de sustento, a pobreza já não terá o rosto feminino. E isso tudo é feito com a educação. E, quando se pensa em inclusão, as mulheres estão presentes.
A senhora começou a carreira como professora e trilhou uma trajetória na política, passando por diversos ambientes predominantemente masculinos. Como foi isso?
Eu sou a primeira de nove filhos dos meus pais — eu digo dos meus pais porque meu pai tem outros. E ele, professor, conseguiu que eu estudasse. Na altura, tínhamos que percorrer longas distâncias para ir à escola, porque só havia até o oitavo ano no distrito de Mé-Zóchi, minha região. Todo o resto era na capital. Eu tinha que me levantar às 5h para apanhar a boleia nos caminhões que levavam os trabalhadores. Concluí meus estudos, fiz um estágio, e comecei a trabalhar como professora. Quando surgiu uma primeira universidade no meu país (em 1998), chamada ISP, Instituto Superior Politécnico, eu ingressei. Sou aluna número 36 da minha universidade. Como só havia bacharelato, decidi fazer matemática, conciliando os estudos com o trabalho. Meu pai já havia me dado até o 11º ano, todo o resto eu fiz por mim. Tinha que fazer doces para pagar o transporte. Eu fazia também pastéis (bolos), só não fazia gelado (sorvete) porque na minha zona não tem energia. Eu estudava com candeeiro a petróleo. Foram percursos muito pesados. Assim, consegui me formar em ciências naturais. Depois, quando soube da abertura (de cursos) para licenciatura me matriculei em biologia por ter bivalência com matemática, que já requeria muito trabalho. Licenciei-me em biologia. Então, anos depois, surgiu em São Tomé um polo administrativo e com aulas presenciais dos professores da Universidade de Évora, de Portugal. Sem precisar me deslocar do meu país, fiz mestrado em Políticas de Educação — dentro de alguns dias devo defender a minha dissertação. Para dizer que: por mais que tenhamos dificuldades, precisamos de aprimorar os nossos conhecimentos. Eu já tinha a minha primeira filha, mas mesmo assim consegui conciliar a família, a escola, e a política.
E como a senhora entrou na política?
Eu não tinha 16 anos quando meu pai começou a me levar para as reuniões do partido. Eu ficava muito atenta a tudo o que diziam. Falava pouco, mas estava sempre lá. Quando completei 18 anos, comecei a trabalhar nas assembleias de voto, e o meu partido foi me conhecendo. Cheguei a representar o partido a nível da comissão eleitoral, distrital, e a ter mais visibilidade. Toda a reunião que marcavam, eu estava presente. Vieram as eleições de 2010, e fui eleita secretária permanente da mesa da Assembleia Nacional. Em 2012, meu governo caiu, então, retomamos em 2014 e 2018, e eu voltei a ser secretária permanente da mesa, a trabalhar com o presidente da assembleia nacional. Em 2018, nós ganhamos, mas não tivemos a maioria suficiente para governar, então, formou-se a troica. Nesse período, fui vice-presidente da quinta comissão, Comissão de Gênero, Mulher e Família. Antes, havia sido presidente da terceira Comissão da Assembleia Parlamentar da CPLP. Nas eleições de 2022, fui eleita presidente da Assembleia Nacional. Estou nessa caminhada, aprendendo muito, fazendo também bastante. Quando não posso fazer sozinha, peço colaboração. Quando não sei, peço apoio. Nós devemos ter a humildade, porque sozinhos não fazemos nada.
Mesmo em meio a essa resistência cultural quanto ao papel da mulher na sociedade, seu pai se preocupou com a sua educação.
E em me levar para a política, o que é menos provável ainda. Foi porque ele me levava (nas reuniões) com ele que comecei a ser vista. Hoje, ele está cego, mas no dia do meu empossamento, ele estava lá. Demorou o tempo que demorou, passou a fome que passou, mas ele esteve lá para me dar aquele abraço. Vocês não imaginam a emoção. Choramos os dois juntos. Certamente, estava a cumprir o grande sonho dele, de ver a filha que ele ajudou ser alguém. E também ver que fiz por merecer, aproveitei bem cada momento que me foi oferecido, porque se eu não conseguisse aproveitar se calhar não chegaria até aqui.
