DIREITOS TRABALHISTAS

Fim da escala 6x1: "Dores e sequelas se acumulam para o resto da vida"

Motorista de aplicativo em Brasília e um dos responsáveis pela organização dos atos na capital falou ao Correio sobre sua experiência de vida na escala 6x1 e de luta por melhores condições de trabalho

O entregador de aplicativo Abel Santos esteve à frente dos atos do "FimdaEscala6x1 em Brasília, realizados nesta sexta-feira (15/11) na Rodoviária do Plano Piloto -  (crédito: Arquivo Pessoal)
O entregador de aplicativo Abel Santos esteve à frente dos atos do "FimdaEscala6x1 em Brasília, realizados nesta sexta-feira (15/11) na Rodoviária do Plano Piloto - (crédito: Arquivo Pessoal)

Nesta sexta-feira (15/11), dezenas de cidades brasileiras vão às ruas na luta pelo #FimdaEscala6x1. Abel Santos, entregador de aplicativo e integrante da Associação dos Trabalhadores por Aplicativos e Motociclistas do Distrito Federal e Entorno (ATAM-DF), e um dos organizadores dos atos do "FimdaEscala6x1 na capital, conversou com o Correio antes das manifestações de 15 de novembro.

Ele estará em Brasília, na concentração em frente à Rodoviária do Plano Piloto, às 9h. Há anos, engajado na luta por melhores condições de trabalho, Abel se conectou com Rick, e os dois somaram forças para lutar pelas gerações que estão por vir.

Confira a entrevista com Abel Santos na íntegra:

Como foi o processo para organizar a manifestação?

O próprio Rick Azevedo, criador do movimento, propôs essas manifestações. Aqui em Brasília, eu já tinha feito a proposta de usarmos o feriado para poder panfletar para os trabalhadores que trabalham no feriado. E, então, veio a ideia do ato nacional pelas capitais brasileiras. Então, o que seria um panfletaço se tornou uma manifestação em uma proporção maior do que imaginávamos, com presença de deputados distritais e federais, a adesão de vários grupos estudantis, e dos próprios trabalhadores.

Era o plano inicial?

Nós, inicialmente, faríamos esse panfletaço à tarde pelo horário dos shoppings, na rodoviária. Mas mudamos o horário justamente para o trabalhador poder participar, já que o horário do shoppings serão os mesmos de domingo – abrindo as 2h da tarde e fechando às 20h. Então, das 9h até o meio-dia, os trabalhadores conseguem participar, e depois ir para o trabalho. Então se iniciou essa organização pelos grupos de WhatsApp, e agora pelo Instagram, pelas redes sociais em geral.

Você já fazia parte de algum movimento aqui do DF?

Sim, eu faço parte da Associação dos Trabalhadores por Aplicativos e Motociclistas do Distrito Federal e Entorno (ATAM-DF), que luta por melhores condições de trabalho para os usuários de aplicativos desde 2019.

E começou assim.

Eu tenho a filosofia de que todos os trabalhadores, independente da categoria, tem que se unir. Eu vejo o sofrimento da minha esposa trabalhando na 6x1, e ela vê meu sofrimento trabalhando pelo aplicativo. Então, a gente se apoia nisso e dá força para luta. Antes mesmo dessa popularidade toda eu já conversava com o Rick. E agora que ele se tornou vereador e pode fazer a diferença para aqueles que ainda estão dentro dos shoppings, nas farmácias, dentro dos supermercados, e que são explorados nessa escala que traz malefícios mentais e físicos pras pessoas. Então, estou sempre nessa luta. Hoje, mesmo estávamos dando um curso de treinamento de formação em pilotagem com o objetivo de reduzir acidentes na categoria dos entregadores que utilizam a moto e bicicleta.

A ligação entre você e o Rick Azevedo, fundador do VAT, então, qual é?

Eu conheci o Rick nas redes sociais. É uma pessoa super acessível, humilde. Fiz uma ligação para ele, me apresentei, falei que queria ajudar. Logo ele já me puxou para dentro, e hoje é um grande amigo. Torço para que ele se torne, não só vereador, mas governador, presidente, porque precisamos de ver um trabalhador ocupar esses cargos na gestão pública, com o poder de realmente mudar e fazer a diferença, porque ele sabe muito bem quais são as dificuldades. Ele sabe muito bem o que é ser pobre, ser trabalhador, pegar ônibus, passar duas ou três horas para chegar no trabalho, na volta passar mais duas ou três horas em um ônibus lotado. Ele sentiu na pele tudo aquilo que a gente passa dentro das periferias.

Queria saber um pouco da sua história. Pode me contar?

