ENTREVISTA

Johann Dantas: 'Cidade inteligente não é cidade tecnológica'

O diretor-presidente da Anciti avalia que a inteligência artificial será fundamental para enfrentar os complexos problemas vividos pelos municípios, que precisam estar cada vez mais preparados para a mudança climática em andamento

Os impactos que as mudanças no clima do planeta causam na vida das pessoas e das comunidades em que vivem não podem mais ser ignorados. A crise que o Rio Grande do Sul enfrenta por causa das enchentes históricas de maio vai demandar anos de trabalho para recuperar os prejuízos decorrentes da maior catástrofe ambiental do estado. E, cada vez mais, as cidades precisarão estar preparadas para atender a essas demandas. Neste ano de eleições municipais, a agenda da emergência climática entrou definitivamente no rol de interesse do cidadão, que vê sua cidade despreparada para enfrentar os desafios impostos pelo aquecimento global.

Para a Associação Nacional de Cidades Inteligentes (Anciti), esse é mais um tema que passa, obrigatoriamente, pela tecnologia. Mas não como fim em si. Para a entidade, cidade inteligente não é sinônimo de cidade tecnológica, é "cidade boa para se viver", segundo o diretor-presidente Johann Dantas. A tecnologia entra como vetor de desenvolvimento econômico e social.

O avanço acelerado da inteligência artificial (IA) amplia ainda mais as potencialidades de uso das novas tecnologias, pela altíssima capacidade de compilação e processamento de dados. Para a Anciti, é uma ferramenta cada vez mais necessária para enfrentar os complexos problemas vividos pelas cidades. Em Aracaju, por exemplo, a IA foi usada na busca de soluções para a defasagem entre idade e série dos alunos da rede pública depois da pandemia de covid-19. Com a tecnologia, foi possível identificar que as meninas recuperam o ritmo de ensino mais rapidamente do que os meninos. Também apontou que trabalhos em dupla surtem mais efeito do que atividades escolares individuais. A partir daí, será possível reverter esse deficit até 2026, em vez de 2030, como mostravam os modelos disponíveis.

Na área da saúde, a capital de Pernambuco desenvolveu um sistema de gestão de filas para aplicação das vacinas contra covid-19, o Conecta Recife, que foi adotado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). "Isso é show, isso é ser inteligente", comemora Dantas, ao falar das vantagens de se compartilhar conhecimento.

É para disseminar ideias inovadoras como essas que a Anciti trabalha. A organização não governamental reuniu, em São Paulo, representantes de mais de 40 cidades grandes e médias para trocar experiências e estimular o intercâmbio de informações. A capital paulista, por exemplo, apresentou um sistema inovador de monitoramento dos buracos nas ruas da maior metrópole da América do Sul. Lá, a prefeitura instalou sensores e câmeras na parte de baixo de carros de aplicativo que monitoram, em tempo real, o estado do pavimento e gravam imagens de cada trajeto. Os dados vão para uma central que identifica as ruas, os buracos, as consequências em relação à redução de velocidade e os riscos de acidentes. A partir desses dados, a prefeitura monta a estratégia dos programas de recuperação e pavimentação de ruas e avenidas.

Para enfrentar a emergência climática, muitas cidades já adotam sistemas digitais, de monitoramento de áreas de risco de deslizamento de encostas, de alagamentos ou de desmoronamentos, que são compartilhados entre outros prefeitos para orientar melhor o destino dos recursos públicos e facilitar o acompanhamento das políticas de prevenção.

Nada disso, porém, dará certo se os prefeitos não souberem como usar as ferramentas digitais de forma eficiente ou se os servidores não se qualificarem para usar as novas tecnologias. "Há muitos prefeitos que têm o fetiche tecnológico, que alardeiam suas cidades como 'conectadas', mas não têm organização de dados, não usam os dados para sua missão. Dizem que têm drones, mas nem sabem o que é possível fazer com eles", provoca Johann Dantas, que conversou com a reportagem do Correio, em entrevista que você confere a seguir:

O conceito de cidade inteligente faz parte de um debate global, de adaptação das estruturas urbanas aos novos tempos de emergência climática e à revolução tecnológica, à inteligência artificial. No Brasil, a tragédia do Rio Grande do Sul expôs de forma dramática o despreparo, as fragilidades das cidades brasileiras para enfrentar eventos naturais potencialmente devastadores. Em que ponto está esse debate no Brasil?

