A desconfiança mútua entre os próprios aliados é uma prática comum na direita bolsonarista, que acumula casos de um “grampear” o outro às escondidas. Um comportamento recorrente em que até Jair Bolsonaro esteve envolvido. A divulgação do áudio de gravação feita pelo deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), exdiretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), de uma reunião na qual se debatia formas de sepultar a investigação da Receita Federal sobre as “rachadinhas” do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), em 2020, é mais um episódio que coloca o ex-presidente no centro de uma situação embaraçosa.
A chegada de Bolsonaro ao poder, em 2019, jogou luz também na bancada do PSL, partido que o elegeu, e que logo no início do governo mostrou que unidade não era seu forte — tanto que rachou e iniciou uma troca de “fogo amigo”. Surgiu ali a prática de se gravar o que o outro diz entre as quatro paredes dos gabinetes.
Um desses casos foi parar no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Numa reunião de parlamentares da antiga legenda de Bolsonaro, em 2019, o então deputado Daniel Silveira (RJ) gravou a fala do líder do PSL à época, Delegado Waldir (GO), que fazia críticas ao ex-presidente. Na gravação, Waldir aparece falando em “implodir” Bolsonaro e o chamou de “vagabundo”.
Silveira negou ter sido o autor do “grampo” e que recebeu o conteúdo gravado de outro colega — e o tornou público “em legítima defesa do presidente”. O PSL o acusou por quebra de decoro por ter gravado e divulgado conversas de uma reunião reservada. O conselho julgou Silveira culpado e o condenou à suspensão de mandato por dois meses, em junho de 2021.
Outro parlamentar do PSL, o deputado federal Heitor Freire (CE), foi apontado como responsável pela gravação e divulgação de um diálogo com o próprio Bolsonaro. O assunto era esse mesmo racha do partido na Câmara e o presidente criticou Delegado Waldir, pois o queria fora da liderança da legenda. Freire negou ter gravado e divulgado a conversa.
Dentro do palácio
Uma crise instalada no coração do Palácio do Planalto gerou a saída de Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, com apenas dois meses de governo. Em fevereiro de 2019, entre atritos públicos com o filho 02 de Bolsonaro, o vereador carioca Carlos, e a acusação de que o PSL, quando presidido por ele, foi envolvido em acusações de candidaturas laranjas para o Congresso, Bebianno levou a pior. O ex-ministro, que morreu em março de 2020, disse que tinha algo guardado fora do Brasil contra o ex-presidente, o que fazia supor ser uma gravação. Esse material, porém, nunca apareceu.
Mesmo passagens e situações com muitos protagonistas, e em local de muita exposição, como o Palácio do Planalto, ocorreram para não serem registradas. Mas foram. É o caso da reunião de Bolsonaro com seus ministros em julho de 2022, na qual foi tramada a execução de um golpe de Estado se a reeleição corresse riscos. Só se tornou pública porque a Polícia Federal (PF) encontrou o vídeo desse encontro no computador do ex-ajudante de ordens da Presidência da República, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid.
Nessa conversa, Bolsonaro falou que a liberdade estava em jogo e que era preciso reagir, colocar em prática um “plano B” e que seria difícil “ganhar o jogo”. Na reunião, o general Augusto Heleno, que chefiava o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), falou em necessidade de “virar a mesa” e infiltrar agentes da Abin em partidos aliados do hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que nada poderia ser vazado. Bolsonaro pediu para evitar a observação.
“Se a gente começar a falar ‘não vazar’, esquece. Pode vazar. Então, a gente conversa particular na nossa sala sobre esse assunto”, solicitou.
No encontro, o então ministro- chefe da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, chega a perguntar se a reunião estava sendo gravada. O general Walter Braga Netto, ministro- chefe da Casa Civil à época e vice da chapa de Bolsonaro, respondeu que “não”. O ex-presidente respondeu que mandou gravar apenas sua fala.
O mais recente caso de “fogo amigo” na arapongagem é o áudio da reunião de Bolsonaro, Ramagem, Heleno e as advogadas de Flávio Bolsonaro — Luciana Pires e Juliana Bierrenbach. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, levantou o sigilo da investigação da PF e expôs um esquema de utilização da instituições de Estado para solapar uma investigação.