Depois de um ano e meio de investigação, a Polícia Federal concluiu o inquérito que apura uma tentativa de golpe de Estado que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023. O relatório final, que está nas mãos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), deve ser enviado amanhã à Procuradoria-Geral da República. Nos próximos três meses, o órgão vai decidir se apresenta a denúncia contra os indiciados pela corporação.
Ao Correio, fontes apontam que a Procuradoria vê interligação entre os três casos e pretende apresentar uma denúncia conjunta que deve ser enviada ao Supremo até fevereiro de 2025. O relatório sobre a tentativa de golpe tem 800 páginas. O volume exige tempo para avaliar todas as provas e imputações que foram apresentadas contra 37 envolvidos. Não está descartada a possibilidade de que sejam solicitadas novas investigações — o que, na prática, prorrogaria o tempo de duração das investigações. Existem lacunas especialmente no que tange à eventual participação de Jair Bolsonaro na trama golpista.
A prova mais contundente é a identificação de duas minutas, de teor parecido, que pretendia levar ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a cadeia e decretar estado de sítio no país pouco depois das eleições de 2022. Os documentos foram encontrados na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres e na sede do Partido Liberal, em Brasília.
O relatório final com as conclusões do inquérito vai se juntar a outras duas investigações que também estão na PGR: a venda de joias sauditas pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e o transporte ilegal para os Estados Unidos; e a fraude nos cartões de vacinas para o ex-chefe do Planalto.
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No caso das joias, a Polícia Federal investiga um suposto esquema de venda ilegal de presentes e bens de luxo da União para favorecer o patrimônio privado de Jair Bolsonaro. Um dos itens foi o relógio de platina cravejado de diamantes, que foi entregue por sauditas ao então presidente durante uma viagem oficial em 2019. O objeto foi levado para os Estados Unidos e, segundo a investigação, vendido.
Ciência dos fatos
A suspeita é que as operações funcionavam por determinação de Bolsonaro. A PF afirma que esses itens foram levados aos EUA no mesmo avião em que ex-presidente viajou em dezembro de 2022, durante seu autoexílio. As conversas obtidas pela corporação mostram Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, pedindo que o pai dele, Mauro Cesar, enviasse fotos das joias.
No inquérito da fraude, a investigação apontou que o documento de vacinação do ex-presidente teria sido adulterado às vésperas da ida aos Estados Unidos. Segundo a apuração, o registro falso de imunização do ex-chefe do Planalto e de sua filha, Laura, foi incluído no sistema do Sistema Único de Saúde (SUS) em 21 de dezembro de 2022.
Bolsonaro saiu do país em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) em dezembro de 2022, após se recusar a passar a faixa ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). À época, ele disse que passaria um "período sabático" na Flórida com a família. Em março, o ex-chefe do Executivo voltou ao Brasil com a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Segundo a Polícia Federal, foram forjados dados de vacinação de pelo menos sete pessoas: Jair Bolsonaro; a filha dele, de 12 anos; Mauro Cid, ex-ajudante de ordens; a mulher do militar; e as três filhas dele.
As investigações são baseadas na delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Outros desdobramentos também corroboram com as suspeitas dos investigadores, como quebras de sigilo, buscas presenciais e a oitiva de testemunhas. As diligências apontam para uma ligação temporal e prática de diferentes investigações que envolvem a cúpula do poder civil e militar durante a gestão bolsonarista.
A defesa de Bolsonaro nega o envolvimento com irregularidades. O ex-presidente chama as acusações de fruto de "criatividade". "Tem que ver o que tem nesse indiciamento da PF. Vou esperar o advogado. Isso, obviamente, vai para a Procuradoria-Geral da República. É na PGR que começa a luta. Não posso esperar nada de uma equipe que usa a criatividade para me denunciar", declarou.
Processo demorado
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, decidiu fazer uma análise conjunta das conclusões da Polícia Federal que envolvem Jair Bolsonaro para analisar se o oferecimento de apenas uma ação criminal contra o ex-presidente. Na avaliação do advogado Bruno Henrique de Moura, uma denúncia conjunta, embora seja possível, pode atrapalhar o andamento do caso.
"É possível apresentar uma denúncia por vários fatos, cada um sendo referente a um crime, e tendo uma conexão demonstrada pela acusação. Mas penso que isso atrapalharia o próprio andamento da ação, pois dificultaria tanto a prova de autoria e materialidade por parte da acusação, quanto causaria transtornos ao exercício da defesa", destaca.
Segundo ele, o volume pode gerar uma enorme ação penal. Para o jurista, neste momento, não há ligação entre os casos, mas que, existindo evidências, pode ocorrer a reunião de acusações em uma só denúncia — em que os crimes menos relevantes seriam somados aos mais graves.
"Não conheço dos autos e pode existir prova, nas investigações, de que a tentativa de venda das joias foi para financiar algum movimento de tomada do Poder Legítimo do Estado ou que a fraude nos cartões de vacina era parte de um plano de fuga em caso de fracasso de pretenso golpe. Mas, ao que parece, no momento não há relação entre os episódios que mais parecem isolados", diz.
O advogado Alexandre Pontieri aponta que após o recebimento da denúncia começa a fase em que os réus podem se defender. "Recebida a denúncia pelo STF, os acusados passam a ser réus no processo - nessa fase terão que ser observadas as garantias constitucionais ao contraditório, ampla defesa e devido processo legal para a defesa dos réus", ressalta.
Para o cientista político Elias Tavares, o oferecimento da denúncia é inevitável diante da evolução dos acontecimentos. "O indiciamento de um ex-presidente demonstra a força do Estado de Direito, mas intensifica a polarização e levanta desafios jurídicos e políticos. A democracia brasileira é resiliente, mas enfrentar ameaças exige mais inteligência, combate à desinformação e fortalecimento da confiança nas instituições", conclui.