O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa hoje 546 dias de governo, 34 dias a menos do que o período em que esteve preso em Curitiba. São, portanto, 78 semanas, quase 18 meses e pouco menos do que um ano e meio de poder. Ao contrário de seus governos anteriores, divide o protagonismo político da nação com um Congresso conservador, que muitas vezes lhe dá uma invertida; um ex-presidente capaz de lhe fazer oposição de massas, o que antes era uma quase exclusividade do petismo; e governadores adversários — em São Paulo, Tarcísio de Freitas (PR); Minas Gerais, Romeu Zema (Novo); Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil); e Paraná, Ratinho Jr. (PSD).
A menos de 100 dias das eleições municipais, que se caracterizam por fortes disputas locais, o que se vê é uma tendência de polarização nas grandes cidades, protagonizada por Jair Bolsonaro, que está inelegível e precisa manter seu poder de influência elegendo o maior número possível de prefeitos aliados. Ao contrário, Lula pisa em ovos para não confrontar interesses locais de aliados poderosos, o que significa abrir mão de candidaturas petistas em muitas cidades, algumas de muita projeção nacional, como São Paulo — onde apoia Guilherme Boulos (PSol) — e Rio de Janeiro — vai de Eduardo Paes (PSD), o atual prefeito, que busca a reeleição. Se no âmbito nacional a polarização o beneficia, nas eleições municipais o atrapalha.
Será inevitável um balanço geral do ambiente político após as eleições e um ajuste de rota do governo, talvez até uma mexida forte na equipe ministerial — o que Lula tenta evitar —, mesmo em casos como o do ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil), indiciado pela Polícia Federal (PF) por suspeita de desvio de verbas de emendas do Orçamento da União.
Quando Lula decidir se disputará ou não a reeleição, lá pelos mil dias de governo, um dos fatores que pesarão na balança será o resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos. Não por acaso, já manifestou apoio incondicional à reeleição do presidente Joe Biden.
As eleições americanas são para Lula o que os manuais de planejamento estratégico chamam de externalidade, uma variável que não depende do seu governo. Se Biden for reeleito, será positiva (oportunidade) e o assessor especial para relações internacionais Celso Amorim poderá continuar flertando com o antiamericanismo. Porém, será negativa (ameaça) caso Donald Trump continue favorito e vença a eleição, porque seu apoio ao candidato de Bolsonaro será inequívoco e ostensivo. A águia americana tem asas longas e voa longe, mas seu rumo dependerá desse resultado.
O debate eleitoral entre Biden e Trump mostrou que as eleições americanas representam uma ameaça para o governo Lula. O atual presidente dos EUA, que isolou o líder russo Vladmir Putin em praticamente todo o Ocidente e tenta conter o avanço da China na economia global, era um homem acuado, hesitante, com falhas de raciocínio e frases desconexas ou incompletas.
Mesmo com todas as mentiras de Trump, seu desempenho deixou em pânico os democratas e acendeu uma luz amarela nas chancelarias de seus aliados. Além disso, as pesquisas dão resiliente vantagem para Trump. Lula precisa considerar esse cenário.
Fortuna e virtude
O The New York Times, em editorial, traduziu as preocupações do establishment norte-americano: "Para servir este país, o presidente Biden deveria deixar a corrida". Aos 81 anos, porém, ele não jogou a toalha e resistiu às pressões para abandonar a reeleição. Repete o roteiro dos que não querem se retirar antes de o sol se pôr: "Sei que não sou mais um jovem. Não caminho com tanta facilidade, não falo com tanta fluidez, não debato tão bem quanto antes, mas sei o que sei: como dizer a verdade", disse no dia seguinte, na Carolina do Norte. "Dou a vocês minha palavra. Não voltaria a me candidatar se não acreditasse, com todo o meu coração e minha alma, que posso fazer esse trabalho", completou.
Trump, com 78 anos, é apenas três anos mais jovem, mas aparenta muito vigor físico e rapidez de raciocínio, ainda que minta muito, tenha ideias estapafúrdias e agenda reacionária.
"Aquele que não sabe adaptar-se às realidades do mundo sucumbe infalivelmente aos perigos que não soube evitar. Aquele que não prevê a consequência dos seus atos não pode conservar os favores do século", diz o Grão Vizir para sua filha, a princesa Sherazade, em "O pescador e o gênio", do clássico da literatura árabe As mil e uma noites. A obra anônima reúne contos populares do Oriente Médio e do Sul da Ásia, entre os quais as histórias de Aladim e a lâmpada mágica e Ali Baba e os 40 ladrões.
Uma vez por mês, num domingo à noite, o ex-prefeito Gilberto Kassab, presidente do PSD, reúne um grupo de políticos de diversas tendências para jantar em sua casa, entre os quais velhas raposas do Congresso. Nessas reuniões, discute-se conjuntura e se fazem diagnósticos, que dias depois começam a circular em conversas com outros políticos e jornalistas.
No último encontro, chegou-se a quatro conclusões: o governo Lula lida com um Congresso rico e poderoso, que inverteu a relação de dependência com o Executivo; seu ministério é um arquipélago político, no qual cada ministro cuida do seu quintal; a narrativa do governo está descolada das redes sociais, que hoje formam a opinião política da sociedade; e o cenário intencional carrega incertezas econômicas e políticas com as quais Lula não está sabendo lidar.
Como aquele príncipe que já não pode contar com muita fortuna diante da mudança de conjuntura, Lula dependerá muito mais das próprias virtudes para manter-se no poder. A propósito, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, clássico dos clássicos da política e publicado em 1532, está entre os livros mais vendidos da semana. Trata, fundamentalmente, de como chegar, exercer e manter o poder. Vale a pena a edição comentada por Napoleão Bonaparte e Cristina da Suécia.
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