Quanto à desigualdade social, o que São Tomé e Príncipe tem feito para reduzir os efeitos dela?
Como eu dizia, o empoderamento tanto de mulheres quanto dos homens passa pelo nivelamento escolar. O Estado deve dar para todos a escolaridade mínima obrigatória. A desigualdade social no nosso país tem sido minimizada com ações de políticas públicas do próprio governo e associações não governamentais.
E quais são as políticas públicas para combater a fome e a pobreza?
Temos vários departamentos do Ministério da Educação que se conectam com a nutrição, mudanças climáticas ligada à nutrição e à alimentação. O governo está engajado na perspectiva de melhorar a quantidade e a qualidade do que os santomenses comem, tanto nível de importação como de exportação. Nós temos também uma instituição especializada em analisar a qualidade dos produtos importados. Portanto, há política pública para este setor.
É a fome um problema sistêmico para o país?
A fome (no país) não existe. Pode haver uma má alimentação. Não só dos pobres, muitas vezes pessoas empoderadas financeiramente alimentam-se mal, não sabem equilibrar o seu prato no dia a dia. Mas, na nossa terra, não temos grandes problemas, porque o terreno é fértil, chove. Nós temos mangas para todo canto, a fruta-pão, várias espécies de banana, produtos hortícolas. A nossa agricultura é, em boa parte, de subsistência, não só para consumo, mas para venda para comprar outros alimentos para o consumo da família. Portanto, quem disser que passa fome em São Tomé estaria a mentir. No entanto, se me perguntar: "Toda a família santomense consegue ter três refeições quentes na sua mesa?", eu respondo que não, ainda não chegamos a esse ponto.
Então, a preocupação maior está relacionada com a qualidade da comida.
Sim, com a qualidade do que se come. Ultimamente tem havido muitas doenças crônicas que antigamente não havia. As crianças de tenra idade estão a ter infartos, diabetes. Recentemente, saiu um menino de São Tomé para Portugal estudar, de 19 anos. Pouco tempo depois de ter chegado, sentiu-se mal e faleceu. O mesmo aconteceu com meninos jovens no nosso liceu (ensino médio). Algum tempo atrás, só os mais velhos tinham esses problemas de hipertensão arterial por exemplo. Agora, os meninos estão a ter.
Começou quando?
De cinco ou seis anos para cá, e está piorando. É preciso que seja feito um estudo para desvendar a fonte desses males todos.
Uma das suspeitas é a alimentação.
Não sabemos se é o que nós produzimos ou o que importamos, mas algum problema com alimentação existe.
Em maio, a ministra da Educação, Cultura e Ciência de São Tomé e Príncipe, Isabel Abreu, pediu essa reparação colonial com relação a Portugal. Portugal poderia colaborar de alguma forma?
Na comemoração do 50º aniversário (da Revolução dos Cravos) de 25 de Abril em Portugal (em 2024), o presidente (português) Marcelo (Rebelo de Sousa) havia dito que iria apoiar ex-colônias ou algo assim. Depois a ministra, em algum momento, disse que iria para o conselho de ministros abordar essa situação. Mas em momento nenhum saiu um comunicado do governo com alguma posição oficial com relação a isso. Mas São Tomé e Príncipe conta com a cooperação Portugal para todas as áreas, saúde, estudo. Mesmo ao nível parlamentar, tenho muitos funcionários nesta legislatura que se formaram em Portugal, vão fazer estágios. Parlamentares de Portugal vão ao nosso Parlamento dar estágio e nos acompanhar. Portanto, a ligação entre São Tomé e Príncipe e Portugal ela é quase que umbilical.
Na visão de São Tomé e Príncipe, o que deve ser feito para alcançar essa governabilidade Global adaptada ao século 21.
Nós devemos saber que não estamos isolados, e com o desenvolvimento de tecnologias, com internet, o mundo está cada vez mais global. O que estamos a fazer aqui, agora, se estiverem em direto (ao vivo), qualquer ser humano com acesso à internet pode acompanhar. Não tem como governar mal, porque os outros estão atentos. Portanto, a governança global deve permitir que todos os serviços sejam informatizados. É assim que tem que ser, já não há como agirmos em pequenas Ilhas, estamos todos conectados.