Ultrapassando o cansaço de esperar em filas para votar, povos originários de tribos amazonenses precisaram caminhar por horas para exercer esse direito à cidadania no 1º turno. A seca do Rio Negro e Solimões impossibilitou o uso de barcos para chegar a Manaus, Amazonas, e percurso de 10 quilômetros precisou ser feito a pé. O vídeo, registrado pelo fotógrafo Chico Batata, é um alerta para o que essas comunidades ainda devem passar no 2º turno, em 27 de outubro, para elegerem David Almeida (Avante) ou o capitão Alberto Neto (PL) para a prefeitura da cidade.
Chico Batata conta que a intenção em acompanhar as quase três horas de caminhada de famílias indígenas “foi retratar o sacrifício que essas comunidades ainda enfrentam, demonstrando a resiliência dessas populações em um cenário que deveria ser mais acessível”. Manaus concentra mais de 52% do eleitorado do Amazonas, com cerca de 1,5 milhão de eleitores e quase 4 mil seções eleitorais espalhadas em 479 locais.
A maior seca da história na região levou o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do estado a antecipar a entrega das urnas, em setembro, e disponibilizar helicópteros para atender 78 locais de votação, alcançando mais de 20 mil eleitores no dia 6 de outubro. Ainda assim, comunidades ficaram isoladas. Essa “saga pelo voto” não passou despercebida pelos olhos de Chico Batata, que cresceu na capital amazonense.
Em termos de extensão, o Amazonas é maior estado brasileiro. O 1,5 milhão de km² de território supera a soma das áreas dos estados das regiões Sul e Sudeste. Apesar das dificuldades, Manaus foi a capital com menor índice de abstenção entre as capitais do Norte, com menos de 20%. As horas de caminhadas percorridas por povos originários como os das tribos Tikuna e Tariano, e registradas por Chico, revelam a importância do voto e a determinação em eleger candidatos que representem seus interesses.
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Confira a entrevista com Chico Batata, especialista em fotografar a Amazônia há mais de 30 anos, na íntegra:
Poderia descrever o processo para registrar ‘a saga pelo voto’, como você nomeou esse projeto?
O vídeo foi idealizado para destacar as dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas ao votarem na capital do Amazonas, Manaus, durante o período de seca. Devido à escassez de água, muitos deles são obrigados a caminhar a pé longas distâncias de suas aldeias até a cidade, enfrentando desafios como o cansaço extremo, o sol e a falta de água. O esforço é feito em nome do direito ao voto, um ato de cidadania fundamental. A intenção foi retratar o sacrifício que as comunidades ainda enfrentam, demonstrando a resiliência dessas populações em um cenário que deveria ser mais acessível.
Como surgiu a ideia?
Eu estava incomodado com as dificuldades que pessoas iriam enfrentar para se deslocar até o local de votação, porque o rio secou. Se o Rio Negro, que ficava ali, não tivesse secado, eles iriam votar de ‘voadeira’, que é tipo uma lancha pequena, e chegariam em 40 minutos. Era assim que funcionava nos anos anteriores.
Todo ano de eleição é assim?
Não, esse ano foi uma exceção. Quando o rio está em seu nível normal, o transporte dos povos indígenas para a capital é realizado por meio de barcos.
Essa seca histórica gerou mais essa dificuldade então.
Sim. Eu costumo fazer um documentário sobre as votações em todo ano eleitoral e, como eu tenho acompanhando a seca desde o início, eu fico muito atento ao que está acontecendo. Eu não publico todas as fotos, mas as imagens são impressionantes, de partir o coração. Então, fiquei monitorando essas famílias. Eu me perguntava: como elas vão fazer para chegar até a cidade para votar? E eu sabia que, para eles, isso era importante, porque eles tinham uma candidata à vereadora os representando, a Vanda Witoto, do partido Rede, – inclusive, ela foi muito bem, teve 8 mil votos.
Você já conhecia essas famílias antes desse trabalho?
Não, não conhecia. Nos encontramos no caminho, onde antes corriam as águas do Rio Negro, que secou. Fiquei esperando por elas passaram, e consegui acompanhar duas famílias, uma da tribo Tikuna e outra da Tarianoque, que foram para a cidade com antecedência – uma foi na quinta-feira e a outra na sexta-feira.
Foi fácil chegar até os membros das tribos Tikuna e Tariano?
Entrei em contato com o cacique, convenci para que ele fosse comigo, porque eles não iriam querer ser fotografados se eu estivesse sozinho. Eu e o cacique chegamos naquele local às 11h eles passaram ali, beirando o percurso onde ficava o Rio Nego, por volta das 16h. Assim que eles apareceram, o cacique os chamou e, no meio tempo, enquanto eles vinha na nossa direção, fiz os vídeos deles caminhando. No outro dia, fizemos a mesma coisa: eu e o cacique voltamos para aquele local para filmar e fotografar uma outra família, e acabei acompanhando eles até a seção de votação
Eles se queixaram da falta de acessibilidade em chegar ao local de votação?
Na nossa conversa, eles falaram sobre a importância do voto. Apesar das dificuldades enfrentadas, enfatizaram que não poderiam deixar de participar do processo eleitoral, e que esperam por um futuro melhor, por um mundo melhor, e mais consciente.
