Um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, em vigor desde 2010, o advogado e ex-juiz de direito Márlon Reis reagiu à ofensiva da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado em flexibilizar essas regras e permitir até mesmo que o ex-presidente Jair Bolsonaro, hoje inelegível, possa disputar a eleição de 2026, tentando seu retorno ao Palácio do Planalto.
Ao Correio, Márlon afirmou que a aprovação desse projeto na comissão, na última quarta-feira, foi "o mais grave atentado à Lei da Ficha Limpa", que, lembra, vem sofrendo ataques nesses 14 anos de vigência e é alvo de projetos legislativos e ações na Justiça para reduzir sua efetividade. Para ele, a "legitimidade e a força histórica" da lei se mantêm íntegras até agora.
Márlon Reis afirma também que a pressão para essas mudanças deriva da ação de prefeitos e aliados políticos, hoje inelegíveis, de parlamentares federais, que, para agradar essa base de apoio nos seus redutos, bancam essas alterações. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o senhor avalia essa aprovação na CCJ, flexibilizando a aplicação da inelegibilidade?
Foi o mais grave atentado contra a Lei da Ficha Limpa desde o início da sua vigência, em 2010. Houve uma luta contra a lei, que persiste até hoje. Foi muito difícil sua aprovação, depois de demorado debate sobre sua constitucionalidade. Ao longo desses anos, conseguimos evitar alguns projetos de lei que visavam enfraquecer a lei, e que foram arquivados após a rejeição. Ano passado, um partido político, tentando alcançar o que o Senado está fazendo agora, tentou reduzir as chances de inelegibilidade, mas a Suprema Corte decidiu que não havia mudança no quadro fático para justificar a amenização das suas regras. Justamente pelas derrotas sucessivas, decidiram mudar a própria lei, apesar da imagem de legitimidade da Lei da Ficha Limpa e de sua força histórica.
De fato, foram muitas tentativas de mudar a lei nesses anos, e agora essa do Senado.
Nossa expectativa é de que o plenário do Senado rejeite qualquer alteração como essa da CCJ, que reduz drasticamente os casos. Em algumas hipóteses, ficou até pior do que antes da Lei da Ficha Limpa. Casos como corrupção, narcotráfico, homicídio, estupro. Essas penas são altas, e eles estão decidindo por condenação por órgão colegiado. Significa que, quando a pena terminar, a inelegibilidade deverá ter terminado muito antes. Em algumas hipóteses, essa PEC tenta tornar o quadro das inelegibilidades pior do que era, quando a lei não tinha eficácia alguma.
A que atribui essa ofensiva contra a Lei da Ficha Limpa?
Essas ações contra a lei são a prova de sua eficácia, do tanto que ela incomoda. O Congresso Nacional, além dos vários parlamentares que enfrentam problemas e riscos com a Justiça, é pressionado por políticos locais, que estão com suas vidas políticas inviabilizadas, nem tanto pela Lei da Ficha Limpa, mas pelos crimes a que ela se refere. A pena é alta porque a acusação é grave, e a condenação é longeva porque o fato é grave. A lei passa longevidade, mas, na verdade, a extensão da medida aumenta em função da gravidade da conduta que faz com que as penas sejam maiores.
O senhor entende que os políticos nacionais sofrem essa pressão de suas bases eleitorais, de seus apoiadores?
Sim, há uma pressão muito forte da base política, de um prefeito, de um ex-prefeito para viabilizar suas candidaturas. Ainda mais agora, em ano eleitoral. Por isso, colocaram na norma a aplicação imediata da regra, tentando com que vigore ainda nestas eleições. De aplicação imediata e retroativa. Já foram feitos os pedidos de registros das candidaturas, que podem se aprovados ou não. Mas até 20 dias antes da eleição é possível pedir substituição de candidato. Podemos ter pessoas hoje inelegíveis que entrariam na disputa. Pode substituir alguém que está na disputa, um parente ou uma pessoa de confiança, que renuncie a sua candidatura e é substituída por outra.
Ou seja, alguém inelegível hoje, daqui a umas semanas, se essa proposta for aprovada, pode virar um "ficha limpa" e entrar na disputa?
Isso mesmo. É um risco concreto, porque votaram e impuseram urgência para ir à votação no plenário. E qual é a urgência dessa lei? Qual é a urgência de mudar a lei de inelegibilidade se não for para dar tempo de favorecer, de beneficiar um incontável número de pessoas hoje inelegíveis?
E foi mais uma votação rápida, de forma simbólica e sem debate. O que quer dizer alguma coisa, não?
Foi uma votação simbólica, sem senadores na sessão. Não teve votação nominal (quando cada parlamentar manifesta sua posição num painel). Nem podemos fazer lista de quem votou contra ou a favor. Passou por unanimidade. Mas foi uma unanimidade burra na CCJ. Não foi debatida. Esperávamos que fosse arquivada, quando fomos surpreendidos com a inclusão da proposta na pauta.E numa urgência sem fundamento.
O senhor avalia haver risco real de o ex-presidente Jair Bolsonaro ser beneficiado e, caso aprovada a mudança, até disputar a eleição em 2016?
Há um risco real de ele ser candidato em 2026. Na falta de atenção, acho que nem o governo percebeu o que estava sendo votado.Um ponto que é suicida para ele, governo. A mudança na redação da alínea D, do artigo 1º do inciso 1 da Lei de Inelegibilidades, como redigido hoje e se assim ficar, tem uma expressão que é um truque, que passou despercebido mesmo por mim.Hoje, a lei diz que a inelegibilidade decorre do abuso de poder econômico e político. E o que foi aprovado diz que a perda do direito político só será permitido quando esse condenado por abuso de poder econômico ou político tiver comportamentos que "possam implicar a cassação de registros, de diplomas ou de mandatos". Isso mudou tudo. No caso de Bolsonaro, condenado por abuso de poder político nas eleições de 2022, a inelegibilidade atual não implicou cassação de registro ou diploma, uma vez que ele perdeu a eleição. Sob a nova redação, Bolsonaro poderia recuperar sua elegibilidade e disputar a eleição.
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