As eleições presidenciais desta terça-feira nos Estados Unidos põem em dúvida a relação entre os governos brasileiro e americano nos próximos anos. O ex-presidente republicano Donald Trump concorre com a atual vice-presidente democrata Kamala Harris. As pesquisas mais recentes mostram os dois empatados, portanto, não há um vencedor claro para a disputa. O cenário causa apreensão no entorno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma eventual vitória de Trump representaria o retorno de políticas protecionistas, como as adotadas em seu primeiro mandato; aumento da incerteza no cenário econômico internacional; e, internamente, o fortalecimento do bolsonarismo.
Lula é crítico de Trump, a quem chamou de "mentiroso" durante a campanha eleitoral. O petista declarou sua preferência, primeiro, pelo presidente Joe Biden, que desistiu da reeleição, e, depois, pela atual candidata democrata. "Acho que Kamala ganhando as eleições é muito mais seguro para a gente fortalecer a democracia. É muito mais seguro", frisou o presidente, na sexta-feira passada, em entrevista ao canal francês TF1. "Nós vimos o que foi o presidente Trump no final de seu mandato fazendo aquele ataque ao Capitólio, uma coisa que era impensável acontecer nos Estados Unidos. Porque os Estados Unidos se apresentavam ao mundo como um modelo de democracia, e esse modelo ruiu. Agora, temos o ódio destilado todo santo dia", acrescentou.
A expectativa no governo é de que Lula reconheça publicamente o resultado das eleições americanas e cumprimente o vencedor, seja Trump, seja Kamala. No caso de Trump, porém, pode decidir se ater a uma nota protocolar, em vez de um telefonema. Ele não deve repetir a atitude do ex-presidente Jair Bolsonaro, que demorou 38 dias para cumprimentar Joe Biden pela vitória em 2020. Bolsonaro passou um ano e meio tentando organizar um encontro com o presidente americano e conseguiu apenas em junho de 2022.
A maior preocupação do Planalto com uma vitória de Trump é o provável fortalecimento da extrema-direita brasileira, dada a proximidade entre os bolsonaristas e os aliados de Trump. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), por exemplo, está nos Estados Unidos para acompanhar a votação. Uma vitória do republicano em um cenário polarizado, semelhante ao visto no Brasil, pode abrir caminho para que Bolsonaro consiga ao menos eleger seu sucessor. No melhor dos casos, pode aumentar a pressão por uma anistia a si mesmo e aos presos pelos ataques golpistas de 8 de janeiro.
Caso Trump vença, outro embate do governo brasileiro que pode se agravar é com o bilionário Elon Musk, dono de empresas como X, Tesla, SpaceX e Starlink. O empresário é um dos aliados mais próximos do republicano, que considera colocá-lo em um cargo num novo eventual governo. Em uma entrevista, Trump mencionou Musk como um futuro "ministro do corte de gastos".
O bilionário também liderou uma série de críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, especificamente, ao ministro Alexandre de Moraes, após se recusar a cumprir ordens da Corte para suspender contas de bolsonaristas no X por disseminação de informações falsas e conteúdos antidemocráticos.
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Análise
O professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Goulart Menezes avalia que uma possível vitória de Trump preocupa o governo por dois motivos: a volta das políticas protecionistas que adotou em seu primeiro mandato, prejudicando o comércio com o Brasil; e o fortalecimento da extrema-direita no país e na América Latina. "Já com Kamala, o Brasil vê o desafio, sobretudo, de manter o diálogo de alto nível e, quem sabe, os Estados Unidos refaçam o mecanismo de interlocução. A Cúpula das Américas, depois de 30 anos, está muito desgastada e debilitada", disse Menezes.
O especialista também apontou que Lula deixou a prudência de lado ao declarar apoio a Kamala Harris na semana passada, mas acredita que a decisão foi tomada pelo fato de Trump ser da extrema-direita, e não de uma direita convencional como foi, por exemplo, com a reeleição de George W. Bush em 2004.
"Ele não só declarou sua preferência pela candidata democrata como fez considerações sobre seu oponente, falando da ameaça à democracia dos EUA e da América Latina que representa o Trump, e mencionou o nazismo e o fascismo", comentou o professor. "O presidente Lula decidiu, dada a declaração dele, não adotar essa prudência porque está bem claro que são dois projetos políticos muito diferentes", acrescentou.
Já o coordenador de Análise Política da consultoria BMJ, Lucas Fernandes, afirmou que o Brasil vai manter uma relação pragmática e sua posição de país aliado dos Estados Unidos independentemente de quem for o próximo presidente. O grande desafio será a política econômica, em certo grau isolacionista, que Trump anuncia em sua campanha. O republicano prometeu taxar fortemente os bens importados e deportar milhões de trabalhadores imigrantes, um pacote de medidas que pode levar a maior inflação, juros mais elevados e um dólar mais valorizado em relação ao real. Esse cenário pode prejudicar a balança comercial brasileira.
Ele também avaliou que uma vitória do republicado pode ter efeitos na política interna brasileira. "Para Lula, seria pior do ponto de vista doméstico, visando à disputa de 2026. Os dois (Trump e Bolsonaro) respondem pelo mesmo crime. Caso veja o processo com Bolsonaro avançando, você teria uma figura muito importante na Presidência dos Estados Unidos muito provavelmente fazendo declarações pró-Bolsonaro", destacou o analista. "Sem sombra de dúvida, isso fortalece discursos um pouco mais extremistas, antidemocráticos. Seja o Bolsonaro candidato, seja um aliado próximo. Isso poderia fazer um coro muito maior."
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