Eu me chamo Abel Santos, tenho 33 anos. Comecei minha vida trabalhando no comércio. Estagiei em lojas que vendem móveis desde 12 anos, nos programas menor aprendiz. O meu primeiro trabalho foi no supermercado, aqui próximo de casa, no Recanto das Emas, onde eu moro até hoje, dentro da escala 6 por 1. Depois fui para o fast-food, dentro da escala 6x1. Do fast-food para loja de shopping, que vende roupa. Passei um bom tempo lá até tirar a carteira e conseguir financiar uma moto, e passei a ser motoboy, na época motofretista para uma terceirizada. Mesmo sendo uma motofretista, aos 20 anos, eu fazia os bicos de garçom e de segurança, sempre no 7x0, porque a escala de motofretista na época era 6x1, e à noite eu ainda fazia esses bicos, aos fins de semana, para ter condições de estudar. Então, minha vida foi dentro desses trabalhos: ou em cima da moto, ou como segurança, sempre na escala 6x1, até a chegada dos aplicativos em 2016, e me tornei motorista de aplicativo.

E houve alguma melhora?

Foi quando eu assumi a escala 7x0, porque a gente não para de trabalhar, e desde então eu trabalho pelos aplicativos. Em 2019, como entregador, vi a necessidade de começar a lutar por pedidos contra racismo, contra o preconceito, tentando combater as violências, as agressões físicas e verbais que já sofríamos por sermos entregadores. Em 2020, com a pandemia, isso se intensificou. Porque nós não tínhamos EPIs, então fomos lutar por EPI. Eu fui um dos organizadores do “Breque dos apps”, aqui em Brasília, que se tornou algo nacional. Eu estava lá, foi onde fundou-se a associação. E a gente começou a lutar por pautas é maiores, sempre focado na qualidade de vida do trabalhador melhores condições de trabalho direitos trabalhistas. E, nessa caminhada, se veio várias outras lutas que sempre apoiamos. Mas o VAT, por eu ter passado por isso na pele, quis integrar, organizar, e fazer parte, por saber o que é trabalhar em supermercado, farmácia, em shopping, fast-food, sempre na escala 6x1, e isso me traz sequelas, mentais e físicas até hoje.

Para você, a importância dessa manifestação na luta por melhores condições de trabalho.

Eu vejo que essa manifestação ela está unindo estudantes, trabalhadores de diferentes categorias, caixas de supermercado, atendentes de farmácia, vendedores de shopping e vários outros. E foi isso que eu sempre tive como convicção: que os trabalhadores têm que se unir, independente de categoria. Nós temos que entender que em todos nós estamos no mesmo barco, na mesma tempestade, e começar a lutar para ter melhores condições, para ter mais direitos, porque nós viemos perdendo direitos em cada reforma que teve: reforma previdenciária, reforma trabalhista, agora a reforma administrativa. E eu sei que cada reforma que vem vem para onerar ainda mais o trabalhador, tirar direito desse trabalhador. Então se a gente não tiver essa união nós não vamos conseguir resistir. Essa é que é a verdade.

Por que a escala 6x1 tem que acabar?

Escala 6x1 tira a vida social e afetiva, a saúde mental e a física das pessoas. Você tem só uma folga na semana, trabalha oito horas por dia, sem feriado, sem datas comemorativas – porque chega ao fim do ano se você folga o Natal para estar com a família, você vai trabalhar no ano novo e vice-versa. Então, acaba trazendo diversas mazelas psicológicas. Hoje, várias doenças que entraram na lista de doenças por trabalho, como burnout, depressão e ansiedade, são gerados pelo excesso de carga horária, pelo cansaço.

Não dá para ter vida fora do trabalho.

A gente vê trabalhador dentro dessa escala, mal remunerado, com a escala excessiva, sem tempo para estar quase com a família, sem vida social, sem ciclo de amigos – a não ser aqueles que trabalham com ele. Eu passei por isso. Eu jogava bola com o pessoal do shopping, saía com o pessoal do shopping. Então, estava mais com o pessoal do trabalho do que com a minha família, dentro de casa. Você não tem tempo para resolver um problema dentário, por exemplo, porque pensa: “Ah, se eu der atestado vão me demitir”. Então, não faço consulta, não faço check-up, só vou ao hospital quando chego ao extremo. Fora a pressão.

Dá para dizer o momento que mais te marcou na vida, como consequência desse modelo de trabalho?

Uma vez, eu fui almoçar na casa de um amigo, e quando eu peguei a comida, comecei a comer e a mãe dele falou: “Calma!”. Quando ela pediu calma para comer, meu amigo falou: “Você já trabalhou no comércio, né?”, eu respondi: “Por 10 anos da minha vida praticamente”. E ele falou: “Eu te entendo. A gente não tem tempo para comer, então a gente cria o hábito de comer rápido”. Isso me marcou muito. Ali, a ficha caiu. Para você ver como essas dores e sequelas se acumulam ao longo do tempo. A gente leva para o resto da vida. Por isso é tão importante findar essa escala e a gente galgar a diminuição da carga horária para que esse trabalhador possa viver, ter a vida além do trabalho, porque quando a gente está nessa escala, nossa vida é o trabalho, são as pessoas do trabalho, tudo está relacionado com o trabalho. O mais importante, para mim, é a saúde do trabalhador.

postado em 15/11/2024 09:00 / atualizado em 15/11/2024 16:26
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