Mais do que repensar, torna-se urgente enfrentar esses temas. Não estamos falando só da tragédia no Rio Grande do Sul, estamos falando de Rio de Janeiro, que também teve deslizamentos. São Paulo também é atingida por chuvas excepcionais. O próprio conceito de cidades inteligentes varia, para mim é uma coisa, mas no Piauí pode ser diferente. Cidade inteligente é uma cidade conectada, com uma série de serviços públicos disponíveis? Pode ser um modelo. Ou é uma cidade que pensa à frente, no futuro? Como escutar os cenários da ciência, que há muito tempo vem falando que isso vai acontecer e nenhuma providência foi tomada? O que aconteceu no Sul foi um chacoalhar. E não basta ficar só falando, é preciso agir, botar ideias em prática.

Como a Anciti analisa, quase dois meses depois, os impactos nas cidades gaúchas? Que lições tiramos disso?

A cidade inteligente é a cidade boa para morar. Nós temos que pensar na resiliência das cidades. A cidade inteligente passa por um nível de resiliência que as mudanças climáticas estão impondo para todos nós. Ver como a tecnologia vai fazer uma cidade ser inteligente para ser sustentável, para ser resiliente. A gente tinha um Rio Grande do Sul antigo, uma Porto Alegre antiga, que teve uma transição para o novo que impactou não só a capacidade de resiliência, mas a capacidade de antever desastres. O uso da tecnologia tem que ser muito mais voltado à segurança, afinal, as cidades vão continuar alagando. Há uma discussão no Sul se é preciso mover essas áreas, mudá-las de lugar. As cidades gaúchas não devem ser reconstruídas. Devem ser repensadas. Há cidades que, provavelmente, vão sumir. O nível de inteligência das cidades não se mede por dispositivos eletrônicos, digitais. É pela capacidade de resiliência, de sustentabilidade, pronta resposta. Vamos passar por uma ressignificação de "inteligente". Inteligente não significa mais só a aplicação de tecnologia. Tecnologia por si só é fetiche.

No Sul, os alertas do desastre foram dados com antecedência pelos cientistas aos governantes. Mesmo assim, muita gente morreu e milhares de pessoas ficaram isoladas. Isso não parece ser inteligente...

Por esse olhar, não é inteligente. Mas você não faz investimentos em contenção do dia para a noite. Isso é fruto de anos de um planejamento que não foi feito e, se foi, não se executou. Ou de um planejamento para um mundo que não existe mais. No Sul, vimos que algumas cidades estavam mais bem preparadas, mas o estado, como um todo, não.

O Brasil tem mais de 5 mil municípios, cada um com sua realidade específica. Como trazer esse debate das cidades inteligentes para lugares e populações tão diferentes?

A Anciti tem três anos, com um propósito muito específico de compartilhar informações, experiências, soluções. A gente tinha acabado de passar pela crise da pandemia de covid-19. Sistemas desenvolvidos em Recife foram utilizados em Belo Horizonte, em outras capitais. Ali nasceu a primeira forma de compartilhamento entre as cidades. Também criamos uma rede de relacionamento entre nossos associados, que se colocam à disposição uns dos outros. Tem muita coisa acontecendo aqui. Compartilhamos até atas de registros de preços, termos de cooperação. Agora vem a inteligência artificial. Finalmente, iniciamos neste ano a capacitação de pessoas. Estamos fechando parcerias no setor de educação para não só qualificar como estabelecer um processo de comunicação mais disseminado. O trabalho de comunicação é o que permite chegar na ponta.

Que exemplos podem ser dados?

Temos prefeitos que fazem compras públicas compartilhadas com outros entes. Isso nos interessa. A gente não sabia que São Paulo tinha um sistema de zeladoria que funciona. É preciso fazer as pontes para que essas experiências cheguem a outros lugares. Nós estamos falando de compartilhamento.

O que caracteriza uma cidade inteligente?

Do ponto de vista do cidadão, a primeira coisa que se pensa é uma cidade high tech, conectada, wi-fi gratuito. Mas, na nossa concepção, é aquela que traz melhorias para o cidadão em todos os eixos, na saúde, na educação, na zeladoria, na governança. Cidade inteligente não é cidade tecnológica, temos que desmistificar isso. A tecnologia deve ser usada como meio. Cidade inteligente usa tecnologia para oferecer um serviço de saúde melhor e mais barato. Saúde é um serviço caríssimo, temos que diminuir esse custo para levar mais saúde à população. Temos que levar equidade na educação. Escolas particulares têm componentes tecnológicos e grades curriculares de primeiro mundo, mas não temos isso nas escolas públicas. As cidades têm que levar essa equidade digital para se chegar à igualdade social. Essa é a cidade inteligente.

Isso inclui a questão das mudanças climáticas?

A cidade inteligente está preocupada com as mudanças climáticas que acontecem do Polo Norte ao Polo Sul e que impactam aqui, no Brasil. É a cidade que se vale da tecnologia para fazer predição climática, acompanhamento, previsão de resgates de vítimas das catástrofes. Que se vale da qualificação dos seus gestores. Não basta ter uma cidade inteligente, é preciso ter um corpo para gerir. Isso é novo no mundo todo, não é mais um mote, é uma realidade. Mudanças climáticas impactam na saúde, na educação, em tudo. Tem que ser levada muito a sério como levamos a educação, a saúde.

