A Polícia Federal afirmou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que uma organização criminosa atuou para permitir o funcionamento de uma estrutura paralela e ilegal de espionagem na Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Para os investigadores, uma prova obtida durante as investigações estabelece a ligação com outros inquéritos. Trata-se da minuta do golpe, um documento apócrifo, ou seja, sem valor legal, encontrado no celular de diversos investigados. Uma cópia impressa também foi apreendida na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.
Os documentos com teor golpista encontrados em diferentes endereços e equipamentos de informática de investigados não são idênticos, mas têm objetivos semelhantes: anular o resultado das eleições de 2022, suspender o poder da Justiça Eleitoral e dar subsídios para prender ministros do STF. O elo que faltava para interligar os inquéritos foi encontrado durante a investigação do esquema de espionagem na Abin. A PF descobriu que, pelo menos, dois policiais que atuaram na Abin e no esquema ilegal de monitoramento sabiam da existência da minuta e de eventual "oficialização" dos efeitos do documento por parte do então presidente Jair Bolsonaro.
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A minuta foi citada em diálogos mantidos entre o militar Giancarlo Gomes Rodrigues e seu superior, o policial federal Marcelo Araújo Bormevet. Em um dos trechos de mensagens interceptadas pela PF, Bormevet pergunta a Giancarlo sobre o documento. "O nosso PR (presidente da República) imbrochável já assinou a p**** do decreto?". O militar responde: "Assinou nada. Tá f*** essa espera, se é que vai ter alguma coisa".
O relatório policial destaca que "as referências relacionadas ao rompimento democrático declaradas pelos policiais são circunstâncias relevantes que indicam, no mínimo, potencial conhecimento do planejamento das ações que culminaram na construção da minuta do decreto de intervenção (na Justiça Eleitoral)".
Para os investigadores, todos os elementos giram em torno de uma trama golpista que começou a ser articulada no segundo semestre de 2022. Temendo perder as eleições, Jair Bolsonaro e aliados teriam usado a estrutura pública para vigiar críticos e tentar criar falsas narrativas para minar a credibilidade de ministros do Supremo, servidores públicos, deputados, senadores, integrantes do Poder Executivo e jornalistas.
"Destruir reputações"
As diligências apontam que a Abin paralela seria um eixo montado para destruir reputações. A venda de joias sauditas recebidas por Bolsonaro quando era presidente seriam a maneira de financiar a saída dele do país. A falsificação nos cartões de vacina seriam um meio para facilitar a entrada do então presidente e sua família nos Estados Unidos.
No caso da investigação sobre as joias, "os elementos de prova colhidos demonstraram que (o ajudante de ordens) Mauro Cesar Lourena Cid recebeu, em nome e em benefício de Jair Messias Bolsonaro, pelo menos, US$ 25 mil; que teriam sido repassados em espécie para o ex-presidente, visando, de forma deliberada, não passar pelos mecanismos de controle e pelo sistema financeiro formal. Os dados ainda indicam, a utilização de uma conta bancária, provavelmente vinculada a Lourena Cid, para movimentação de valores, que podem ser oriundos da venda de outros itens ainda não identificados recebidos pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e desviados do acervo público brasileiro, pelos investigados", destaca um trecho do relatório policial.
Os investigadores suspeitam de que os recursos podem ter sido usados para bancar a estadia de Bolsonaro e de familiares no exterior, e apontam a movimentação de até R$ 6,8 milhões. No fim de 2022, após perder a eleição e antes da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro viajou para Miami no avião presidencial. Ele permaneceu por três meses nos Estados Unidos, retornando ao Brasil em março de 2023, quando já era acusado de ter incitado os atentados de 8 de janeiro, quando extremistas invadiram as sedes dos Três Poderes.
Tedney Moreira, professor de direito criminal do Ibmec Brasília, explica que uma mesma prova pode ser utilizada em mais de uma investigação. "Na fase investigativa, é possível que um mesmo indício seja utilizado para outras investigações, desde que os crimes em apuração sejam conexos", diz.
Atualmente, todos os inquéritos estão sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo. Tedney destaca que a conexão entre os crimes justificam a prevenção para o mesmo magistrado.
"O Código de Processo Penal (CPP) permite a conexão de ações penais para a definição do juiz competente para julgamento em três hipóteses: quando, ocorrendo duas ou mais infrações, essas tiverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas em concurso, ainda que o tempo e o lugar sejam diferentes; quando, no mesmo caso, houver algumas infrações cometidas para facilitar ou ocultar as outras, garantindo a sua impunidade ou vantagem; e, por fim, quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração — sendo essa última hipótese a que mais se ajusta ao caso do ex-presidente Bolsonaro", completa.
Em nota, a defesa de Jair Bolsonaro afirmou que, em relação ao inquérito das joias, não houve irregularidades e que todos os itens foram respondidos pelo ex-presidente. Além disso, os advogados sustentam que o ministro Alexandre de Moraes e o STF não têm competência legal para atuar em nenhum dos inquéritos.
"A presente investigação — assim como as demais que colocam hodiernamente o ex-presidente como protagonista —, ressente-se, ainda, da evidente incompetência do Supremo e da inexistência de qualquer prevenção do ministro Alexandre de Moraes enquanto relator, aspecto sobre o qual a Procuradoria-Geral da República, já em agosto de 2023, expressamente, declinou da competência para a tramitação da apuração, indicando o Juízo de 1ª instância em Guarulhos. Como sói (costuma) acontecer nos feitos que envolvem o ex-presidente, a apuração permaneceu tramitando na Suprema Corte, ignorando-se a manifestação da PGR", destaca o texto.
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