O crescente uso da violência nos discursos políticos, debates e comícios, tem criado um ambiente de insegurança, que ameaça a democracia. O recurso não é novidade: há décadas o mundo convive com agressões, ameaças, desaparições e até assassinatos nas disputas pelo poder. Os Estados Unidos, maior democracia liberal do mundo, já assistiu quatro presidentes em exercício serem mortos, sendo John F. Kennedy o último, em 1960. Em 2024, 37 candidatos foram assassinados no México durante as campanhas eleitorais, as mais sangrentas da história do país.
“A violência vem sendo usada em campanhas eleitorais há muitas décadas e em muitos países. O que mudou de lá para cá é que, no século 21, os candidatos encorajam a violência como parte da estratégia de campanha. Antes disso, as regras da democracia pregavam a não-violência”, conta Scott Lucas, professor de Política Internacional e Americana da University College Dublin (UCD), ao Correio.
Segundo ele, esse má exemplo, “protagonizado por políticos que acreditam que as eleições podem ser ganhas por meio da intimidação dos adversários e por incitar agressões verbais e físicas”, criam um ciclo por meio do qual a violência se perpetua. “O aumento do uso dessa estratégia vai levar as pessoas a votarem em representantes violentos”, afirma.
O Brasil parece caminhar nessa direção. O recentes episódios de violências transmitidos pela tevê e a sua reprodução massiva na internet banalizam esse tipo de comportamento. Um exemplo disso está no aumento cada vez maior da visibilidade on-line que o candidato à prefeitura da capital paulista, Pablo Marçal (PRTB), personagem central das agressões que mais repercutiram no último mês, tem alcançado.
A primeira edição do relatório Monitoramento das Eleições Municipais de 2024, produzido pela Universidade de São Paulo (USP), mostra que o ex-coach superou a marca de 13 milhões de seguidores no Instagram em perfis paralelos — seu perfil oficial foi suspenso por ordem judicial do Tribunal Regional Eeitoral (TRE) de São Paulo, em agosto, por uso indevido dos meios de comunicação e suspeita de abuso do poder econômico.
Fora das telas de computadores e smartphones, os números também crescem. O Observatório da Violência Política e Eleitoral (OVPE) divulgado pelo Grupo de Investigação Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Giel/ Unirio) mostram que já foram registrados 510 registros de violência contra lideranças políticas desde o início do ano, incluindo físicas, psicológicas, econômicas, simbólicas e homicídios. “As medições começaram em 2019 e, apesar do recorte curto, percebemos que a violência sempre aumenta com a aproximação das eleições, e vem crescendo a cada ano” declara Miguel Carnevale, pesquisador da OVPE. Segundo ele, como o tema vem ganhado mais destaque no debate público, fica “mais fácil encontrar menções e denúncias”.
Para Scott, uma das justificativas para esse fenômeno está em se repetir o ‘modo de fazer’ de outras lideranças e na forma como as campanhas de alguns países ‘falam umas com as outras’. “Um político assiste o outro fazendo, e reproduz. É evidente que o ex-presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, ‘pegou emprestado’ as táticas de Donald Trump, do partido Republicanos dos Estados Unidos, – que depois se espalhou pela Europa. É como se um usasse o manual de estratégias do outro”, explica.
Outra ferramenta responsável por acelerar a adoção e normalização desse tipo de comportamento é a internet. Segundo o professor da Universidade de Brasília (UnB) e cientista político Robson Carvalho, as redes sociais amplificam discursos relacionados ao sistemas ditatoriais porque geram lucro. “A notícia ruim repercute mais do que a notícia boa. Por isso as declarações polêmicas e a violência geram mais visibilidade do que a discussão sobre as propostas”, relata.
“É provocação gratuita e barata é criada para repercutir nas redes sociais. Essa forma de comunicar está conectada com a extrema direita. Foi assim na gestão de Bolsonaro, na de Donald Trump nos Estados Unidos, repetida anteriormente por Boris Johnson no Reino Unido, e, atualmente, praticada por Javier Milei, na Argentina. Diversos personagens que utilizam do mesmo modus operandis, as mesmas ferramentas”, acrescenta Robson.