No Brasil, como está a caminhada das cidades na direção desse futuro mais sustentável, mais inteligente? Ainda estamos muito analógicos, burocráticos?

A gente tem um movimento importante, que independe de governos, que é o tecnológico. Todos nós consumimos tecnologia "na veia". Se cair a internet aqui (no encontro regional da Anciti) vamos ter um caos! Independentemente da nossa vontade, estamos sendo inundados pelas novas tecnologias. A inteligência artificial (IA) já chegou, que traz a exponencialidade. Isso não vale só para o mercado, é para todos nós. Meu filho de 12 anos já começou a usar IA.

Os gestores municipais têm essa consciência da magnitude da revolução tecnológica?

Muitas cidades não tratam ainda a tecnologia como vetor de desenvolvimento como trata da saúde, da educação, da segurança. A tecnologia precisa ser incluída nessa operação. Ela vai ajudar em tudo: no planejamento, na execução. Um hospital público, hoje, tem uso de tecnologia maciça lá dentro, na marcação de consultas, nos prontuários. Na pandemia, o primeiro aplicativo que a Anciti compartilhou foi o de gestão das filas. Cada cidade queria fazer sua própria marcação para aplicar vacina, cada cidade criou a sua estrutura própria. Recife criou um aplicativo, o Conecta Recife, disponibilizou o código, todo mundo adotou e chegou ao Conecta SUS. Isso é show! Isso é ser inteligente.

Como é a gestão tecnológica dos buracos de rua com inteligência artificial apresentada pela Prefeitura de São Paulo?

Buraco tem em todo lugar. Está cheio de tecnologia em que se colocam câmeras que fazem o reconhecimento dos buracos, que gera ordens de serviço. Nós vamos reinventar isso de novo? Vamos é melhorar. O uso de inteligência artificial dá um poder de processamento de informações que nenhum de nós aqui é capaz de fazer. A IA está chegando agora aos dispositivos móveis, aos celulares. Isso significa que todos nós passaremos a ter uma capacidade gigantesca de criar coisas que nem sabemos ainda como vão ser, mas que vão impactar nossas vidas. Será um choque muito grande que vai impactar, inclusive, no meio ambiente. Quem não escutava os alertas, os indicadores, que abra os olhos. Nós falamos em tragédias climáticas há 10, 15 anos. E, agora, é surpresa? O poder público não tomou providências, os dados estão aí, são claros.

Apesar de todas essas informações, muita gente teve que ser resgatada de helicóptero no RS. O que não foi feito?

Utilizaram a tecnologia como meio, instalaram pluviômetros, dispositivos para analisar quantidade de chuvas, mas não fizeram as políticas públicas que deveriam ter sido feitas. E isso faz parte do conceito de cidade inteligente. A Defesa Civil tem aplicativos que orientam a população.

Mas a população ainda não sabe o que fazer diante desses alertas. Na hora da catástrofe, o cidadão se pergunta: o que eu faço agora?

A gente tem que começar a pensar em uma Cipa (comissão interna de prevenção de acidentes) para as cidades (como existe nas empresas). Como as pessoas vão reagir a tragédias, inundações, situações atípicas. Nós não temos protocolos, não temos rotas de fuga. A gente vai para um ponto de encontro? Não sabemos. Temos que fazer planejamento de catástrofes, da capacidade de resiliência das cidades, desde as pequenina, de 10 mil habitantes, até as grandes metrópoles. Veja Lagarto, em Sergipe. Lá tem uma barragem. E se essa barragem inundar, se romper? Ninguém sabe o que fazer. As catástrofes não vão parar, infelizmente, só porque a gente começou a mudar a gestão das cidades ou nosso estilo de vida. Mas vão piorar se a gente não fizer nada.

Minas Gerais viveu duas tragédias, que foram os colapsos de duas barragens, em Mariana e Brumadinho. Precisou morrer gente para que o poder público começasse a adotar medidas para desativar essas estruturas.

Veja o caso de Angra dos Reis, que tem a usina nuclear. Há vários exercícios simulados com as pessoas da cidade, para o caso de um acidente radioativo.

Há um plano de contingência lá, rotas de fuga, pontos de encontro. É um exemplo a ser seguido?

Porto Alegre tem as barragens para conter enchentes desde os anos 1940. Lá tem bombas, muros, tem tudo. Mas o que foi feito com todos esses equipamentos? Todas as cidades costeiras, por exemplo, têm que refletir sobre isso, há estudos que mostram o aumento do nível do mar.

(Com Gabriel Ronan, do Estado de Minas)

 

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