A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que descriminaliza o uso e o porte de maconha para fins pessoais impacta diretamente a segurança pública. De acordo com o entendimento da Corte, quem for flagrado com 40g de cannabis ou mantiver em casa seis plantas fêmeas, não comete crime. Entidades policiais admitem que a decisão do STF deve reduzir a condução de pessoas às delegacias apenas para assinem autos de prisão em flagrante.
O uso da maconha continua sendo caracterizado como ilícito administrativo e até que seja publicado o acórdão do STF — o que pode levar aproximadamente 70 dias —, continua valendo a redação atual da lei. Assim, os usuários flagrados com qualquer quantidade de maconha podem ser levados para dar explicações.
Nos distritos policiais (DPs), os usuários assinam o Termo Circunstanciado de Ocorrência, documento que registra o flagrante e faz com que a pessoa abordada se comprometa a comparecer em juízo. Com a nova definição pelo STF, o TCO não poderá mais ser usado para fins penais, ser anotado na ficha criminal ou resultar em qualquer punição legal. Ainda poderão ser aplicadas multas, determinação para comparecimento em cursos de conscientização, entre outras medidas administrativas.
Vale salientar que após publicado o resultado do julgamento do STF, se uma pessoa for abordada com mais do que as 40g previstas, poderá responder a processo por tráfico — cuja pena prevista é de cinco a 15 anos de prisão. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em maio do ano passado, 33% dos casos de condenação por tráfico de maconha estão abaixo das 40g. Em relação à quantidade de processos em que houve apreensão da droga, 37% seriam impactados.
Talles Murilo, Diretor de Comunicação do Sindicato dos Policiais Civis do Distrito Federal (Sinpol), afirma que a decisão do STF pouco altera o trabalho da corporação — que é investigativo e não de segurança ostensiva. "O foco da polícia sempre foi a investigação detalhada e criteriosa para distinguir usuários de traficantes, independentemente da quantidade de drogas envolvida", observa.
Ele destaca que a preocupação é em combater o trafico. "É fundamental ressaltar que é pelas investigações que os policiais conseguem estabelecer essa diferenciação. Em muitos casos já documentados, a polícia dispõe de evidências robustas que demonstram claramente o tráfico, mesmo quando a quantidade de droga apreendida é mínima", afirma.
Juliana Guimarães, especialista no mercado de cannabis, destaca que existe diferença entre descriminalização e legalização do uso. "O uso de cannabis não é mais entendido como um crime, mas sim ilícito administrativo. Ficou também decidido outros parâmetros que não haviam, como o porte de até 40g ou seis pés. Isso traz mais clareza na aplicação da lei, mas não é legalização. Não se poderá fazer uso de cannabis em ambientes públicos abertos", frisa.
Fernando Finger Santiago, consultor de negócios de cannabis e presidente do Clube Social de Cannabis do Distrito Federal, destaca que a mudança fará as pessoas perderem o medo de serem criminalizadas. "Deixou de ser crime (o uso de maconha). Mas o THC ainda é proibido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) — ou seja, continua ilícito. Os ministros deixam claro que não se pode incentivar o uso em local público, mas, dentro de casa, está a liberdade individual e o direito a privacidade", lembra.
Decisão incomoda governo e oposição
A decisão do STF causou incômodo no Congresso. Não apenas por causa da definição de um critério para a distinção entre usuários e traficantes, mas, sobretudo, porque os parlamentares consideram que o Poder Judiciário mais uma vez se intrometeu em um assunto que está sendo tratado pelo Legislativo.
A oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva começou a se mobilizar para acelerar a tramitação, na Câmara, da PEC das Drogas — já aprovada no Senado —, numa tentativa de confrontar a decisão do STF. "Sou 100% favorável à PEC das drogas. É um assunto que tem que ser necessariamente votado e decidido pelo Parlamento, não é pelo Supremo. Estamos articulando para que, na semana que vem, a matéria seja instalada. Nossa meta é votarmos o texto no plenário da casa até antes da eleição municipal. Espero que a gente tenha uma maioria considerável de votos", frisou o líder da oposição na Câmara, Filipe Barros (PL-PR).
A PEC das Drogas está parada na Casa porque o presidente Arthur Lira (PP-AL) determinou que uma comissão especial para a análise da matéria fosse instalada. A proposta é de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que a apresentou tão logo o tema começou a ser analisado pelo STF.
O deputado Ricardo Salles (PL-SP), que relatou o texto na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara, disse ser contra a descriminalização das drogas, "inclusive a maconha, não importa a quantidade". "Aliás, é no parlamento que esses temas devem ser decididos e não no Judiciário", salientou.
A deputada e presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PR), concordou em parte com os parlamentares da oposição. Alinhou-se ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva quando disse que o STF "não precisa se meter em tudo" e frisou que o Legislativo "tem sim de defender suas prerrogativas". Mas discordou contra aquilo que classifica como "espírito de revanchismo", que tem levado o Congresso a tomar decisões apenas para se opor o Supremo.
"A decisão do STF em diferenciar usuário, ou dependente de maconha, de quem é traficante não pode servir de pretexto para retrocessos no Congresso, como é o caso da PEC das Drogas aprovada no Senado, e que agora entrou na agenda da Câmara. É um tema que exige um debate sério envolvendo toda a sociedade, e que levou quase 10 anos para ser decidido pelo STF. O Legislativo tem, sim, de defender suas prerrogativas, mas não é com açodamento nem com espírito de revanche", salientou.
Para o cientista político Leonardo Barreto, a decisão do Supremo contraria o desenho da tripartição do poder — a desconcentração do poder entre Judiciário, Legislativo e Executivo. Ele observa que os ministros da Corte acabam "criando políticas públicas, chegando ao extremo de delimitar um percentual da quantidade de maconha que é considerada apenas para consumo e não para tráfico".
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