Ainda não há, no Brasil, um “código penal” dedicado a criminalizar casos de violência na política — seja para cassar mandatos ou punir candidatos em casos de agressão —, nem o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nem a legislação brasileira como conta o especialista em direito eleitoral e professor da Universidade de Brasília (UnB), Ademar Costa Filho. Segundo ele, para impedir que esse padrão permaneça na política e perpetue será necessária a criação de uma regulamentação específica sobre o tema, via Congresso Nacional.
A nível internacional, existem organizações que monitoram os funcionamento de regimes políticos e processos eleitorais pelo mundo, mas elas ficam limitadas em expor e em condenar os problemas. “Essas instituições não têm poder dentro dos territórios nacionais. O máximo que elas podem fazer é chamar a atenção para o problema. Mas, no fim do dia, o que importa é como as pessoas em seus países estão lidando com esse tipo de comportamento, se estão denunciando ou tomando providências legais para frear o problema”, comenta Scott.
Uma das instituições que monitoram a democracia pelo mundo é o Variedades de Democracia (V-Dem), a maior base de dados sobre democracia. Com mais de 4.200 colaboradores, 31 milhões de dados recolhidos em mais de 200 países entre 1789 e 2023, o V-Dem divulga relatórios anuais sobre os avanços e retrocessos da democracia por meio de mais de 600 diferentes atributos. No último, divulgado em março de 2024, a instituição informou que a democracia está em declínio em todo o mundo. Atualmente, 71% da população mundial (5,7 biolhões) vive em países sob regimes autocráticos, o número quase dobrou nos últimos 10 anos.
Saiba Mais
A dupla face do herói e da vítima
Especialistas entrevistados pelo Correio explicam como ataques físicos durante campanha foram usados por ex-presidenciáveis para a construção de uma imagem imaculada. “A tentativa de assassinato de Donald Trump, e aquela sofrida por Bolsonaro, foi usada para a construção de uma imagem que o colocaria em uma posição tanto de vítima quanto de herói. Isso parece contraditório, mas funciona: o político sofre uma ameaça contra sua vida, motivado pela vingança, mas sobrevive, supera e se fortalece”, conta Scott.
De fato, Bolsonaro, desde a facada, utiliza o discurso de que ele “nasceu de novo” naquele dia. O ex-presidente constantemente traz o episódio à tona em seus discurso para falar sobre seu ‘renascimento’. Nos discursos feitos na véspera e no dia da Independência, na Avenida Paulista, em São Paulo, Bolsonaro celebrou os seis anos da data de quando ele foi agredido pelo ex-garçom Adélio Bispo de Oliveira com uma facada em 6 de setembro de 2018 na cidade mineira de Juiz de Fora. “Eu renasci. Isso é parte da minha história e parte da história do Brasil”, repetia, dizendo que "Deus permitiu que sua filha Laura não ficasse órfã".
Essa construção da dupla face de herói e vítima, segundo Scott, foi cultivada por Trump “desde sua carreira nos negócios até sua ascensão política, especialmente a partir de 2015”, e que ainda ecoa nas falas de Bolsonaro. Pablo Marçal (PRTB), candidato à prefeitura de São Paulo, tentou se colocar nesse mesmo patamar depois que foi agredido com uma cadeira seu adversário José Luiz Datena (PSDB) durante o debate transmitido pela TV Cultura em 15 de setembro. Marçal publicou em suas redes sociais imagens no qual comparava a ‘cadeirada’ com a facada de Bolsonaro e o tiro em Trump.
A comparação não surtiu o efeito esperado por dois motivos, como analisa o professor do Insper, em São Paulo, doutor em filosofia e mestre em ciências políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Schuler: “O primeiro ponto é a motivação. A ‘cadeirada’ não aconteceu do nada, ela foi uma resposta a uma provocação. Então, fica difícil vê-lo como vítima depois disso. O segundo é o risco de vida. Enquanto a facada te coloca em uma posição de sobrevivente, a ‘cadeirada’ não. Inclusive, tem um lado pastelão nisso”.