Mesmo conscientes da importância do voto, você acha que isso pode impedir que eles votem no 2º turno?
Com certeza. Vai ser menos provável eles irem votar no 2º turno, porque fica mais fácil pagar R$ 3 do que passar quase 3 horas andando a pé.
Qual outro fator pode influenciar na abstenção do voto dos povos originários?
Acredito que eles não sintam tanta necessidade de votar uma vez que a candidata deles não passou para o 2º turno. É possível que alguns não tenham voltado para suas comunidades e ainda estejam na cidade para votar. Mas, os que voltaram para suas casas, porque precisam cuidar das plantações, talvez não queiram percorrer novamente os 10 km de distância até o local de votação.
Por que elas precisam ir até Manaus para votar?
Algumas pessoas se registram para votar na capital ou porque trabalham ou porque têm parentes morando lá. Além disso, não há urnas nas aldeias que são abertas ao turismo. Elas são colocadas no Parque das Tribos, e é para lá que indígenas de várias etnias vão.
Onde fica o Parque das Tribos?
É um colégio eleitora, fica dentro da cidade. Não é exclusivo para indígenas, mas é onde eles votam. E tem esse nome justamente porque recebem povos de várias etnias. Os textos dos cartazes lá, pregados na parede, estão na língua dessas tribos. A ministra Cármen Lúcia foi lá, em junho deste ano, e determinou, por meio de uma portaria, que a comunicação ali estivesse no dialeto Nheengatu, que é uma língua geral usada entre os povos originários que vivem Amazônia.
As dificuldades para votar não se limitam a esses povos, eu imagino.
Além deles, outras pessoas na região metropolitana passaram perrengue para votar, e exercer o direito à cidadania. Os povos indígenas, em específico, chamaram a minha atenção porque eles precisariam percorrer essa distância toda andando. Então, eu queria passar esse olhar, de mostrar a vida dessas pessoas e causar esse impacto. Eu fico pensando: o que será de nós amanhã com essa seca? A situação aqui não está fácil.
Manaus já tinha enfrentado alguma seca parecida com a deste ano?
Já testemunhei muitas secas nas cidades, mas nunca experimentei uma situação tão grave como a atual. É uma realidade triste, porque muitas pessoas dependem dos rios para transporte e alimentação. Além disso, não podemos ignorar o impacto que essa crise tem sobre os animais, que muitas vezes não conseguem sobreviver à escassez de água e acabam morrendo.
Como você analisa a situação da região?
Infelizmente, Manaus não recebe a mesma atenção que outras grandes cidades do Brasil. Situações como secas e queimadas, muitas vezes, só se tornam pauta de destaque porque atingiram outras capitais maiores. O povo nortista, em geral, enfrenta desafios significativos e frequentemente se sente esquecido das discussões nacionais. Essa falta de visibilidade e suporte é preocupante, pois as consequências dessas crises afetam diretamente a vida da população local.
Os candidatos que disputam o 2º turno para a prefeitura da capital amazonense apresentaram propostas para combater as mudanças climáticas?
Pessoalmente, tenho minhas dúvidas se esses candidatos realmente farão algo para ajudar a melhorar a situação.
Mesmo envolvido neste trabalho, você conseguiu votar?
Claro. Meu domingo eleitoral foi tranquilo, consegui exercer meu direito de voto como cidadão normalmente. E vou votar no 2º turno também.
Agora, queria saber um pouco mais sobre o seu trabalho.
Meu trabalho tem como objetivo mostrar ao público como é a realidade na Amazônia. Além de destacar a beleza da floresta e da cidade, procuro expor os desafios que a população enfrenta, como as secas, a falta de acesso à saúde pública de qualidade e outros problemas da região. Meu estilo fotográfico é realista e humanizado, com o intuito de provocar reflexão e despertar sentimentos nas pessoas.
A paixão surgiu a partir de um experimento?
Começou por meio da curiosidade na verdade. Eu observava outras pessoas fotografarem momentos e memórias, e isso despertou em mim uma vontade de fazer algo igual.
Quando?
Sou fotógrafo há mais de 30 anos e, em 2013, comecei a me dedicar também à gravação de vídeos. Essas duas linguagens se complementam e, juntas, intensificam o impacto emocional, criando uma conexão ainda mais profunda entre a realidade retratada e o público.
Como processo criativo é estruturado?
Meu processo criativo também é momentâneo. Gosto de fotografar o que vejo, a realidade que vejo e o que acontece naquele momento do registro.
Existe algum projeto dedicado aos povos originários?
Não, nada em específico. O meu tema é a Amazônia, então, esses registros surgem espontaneamente, geralmente quando estou trabalhando em uma pauta que me dá a oportunidade de fotografá-los também.
Qual mensagem você busca passar para a sociedade por meio do seu trabalho?
A principal mensagem que busco transmitir por meio das minhas fotos é a importância da responsabilidade e do cuidado com o lugar em que vivemos. A Amazônia é uma região vital para todos nós e, com a pequena influência que tenho, espero contribuir para a conscientização das pessoas, tanto as que vivem fora de Manaus quanto as que vivem aqui e nas comunidades do interior.
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