No período em que foi senador, Saturnino Braga ocupou o gabinete 11, na Ala Teotônio Vilela. Um lugar repleto de histórias. Foi ali que, durante seis anos, de 1991 a 1997, o "dono" foi o amigo Darcy Ribeiro. Tanto é que "exigiu" que aquele fosse seu canto no Senado. Mas o melhor é que, um outro amigo, Oscar Niemeyer costuma visitar o lugar e, enquanto aguardava na sala de espera, desenhava "sua" Brasília e "seu" Rio de Janeiro nas paredes. Os croquis da década de 1990 são um presente aos olhos.
Niemeyer passava horas desenhando nas paredes do gabinete. Ele fazia o que os arquitetos chamam de "desenho à mão livre", quando os esboços são feitos antes do grafite. Com a mente a mil, ele não parava de criar.Pouco a pouco, o local foi coberto por croquis do arquiteto com seus traços inconfundíveis: linhas retas, algumas curvas e formas arrendondadas. Não há uma sequência, pareceu ser feito aleatoriamente. Segundo contava Saturnino, Niemeyer demonstrava se divertir e não se entediar com a demora de Darcy Ribeiro, reconhecido por ser um anarquista no que se referia a cumprimento de horário. Ele só retornava ao gabinete, depois de conversar, tranquilamente, no caminho e, divertir-se com uma história aqui e acolá. Enquanto isso, o arquiteto de Brasília deixava sua marca na sala de espera do amigo.
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Assim, um curioso que for até o local vai esbarrar com painéis inteiros, desenhados em preto, com os traços inconfundíveis. São esboços do Sambódromo, do Ciep — que já não funciona mais com seu propósito, atualmente é uma creche — e de paisagens do Rio. Há, ainda, detalhes de Brasília. Ao pisar, pela primeira vez no gabinete, em 2002, Saturnino decretou: "Vou tombar". E, o fez.
"Quando vi aqueles traços, eu sabia que eram do Niemeyer, não tive dúvidas. Mandei colocar vidro em tudo. Avisei que era 'obrigação' preservar tanta arte", contou na época o senador. "Adoro ficar admirando, eu me pergunto: de onde ele tirava tanto talento", repetia. É verdade. É bonito demais: traços simples e precisos, marcas do gênio, agora guardadas.
Os painéis com os traços de Niemeyer seguem no gabinete 11, hoje sob os cuidados do senador Flávio Azevedo (PL-RN). Sensível, o parlamentar determinou cuidado máximo com a arte. O desejo de Saturnino foi atendido.
Amor por Brasília
Saturnino amava Brasília, gostava de andar pela cidade, lembrando dos tempos de Darcy Ribeiro e dos anos quentes da política, em que se debatia ideologia. Mas que, apesar das diferenças, de um jeito ou de outro, respeitavam-se. Guardava reminiscências de uma capital, mas que o coração não deixava desaparecer.
"Brasília é linda, não me canso de admirar", repetia Saturnino Braga."Gosto de andar devagar para poder observar cada detalhe e imaginar como tudo isso está aqui", acrescentava. A capital alimentava, em parte, a memória dele dos tempos de convivência saudável entre políticos, mesmo com suas divergências. Mas apreciava mesmo era uma boa conversa, de preferência com um bom prato. Quando encontrava a então senadora Benedita da Silva (PT-RJ) era só elogios. "Bené é responsável pela melhor feijoada que já comi na vida. Não há outra concorrente nem à altura", dizia ele. A petista, encabulada, agradecia e afirmava que o comentário estava carregado de exageros.
A exemplo de Darcy Ribeiro, que disse certa vez que o Senado era melhor do que céu porque ali poderia estar vivo, ao contrário do paraíso, para onde vão os mortos, Saturnino dizia que, no Senado, encontrava velhos conhecidos e os filhos daqueles que fizeram parte da sua história. E, estendia aos filhos o que sentia pelos pais, como Roseana Sarney e Laura Carneiro, filhas de José e Nelson, respectivamente.
Como bom carioca, adorava conversar. Certa vez, pegou um táxi, o motorista, sem saber quem ele era, resolveu falar mal dos políticos: ladrões e desinteressados. Saturnino ouviu tudo, quietinho, não retrucou. Ao sair do carro, educadamente, agradeceu e entregou o cartão de visitas para o taxista. "Olha, se precisar de algo, é só me procurar, trabalho duro, viu?". Contava o episódio e gargalhava.
Tom Jobim era o cara
Inteligente,culto, elegante e sempre com um comentário perspicaz na ponta da língua, Saturnino Braga, de 93 anos, morto no começo do mês, fazia parte de uma geração rara de políticos que marcou a história nacional. Dos tempos dele, estão vivos os ex-presidentes da República Fernando Henrique Cardoso, de 93 anos,e José Sarney, de 94. A trajetória do primeiro prefeito eleito democraticamente do Rio de Janeiro passou por altos e baixos e muitos causos.
Saturnino amava contar as histórias das situações mais inusitadas. Não apreciava acumular dores nem amarguras. Certa vez, uma jovem soube que ele tinha estudado o ensino médio, no Rio, com Tom Jobim, o grande compositor. Não pensou duas vezes. "Senador, era muito bacana essa turma de escola?", perguntou ela.
Pensando bem em como responder, o então senador buscou as palavras e reagiu."Não era bem uma turma. O cara (Tom Jobim) era tudo, né? Bonitão, inteligente, gente boa e ainda por cima cantava bem e tocava violão. Não sobrava para ninguém. Não tinha uma moça sequer que não quisesse ficar com ele. Os outros sobravam, claro", disse ele, dando uma gargalhada.
Saturnino não gostava de embates nem encrencas. Escapava de falar mal ou ficar em uma situação difícil. Após romper com o PDT, aborrecido com o presidente da legenda, o ex-governador Leonel Brizola, encontrou com um eleitor. "Votei no senhor, mas sou brizolista", disse o homem. Respirou fundo e respondeu: "Entendo, também já fui." E, seguiu a conversa.
Definia-se como de esquerda, foi MDB, PDT, PSB e PT, Saturnino defendia a democracia com unhas e dentes e parecia antever os tempos difíceis, pelos quais o Brasil passaria. Em 2006, fez um discurso emblemático.
"O Brasil não é um país onde se pratica a democracia há séculos. A democracia, para a sua realização plena, exige um tempo de prática, uma cultura política democrática, que só se consolida e se sedimenta com o passar do tempo. Percebo que o povo se emancipou e formou a sua opinião. Isso me faz acreditar que, agora, pode-se dizer que a democracia se enraizou definitivamente na sociedade brasileira, o que é muito importante, porque ela é um valor por si mesma. É a realização do verdadeiro espírito republicano."
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