Independente da causa, a violência aparece como estratégia política para desviar a atenção dos eleitores. Segundo o professor da Universidade de Brasília (UnB) e cientista político Robson Carvalho, as agressões físicas e verbais utilizadas por Marçal é uma forma de distrair o público do que realmente interessa: “Quem se lembra das propostas dos outros candidatos? Não se fala em outra coisa para além das agressões. A facada em Bolsonaro foi utilizada com o mesmo fim: fugir dos debates”, explica.
“A distração é eficaz na campanha, porque permite que o público não veja pontos contraditórios dos candidatos que a usam. Marçal e Bolsonaro, por exemplo, ganharam popularidade graças às redes sociais, onde os discursos são unilaterais. Portanto, sair dos debates é uma forma de evitar o confronto”, detalha Robson.
Da perspectiva da repercussão online, a estratégia funciona bem. Segundo relatório da Universidade de São Paulo (USP) sobre monitoramento online das eleições municipais, Marçal é responsável por 9 das 10 publicações com maior engajamento nas redes sociais. A análise foi feita entre 15 a 29 de agosto, portanto, antes das agressões físicas ocorridas em setembro. Além da cadeirada, Nahuel Gomez Medina, assessor de Marçal, deu um soco no rosto Duda Lima, marqueteiro da campanha do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), no fim de um outro debate.
Fernando relata que, apesar da repercussão, a postura agressiva “gera muita rejeição”, o que limita a conquista de novos de eleitores. Segundo ele, Marçal tem uma base digital de eleitores, chamada ‘minoria ativa’, “que o torna forte no primeiro turno, mas fraco no segundo”. “A minoria ativa são os ativistas de redes sociais, com perfil mais radical, tanto de esquerda quanto de direita. Ela pesa no jogo porque é mais barulhenta. Então, o político acaba falando mais para esse público. Mas quem define as eleições é a maioria silenciosa”, detalha. A maioria silenciosa é composta pela outra parte, pessoas menos engajadas no mundo digital.
- Leia também: Pai de Kamala Harris foi professor da UnB
No caso das eleições americanas, que ocorrerão em 5 novembro, Scott vê poucas chances de crescimento para Trump. Segundo ele, o candidato deixou a desejar quando prometeu trazer a pauta de união para o debate, e nunca o fez. Em vez disso, manteve a narrativa narrativa de ‘nós contra eles’. “A vitimização não é suficiente. O candidato precisa demonstrar competência. Trump conseguiu tirar o foco do seu péssimo desempenho até um certo ponto. Depois, com os comentários absurdos sobre imigrantes estarem comendo animais de estimação, ele se tornou uma figura ridícula e perigosa”, relata Scott.
Democracia em declínio
Em 2023, o mundo voltou a viver como em 1985, ano que marcou o fim da ditadura militar no Brasil, no que se refere ao nível de democracia usufruído pelo cidadão comum de acordo com o Relatório da Democracia 2024 da V-Dem. Atualmente, as 91 democracias correspondem à 29% da população mundial, enquanto as 88 autocracias concentram os outros 71%, um aumento de 48% em 10 anos.
- Leia também: Violência política é afronta à democracia
Segundo o relatório, os componentes da democracia pioram mais do que progridem. Entre eles, está a liberdade de expressão como componente mais ameaçado, sendo afetada em 35 países em 2023. As eleições limpas, em segundo, se deteriorou em 23 países e apresentou progresso em apenas 12.
No processo de consolidação de regimes, as eleições se apresentam como eventos críticos, podendo desencadear a democratização ou permitir a autocratização. O relatório cita as eleições presidenciais no Brasil em 2022 como um exemplo de como usar as eleições para travar a autocratização.
Saiba Mais
O Brasil trava e reverte autocratização
O país ainda enfrenta o legado de polarização na sociedade deixado pelo ex-Presidente Jair Bolsonaro – polarização que se iniciou com o impeachment de Dilma, em 2016, segundo o Relatório da Democracia 2024 do V-Dem. O texto informa que o governo anterior teve uma gestão marcada por ataques aos meios de comunicação social; por restrições à liberdade académica; tentativas de minar o sistema eleitoral; e conflitos com os poderes legislativo e judicial. A subida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder ocasionou “um ano de reversão das políticas de Bolsonaro e ao fim das violações à democracia”.
