Entrevista

Anielle: "Marielle foi o exemplo concreto de um atentado à democracia"

Em entrevista ao Correio, a ministra da Igualdade Racial faz um balanço dos 18 meses à frente da pasta, lembra a importância do Julho das Pretas e repudia atos de violência política, como o que aconteceu com o ex-presidente Donald Trump

Segundo a ministra, o Ministério da Igualdade Racial compartilha do entendimento de que
Segundo a ministra, o Ministério da Igualdade Racial compartilha do entendimento de que "igualdade é desenvolvimento", e é essa noção que norteia a atuação da pasta - (crédito: Reprodução/CB)

Mês importante para a luta política das mulheres negras, conhecido como Julho das Pretas, o período também marca 18 meses completos de governo Luiz Inácio Lula da Silva. Em entrevista ao Correio nesta terça-feira (16/7), a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, descreveu a atuação do ministério desde o período de transição e elencou as principais dificuldades para tornar a luta por igualdade racial uma pauta coletiva e transversal dentro do governo.

Além disso, Anielle disse ter uma conexão pessoal com a luta do Julho das Pretas, o que ela e a irmã, Marielle Franco, herdaram da família. A ministra repudiou, ainda, atos de violência que ameaçam a democracia, ao lembrar do recente atentado contra a vida do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e compará-lo ao assassinato de Marielle.

Veja:

Anielle Franco contou que os desafios à frente do ministério começaram ainda em 2022, quando fez parte da equipe de transição do governo, e que o primeiro obstáculo foi a necessidade de reestruturar o ministério sob a ótica das políticas públicas voltadas para a igualdade racial e de gênero.

“A gente tinha que primeiro reestruturar o ministério, e quando eu falo de reestruturar, a gente tá falando de 56% da população (que é negra). E desses 56%, 30% são mulheres. A gente tá falando, também, de um recorte de mulheres que são extremamente sub-representadas em espaços de poder, de decisão, de acesso, mas a gente também está falando de mulheres que são extremamente sobre-representadas em violência, em estupros em falta de dignidade de vida, né? Então, é importante a gente falar da questão de gênero, mas ele também é importante a gente trazer a questão da classe e da raça. E, Infelizmente, no nosso país, quando a gente recebeu em (20)22, 70% dos brasileiros que estavam passando fome eram pessoas negras”, lamentou.

Segundo a ministra, o Ministério da Igualdade Racial compartilha do entendimento de que “igualdade é desenvolvimento”, e é essa noção que norteia a atuação da pasta. Com isso, Anielle citou algumas das ações do ministério nesse sentido, ao mesmo tempo em que reforçou o apoio recebido dos Ministérios da Educação e da Saúde.

“Dentro do nosso programa do Juventude Negra Viva, a gente tem um programa de mães e familiares vítimas de violência, que contou com um investimento de R$1 milhão para atendimento psicossocial desses familiares, numa formação especializada de trabalhadores para atendimentos, elaborando as diretrizes para esse atendimento. Infelizmente é a realidade do nosso país, então a gente precisava focar naquilo. O decreto dos 30%, que nós assinamos lá atrás, visava dar o exemplo desse preenchimento mínimo que a gente quer que outras empresas e outros lugares façam, mas se a gente não desse nosso exemplo, sobretudo enquanto o governo federal, ficaria uma fala vaga, e não era isso que a gente queria. Então nós fizemos e o presidente Lula assinou várias iniciativas voltadas para as formações acadêmicas, estímulos e investimentos em estudo, como a formação de rede de lideranças negras dentro da ocupação do exercício de cargos estratégicos da administração pública. Tem também um recorte de pessoas negras para a Advocacia Geral da União, onde nós também conseguimos dar 30 bolsas de estudo”, exemplificou.

“Eu acho que esse edital para organizações, que vai ser lançado agora em julho desse ano, também é o edital para fomentar cada vez mais, dar condições não só de mulheres, mas dos homens negros também. Eu entendo que a gente tá no mês de julho, falando do mês das mulheres negras, mas eu acho que também é importante trazer esse recorte. Eu encerraria com todas as iniciativas que foram feitas dentro da área da Saúde. A ministra Nísia (Trindade) tem sido uma grande parceira e, desde a transição, nós nos sentamos e falamos da importância da saúde da população negra no governo do presidente Lula e a Nísia prontamente atendeu e acatou. E não foi diferente pensar a diminuição da mortalidade materna, pensar a diminuição da violência obstétrica, pensar em como as pessoas deveriam se comportar a partir do atendimento com pessoas negras. Tem um leque de coisas. Eu acho que cada passo dado foi um passo evolutivo, um passo a partir de uma reestruturação, mas também um passo em que nós conseguimos, no ano passado, investir mais de 80% do nosso orçamento para políticas públicas voltadas para a igualdade racial”, completou.

