Ditadura militar

AGU limita anistia a povo indígena após sessão histórica

Consultoria jurídica do Ministério dos Direitos Humanos foi contra comissão de anistia em aprovar recomendações em benefício ao povo Krenak, perseguido na ditadura; ministro Silvio Almeida atendeu a veto recomendado

Declaração de anistia ao povo Krenak, de Minas Gerais -  (crédito: Lohana Chaves/Funai)
Declaração de anistia ao povo Krenak, de Minas Gerais - (crédito: Lohana Chaves/Funai)

Numa sessão histórica e inédita, em 2 de abril deste ano, a Comissão de Anistia do governo aprovou a declaração de anistia ao povo Krenak, de Minas Gerais, na primeira ação de reparação coletiva a um grupo indígena perseguido pela ditadura. Com direito a um pedido de desculpas públicas do Estado pela perseguição e violações ocorridas naquele período de exceção. A condução da reunião e o gesto de desculpas a ancestrais desse grupo foi protagonizado pela presidente da comissão, Eneá Stutz, no principal auditório do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, ao qual o colegiado é vinculado.

Os Krenak foram alvos da repressão nos anos de chumbo de uma Guarda Rural Indígena, criada pelos militares a partir de próprios integrantes da etnia, foram confinados numa prisão conhecida como reformatório Krenak e ainda submetidos a deslocamentos forçados e arbitrários, obrigados a deixar suas terras originárias.

Junto com a declaração de anistia a esse povo, a comissão elencou uma série de recomendações a serem cumpridas pelo poder público, como governos federal, estadual e municipal e empresas privadas. Foi uma série de cerca de 20 recomendações à demarcação de terra indígena Sete Salões, instrução para a Funai à Advocacia-Geral da União (AGU) de desistirem de efeito suspensivo na Justiça que trava o reconhecimento das terras como desse povo, exige de mineradoras despoluição de rio, prevê criação de reservatório de peixes, a garantia atendimento pleno à saúde a esse povo indígena e instalação de torre de internet na área desse grupo. O pedido de anistia ao povo Krenak foi uma ação do Ministério Público de Minas.

Em 20 de maio, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, publicou a portaria no Diário Oficial, confirmando e acompanhando a decisão integral da Comissão de Anistia, concedendo a anistia política coletiva aos Krenak, incluídas todas as reivindicações.

Mas a Consultoria Jurídica do ministério, pelo procurador da AGU Gustavo Pedrollo, se opôs a decisão da comissão e também a publicação da portaria assinada pelo ministro. O consultor da pasta argumentou em parecer, obtido pelo Correio, que somente cabe à Comissão de Anistia reconhecer e declarar a condição de anistia coletiva a um grupo, mas jamais fazer recomendações a outros órgãos públicos. Entende que não há essa previsão legal.

Pedrollo concluiu, então, que todas as recomendações da comissão previstas na portaria assinada por Silvio Almeida fossem anuladas. E que todos os processos de requerimento coletivo de anistia — há previsão de outros acontecerem — sejam submetidos para sua análise jurídica antes da publicação pelo ministro.

"A Comissão pode reconhecer e declarar a anistia coletiva, mas as recomendações, especialmente com a entrada em minúcias acerca do que outros órgãos públicos devem fazer no seu âmbito de competências administrativas, carece de fundamento legal específico, e não tem, portanto, base jurídica. Entende-se, destarte, que as portarias emitidas em face de requerimentos de anistia coletiva não podem de forma alguma fazer recomendações, especialmente procurando detalhar como órgãos públicos devem atuar administrativamente. Não há fundamento legal para tanto", se manifestou Gustavo Pedrollo no seu parecer.

O ministro atendeu em parte a posição da consultoria e fez uma retificação em sua própria portaria, cinco dias depois, em 17 de junho. Silvio Almeida desobrigou a AGU de atuar na revogação de um efeito suspensivo obtido pela Fundação Nacional do Índio (Funai), no governo de Jair Bolsonaro, contra a demarcação da área de Sete Salões.

MPF defende decisão da Comissão de Anistia

Assim se manifestou o advogado da União do ministério: "Carece de sentido e de fundamento legal pretender recomendar diretamente à AGU como atuar em um processo judicial, sem que antes sejam tomadas deliberações relativas às políticas públicas pertinentes pelos gestores dos órgãos finalísticos (a Funai, no caso)".

O Ministério Público Federal em Minas Gerais se manifestou em oposição à postura da AGU contra a previsão de recomendações em casos de reparação de anistia coletiva. E defendeu a portaria do ministério mantendo a grande parte das recomendações.

"Não se poderia esperar de um Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania nenhuma outra postura que não fosse buscar a reparação ao primeiro povo indígena anistiado coletivamente do país, ainda que apenas pela via das recomendações expedidas por seu grande titular", se manifesta o procurador Edmundo Antônio Netto Junior.

Em outro trecho, diz o procurador: "Tampouco se pode concordar em que a Comissão de Anistia não pudesse deliberar acerca das formas de reparação, pois a política reparatória das graves violações cometidas pela ditadura militar é função primordial daquele eminente colegiado".

O ministério informou que foi mantida a declaração de anistia coletiva aos Krenak e que não houve revogação ou anulação da anistia.

"Houve uma correção no sentido de retirar do ato de anistia coletiva as recomendações que ali constavam. Isso se fez necessário em função de não competir ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) fazer recomendações a outros órgãos, cabendo então à Comissão de Anistia fazê-las diretamente caso entenda de forma distinta. Importante destacar que a declaração de anistia, e suas consequências, devem ter fundamento jurídico, e todos os ajustes estão sendo feitos após análise da Consultoria Jurídica do ministério", informou o ministério.

A presidente da comissão, Eneá Stutz, informou que as medidas que tinham que ser tomadas no colegiado foram feitas. E que qualquer outra providência foge da alçada da comissão."Portanto, não me cabe manifestar", disse Stutz.

Confira a íntegra da resposta do MDHC ao Correio:

"Primeiro, é importante esclarecer que a Comissão de Anistia tem como função analisar os requerimentos a ela dirigidos, com base na Lei, e assessorar o Ministro em suas decisões, conforme versam os artigos 10 e 12 da Lei Nº 10.559/2002, citados abaixo:

_Artigo 10 - Caberá ao Ministro de Estado dos Direitos Humanos decidir a respeito dos requerimentos baseados nesta Lei_

_Artigo 12 - Fica criada, no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos, a Comissão de Anistia, com a finalidade de examinar os requerimentos referidos no art. 10 desta Lei e de assessorar o Ministro de Estado em suas decisões._

No caso em questão, foi mantida a declaração de anistia política coletiva ao povo Krenak, não houve nenhuma revogação ou anulação da anistia aprovada em sessão realizada em 02 de abril, cuja decisão final compete ao Ministro.

Houve uma correção no sentido de retirar do ato de anistia coletiva as recomendações que ali constavam. Isso se fez necessário em função de não competir ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) fazer recomendações a outros órgãos, cabendo então à Comissão de Anistia fazê-las diretamente caso entenda de forma distinta.

Importante destacar que a declaração de anistia, e suas consequências, devem ter fundamento jurídico, e todos os ajustes estão sendo feitos após análise da Consultoria Jurídica do MDHC."

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postado em 11/07/2024 11:31 / atualizado em 11/07/2024 11:31
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