Saiba Mais
América Latina: um cenário de incertezas
De acordo com com o V-Dem, a América Latina reverteu a tendência à autocracia graças aos progressos registrados no Brasil e na Bolívia em 2023. Como país com maior concentração populacional, o desempenho brasileiro interfere diretamente na classificação do continente. República Dominicana e Honduras são considerados em democratização. Já a autocracia, presente em nações menores, como Cuba, Nicarágua e Venezuela, está em ascensão em outros sete países: El Salvador, Guatemala, Guiana, Haiti, México, Nicarágua e Peru.
Apesar disso, o continente é a região com o maior percentual da população vivendo sob regime de “zona cinzenta”, ou seja, onde a incerteza política prevalece e não é possível estabelecer uma classificação segura. Um deles, o México, citado no início do texto por ter tido as eleições mais sangrentas da sua história este ano, ainda se apresenta como democracias eleitoral que se aproxima dos limites da autocracia. O presidente López Obrador, do partido Morena, assumiu o governo em 2018 e, em 2024, foi reeleito.
Como o mundo está dividido
Na classificação entre democracias e autocracias, o mundo se divide em 91 países democráticos, correspondente à 44% da população mundial, e 88 autocráticos, que por abranger países com alto índice populacional governa os outros 71% dos habitantes do globo. A democracia é um regime político que permite cidadãos participarem do processo político, diretamente ou através de representantes eleitos, enquanto a autocracias é uma forma de governo autoritária na qual o poder está concentrado em um único governante e cada uma possui duas categorias dentro do relatório da V-Dem.
Entre os maiores países do mundo, as autocracias eleitorais estão presentes na Índia, Paquistão, Bangladesh, Rússia, Filipinas e Turquia, enquanto as autocracias fechadas são encontradas na China, Irão, Mianmar e Vietnã. Já os modelos de governo democráticos se dividem em eleitorais, na Argentina, no Brasil e na África do Sul, e os liberais, utilizados pelos Estados Unidos, Chile e Uruguai.
O caso El Salvador
Começou um processo de democratização em 1992 que progrediu até 2014. O declínio levou o país à autocratização em 2018. Em cinco anos do governo do Presidente Nayib Bukele, do partido Nuevas Ideas (Novas Ideias em português) o país eliminou quase todos os progressos democráticos. As ações que levaram El Salvador a ocupar o primeiro lugar entre os países que apresentam o maior declínio nos Índice de Democracia Liberal (IDL) — medidor de aspectos liberais e eleitorais da democracia — foram:
- Detenções arbitrárias ordenadas pelo executivo e pelo legislativo;
- Perseguição de atores da sociedade civil, jornalistas, juízes, académicos e defensores dos direitos humanos;
- Manobras nas regras de reeleição
- El Salvador se tornou oficialmente uma autocracia eleitoral em 2021, quando o poder judicial foi desmantelado, mantido até 2023. Em 2024, nas eleições de fevereiro, o Bukele foi reeleito.
Lições do Brasil para o futuro
Segundo o relatório do V-Dem, o Brasil se tornou um exemplo de como usar as eleições para frear e reverter o processo de autocratização. Os fatores que contribuíram para transformar o país em um democratizador após uma fase de avanços autocráticos no período pré-eleitoral listados pelo texto foram:
Combater a desinformação
- Criação o site "Fato ou boato" pela Justiça Eleitoral para verificar a autenticidade das informações e combater as fake news
- Investigação sobre "milícias digitais" do Supremo Tribunal Federal (STF) para identificar grupos criminosos que atuam online ameaçando regime democrático
Aliança da oposição pró-democracia
- Coligação de nove partidos uniram-se para apoiar a candidatura de Lula e derrotar Bolsonaro
- Opositor por duas décadas, Geraldo Alckmin se uniu à Lula "para salvar a democracia"
Independência judicial
- Investigações do STF que identificaram fontes de desinformação online associadas aos ataques à democracia ligadas a Bolsonaro e seus aliados
- Resistência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aos ataques de Bolsonaro
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br