Julho das Pretas

Para Anielle Franco, julho sempre foi um mês de “muita festa, mas também de muita luta”. É o mês de aniversário de nascimento da filha mais nova da ministra, assim como o da irmã, a vereadora Marielle Franco. Anielle contou sobre os meses que ela e a irmã passavam de férias em João Pessoa (PB), onde aprenderam com a tia Solange tudo sobre a luta do Julho das Pretas.

“Minha tia é uma das militantes mais antigas do movimento de mulheres negras que tem em João Pessoa, Tia Solange, e sempre foi um mês que, quando nós estávamos de férias, em João Pessoa, a gente sempre acompanhava muito. Era sarau, era ato, era conferência, enfim. E aí, não é diferente quando a Marielle entra para a política, não é diferente quando eu também me torno professora”, relembrou.

A ministra compartilhou planos de, diferente do ocorrido em 2023, quando estava em visita à Colômbia durante a data, realizar um evento no Rio de Janeiro no dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latina Americana e Caribenha.

“Esse ano a gente vai ter um evento no próprio dia 25, no Rio de Janeiro, mas a nível internacional, também falando e trazendo muito das pautas, com as candidatas, mas também com as parlamentares, como Benedita, Tainá e Taliria, para falar da importância de cada vez mais termos mulheres negras em espaços de poder e decisão, porque, quando temos mais de nós, é um ambiente mais diverso. É um mês de resistência, de ressignificação”, contou.

Trump e violência política

Ao falar da tentativa de assassinato que acometeu o ex-presidente americano Donald Trump no último sábado (13/7), Anielle lembrou do episódio de violência política que vitimou a irmã, Marielle, em 2018, e destacou que não há espaço na democracia para nenhum tipo de violência.

“Infelizmente, a minha irmã foi o exemplo concreto e crítico de um atentado à democracia, um atentado a uma parlamentar eleita democraticamente, e infelizmente ela não sobreviveu para continuar essa luta conosco. Mas eu repudio todo e qualquer tipo de violência dentro do âmbito político, desde algo como fizeram com a minha irmã, um atentado como fizeram agora com Donald Trump, os xingamentos que eu mesma passo, as ameaças que vivi e que vivo ainda, ou qualquer outra pessoa que passe por isso. A violência política não pode caber na democracia, ela atrasa a gente enquanto sociedade. O nosso debate tem que ser feito com ideias, ele tem que aceitar o que a pessoa pensa de diferente com respeito, mas nunca com violência”, defendeu Anielle.

A ministra fez questão de reforçar o seu repúdio à violência política mais de uma vez, e ressaltou que não deseja isso a ninguém, independentemente de convicção ideológica ou político-partidária. Junto a isso, saudou as mulheres que, vítimas de violência política, sobreviveram para continuar lutando.

“Eu digo, desde que mataram a minha irmã, que o meu sonho era conseguir dialogar com quem pensava diferente de mim. Eu consegui, com algumas pessoas. Com outras, não. Com outras, sempre foi à base de xingamento, de ameaças, e eu lamento muito. Eu jamais vou defender ou ser a favor de nenhum tipo de violência que nos impeça de expressar o que a gente tem defendido, o que a gente pensa e acredita. Eu repudio demais todo e qualquer tipo de violência e não desejo isso a ninguém, seja quem for, vote da maneira que vote. A violência não traz nada de bom, assim como a minha irmã, assim como eu, assim como várias mulheres. Algumas, sim, vivas, como por exemplo, Francia Márquez. Quantos e quantos atentados ela não tem passado na Colômbia, infelizmente? Que bom que Francia está viva, mas infelizmente a minha irmã não está aqui para seguir lutando conosco”, lamentou.

*Estagiário sob supervisão de Talita de Souza

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postado em 16/07/2024 21:45
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