DITADURA MILITAR

Após pressão, Lula recria comissão e dá esperança a familiares

O presidente retoma os trabalhos da comissão quando se completa 50 anos dos desaparecimentos e perseguição aos militantes que morreram assassinados em poder do Estado e em confrontos com os militares

Familiares de mortos e desaparecidos pela ditadura protestam em frente ao Planalto pela volta de comissão, extinta pelo governo Bolsonaro -  (crédito: Arquivo pessoal)
Familiares de mortos e desaparecidos pela ditadura protestam em frente ao Planalto pela volta de comissão, extinta pelo governo Bolsonaro - (crédito: Arquivo pessoal)

Promessa de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, somente agora o presidente reinstalou a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, órgão responsável pela busca de informações sobre as circunstâncias da eliminação de opositores da ditadura, pela localização de seus restos mortais e também pela emissão de certidões que atestem que estes militantes morreram sob a responsabilidade do Estado. 

O presidente retoma os trabalhos da comissão quando se completa 50 anos dos desaparecimentos e perseguição aos militantes que morreram assassinados em poder do Estado e em confrontos com os militares. 

Extinta no apagar das luzes do governo de Jair Bolsonaro, que não reconhece as atrocidades do regime militar e cultua o torturador capitão Carlos Alberto Brilhante Ustra, a comissão deixou de existir nesse período e a gestão petista ainda enfrentou uma antiga resistência de setores militares quanto à sua volta, ainda que a atual geração das Forças Armadas não tenha qualquer envolvimento com o ocorrido naquele período. 

Para tirar do papel o retorno desse colegiado, precisou que Lula fosse pressionado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), cujos integrantes estiveram no Brasil no mês passado e se encontraram com o chefe do Executivo no Palácio do Planalto. E transmitiram ao petista um duro recado da necessidade da volta da Comissão de Mortos e Desaparecidos, sob risco de o país ser denunciado internacionalmente. 

Para compor a comissão, Lula trocou os antigos indicados por Bolsonaro, como o deputado Filipe de Barros (PL-PR), da linha de frente da defesa do conservadorismo e da direita, e indicou nomes comprometidos com a busca pela justiça de transição, memória e verdade. Para o lugar do parlamentar bolsonarista, na vaga da Câmara na comissão, o presidente indicou a deputada Natália Bonavides (PT-RN), de outro perfil. Ela é autora de um projeto de lei que veda que nomes de militares e torturadores que atuaram na ditadura batizem ruas, praças, viadutos e avenidas, os locais públicos. 

Para presidir a comissão, está de volta a procuradora Eugênia Gonzaga, que já a comandou, e tem um trabalho reconhecido pelos familiares dos atingidos pelas violações do regime de exceção instaurado no país por 21 anos. A escolhida diz que a comissão foi prematuramente encerrada em dezembro de 2022, e que essa decisão "gerou grande inquietação e angústia, especialmente por parte de familiares de mortos e desaparecidos políticos, pois relevantes trabalhos restaram inviabilizados, tais como as retificações de assentos de óbito e a busca e identificação de corpos de desaparecidos políticos". 

A comissão volta num momento de ainda delicada relação com os militares. Lula retardou a reinstalação desse colegiado com receio de desagradar a caserna, com quem vem, desde sua posse, construindo pontes com as três forças (Marinha, Exército e Aeronáutica), conhecidos espaços de acolhimento do bolsonarismo. 

Primeira tarefa

Para a deputada Natália Bonavides, não deveria interessar o que as Forças Armadas vão achar de qualquer tema que não seja a soberania nacional, e defendeu a volta da comissão, que integrará. 

"Além disso, é dever do Estado brasileiro atuar para garantir que as famílias que foram atingidas pelo arbítrio praticado por ele tenham direito ao luto. Isso é o mínimo que se espera. E não dá para normalizarmos que as Forças Armadas possam se incomodar se o Estado cumprir essa obrigação", disse Bonavides ao Correio. 

Para a parlamentar, a primeira tarefa da comissão será a de debruçar sobre um relatório que aponta sobre o que ainda precisa ser feito pela comissão, que não funcionou no governo de Bolsonaro. "Certamente, precisaremos retomar processos de exumação e coordenar a adequação do mapeamento de alguns cemitérios, como os de Perus e de Vila Formosa. Também deve ser uma missão da comissão auxiliar o governo brasileiro a constituir espaços de preservação da memória", disse a deputada. 

Perus e Vila Formosa são locais onde havia cemitérios clandestinos e para onde eram levados corpos daqueles que enfrentaram o regime. Ossadas encontradas nessas covas aguardam exames de identificação. 

Familiares celebram volta da comissão

Aguerrida nas ações que buscam explicações dos militares sobre o destino de seus familiares que atuaram no combate à ditadura, a militante dos direitos humanos Diva Santana celebra a volta da Comissão de Mortos e Desaparecidos, a qual integrou como representantes dessas famílias. Na Guerrilha do Araguaia, movimento de resistência da luta armada e exterminado pelos militares, elaperdeu a irmã, Dinaelza Santana, e o cunhado, Wandick Coqueiro. Desde a década de 1980, Diva já participou de busca das ossadas naquela região do norte do país e viu equipes abrirem covas onde poderiam estar não só seus parentes, mas também familiares de companheiras dessa luta.

"Conseguimos através de muita luta e mobilização, desde o início do governo, que o Lula cumprisse essa promessa de campanha. Não foram poucas as mobilizações, inclusive em corte internacional. Não precisava de decreto, como ficou claro. Bastou o presidente anular um ato do anterior, tornar sem efeito, para que a comissão seja reinstalada. A volta da comissão é parte da luta pela democracia, que andou ameaçada", disse Diva.

Dirigente do Grupo Torturna Nunca Mais, no Rio, Victoria Grabois atuou contra a ditadura, viveu na clandestinidade e procura até hoje notícia sobre três familiares eliminados pelos militares no Araguaia. Estão desaparecidos seu pai (Mauricio Grabois), o irmão (André Grabois) e o marido (Gilberto Olímpio). É também autora de uma ação, de duas décadas, que determinou o Estado a adotar providências para localizar as vítimas dos militares. Grabois reforçou que foi preciso uma pressão para que Lula tomasse a decisão de recriar a comissão. "Essa reinstalação só se deu porque houve uma pressão. Foi o que fez a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), após peticionarmos ações pelo cumprimento de sentença nesse sentido. O Lula teve que mostrar trabalho para a Corte", afirmou Grabois.

Outras pautas

O grupo Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça, que reúne dezenas de entidades ligadas aos direitos humanos, também se manifestou de forma positiva sobre a comissão. A entidade foi parte da pressão sobre o governo.

"Desde o início do mandato de Lula, dialogamos e pressionamos o governo para que o órgão fosse recriado, ao lado de outras organizações da sociedade civil e sob o protagonismo e a liderança dos familiares, que conduzem essa luta há décadas. Finalmente, o compromisso público assumido pelo governo desde antes da posse se concretizou", informou, em nota.

Uma reivindicação do Coalizão é de que a nova comissão se volte para reconhecimento da perseguição aos povos indígenas e camponeses, também alvos das ações dos militares. E que ainda incluam desaparecimentos dos tempos atuais, que atingem os mais vulneráveis.

"Continuaremos lutando para que a comissão possa ter seu escopo de atuação ampliado. Entendemos que é fundamental quese abra para o reconhecimento de sujeitos e grupos historicamente excluídos da justiça de transição brasileira, notadamente os povos indígenas, os camponeses, a população negra e os moradores de favelas e periferias", entende o grupo. 

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postado em 08/07/2024 03:55
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