Uma gafe do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PDS), cometida oito anos atrás, mexeu com os brios de uma cidade inteira. Em 2016, ao fazer uma comparação que reflete um pouco o preconceito do carioca com os municípios da região metropolitana da capital fluminense, Paes disse que Atibaia (SP) — pequena cidade perto de São Paulo onde fica o sítio que a Lava-Jato tentou atribuir como propriedade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva — "é como se fosse Maricá, uma m... de lugar".
"Imagina se fosse aqui no Rio esse sítio dele (de Lula). Não é em Petrópolis, não é Itaipava, é como se fosse assim Maricá. É uma m... de lugar", disse Paes em uma mensagem cujo sigilo havia sido quebrado pela força-tarefa de Curitiba. No dia seguinte, correu para consertar o estrago. "Meu objetivo aqui é um só, é me desculpar. É uma brincadeira de muito mau gosto, especialmente com a população de Maricá", disse".
O episódio provocou reações dos moradores da cidade, que é um bastião do PT e espécie de campo de provas para muitas políticas públicas defendidas pelo partido. Na época, o prefeito era o deputado federal e atual vice-presidente do PT, Washington Quaquá, que vai tentar voltar ao cargo nas eleições de outubro. A pré-candidatura dele, amparada por uma ampla frente de alianças políticas, será lançada nesta semana, na cidade. O prefeito atual, Fabiano Horta, também do PT, está finalizando o segundo mandato.
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Da gafe de Paes para cá, Maricá — a 60km do Rio de Janeiro — não só ficou famosa, como conseguiu mostrar porque é uma das cidades que mais cresce no Brasil. Tem o maior PIB per capita do estado e o 7º do país (R$ 511,8 mil), e aplica boa parte dos recursos públicos em programas sociais defendidos pela esquerda. Segundo o último Censo do IBGE, a população aumentou 54% entre 2010 e 2022, totalizando 200 mil habitantes.
A principal fonte de atração está no mar: o município é um dos que mais arrecadam royalties da extração de petróleo. A última iniciativa da prefeitura, o Mumbuca Futuro, está prestes a completar um ano de implantação e serviu de modelo para o programa Pé de Meia, do governo federal.
Desde o segundo semestre do ano passado, o município oferece uma renda fixa para alunos do 6º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio. Como no programa federal, os alunos se habilitam a uma bolsa mensal — na cidade, correspondente a R$ 50 — e a um depósito de até R$ 1,2 mil por ano para quem terminar o ciclo. Em sete anos, o aluno pode poupar até R$ 12,2 mil. No Pé de Meia federal, o programa é elegível apenas para estudantes do Ensino Médio.
O reflexo do incentivo pode ser visto nas taxas de evasão escolar. Enquanto a média brasileira de evasão gira em torno de 6%, segundo dados de 2021 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em Maricá está perto de zero.
"Os índices de evasão em Maricá já eram muito baixos. Agora, dos alunos que participam do projeto Mumbuca Futuro, o índice tende a zero, uma evasão residual", disse Cláudio Gimenez, diretor-presidente do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação do município. Até agora, 1,2 mil alunos estão habilitados ao auxílio, e a meta da prefeitura é chegar a 3 mil até o fim do ano.
Aulas de economia
"É o aluno que investe o dinheiro seguindo como referência as orientações dadas pelo próprio projeto sobre educação financeira, a forma aplicar", explica Gimenez. A cada ano escolar, os estudantes têm aulas sobre conceitos de economia solidária.
No 6º ano, por exemplo, há a disciplina de consumo consciente. No 7º, agroecologia e soberania alimentar. No 8º, empreendedorismo. No Ensino Médio, os temas ficam mais "cascudos", de acordo com a coordenadora do projeto, Rayanne de Medeiros. "No fim do ciclo, (os alunos) têm que apresentar um plano econômico solidário. Eles visitam cooperativas, empreendimentos solidários, para que possam ver como é essa nova economia, que é possível investir, pensar o mundo de uma forma diferente e mais sustentável. Cada eixo desses é aplicado em sala de aula", complementa.
Outra diferença em relação ao programa federal está na bolsa mensal. Maricá paga com a moeda social Mumbuca (nome do rio que corta a região central da cidade), de circulação exclusiva no município, com paridade ao real: cada Mumbuca corresponde a R$ 1. A moeda social é totalmente digital, amplamente aceita e movimentada pelos munícipes por meio de um cartão eletrônico. A moeda local circula há 10 anos no município. A poupança de R$ 1,2 mil por ano, por sua vez, será depositada em reais em uma conta vinculada do estudante, que só poderá sacar o montante após concluir o ensino médio.
Campeã dos royalties
O programa se junta a outros, todos movidos pelo dinheiro do petróleo. No ano passado, Maricá foi o município que mais dinheiro recebeu em forma de royalties, cerca de R$ 2,4 bilhões (13% de todos os recursos distribuídos ano passado pela exploração de petróleo e gás). Na sequência, estão mais oito cidades fluminenses: Saquarema, Macaé, Niterói, Campos, Araruama, Arraial do Cabo, Cabo Frio e Rio de Janeiro.
Esse dinheiro ajuda Maricá a financiar a tarifa zero nos ônibus municipais, a renda básica de cidadania que beneficia 91 mil dos quase 200 mil habitantes da cidade, a ampliação da rede de creches (neste ano, serão construídas mais 10), os programas de assistência a idosos e pessoas com deficiência, além de auxílio a vítimas de eventos e desastres naturais.
"É claro que, quando você é pioneiro em uma política pública como somos aqui, e vê isso ganhar escala de dimensão nacional, é motivo de orgulho, a gente serve de referência para todo o país", comemora o secretário de Educação de Maricá, Márcio Jardim. Ao Correio, ele disse que recebeu especialistas do Ministério da Educação, no ano passado, para tratar do programa de benefício aos estudantes.
Provocado pela reportagem, o secretário comentou o paradoxo de trabalhar em uma administração que privilegia a economia sustentável e solidária, mas usa recursos do petróleo — apontado como um dos principais vilões do meio ambiente, responsável pelo agravamento do aquecimento global — para se financiar. O município é, inclusive, um dos poucos do país que criaram um fundo soberano formado pelos recursos dos royalties para viabilizar investimentos. Para Jardim, essa é a resposta para a "maldição dos royalties".
"Essa é uma riqueza que é distribuída. Aqui não tem maldição dos royalties, tem royalties benditos. A gente se apropria de recursos tradicionais, mas usa com criatividade. Até porque essa fonte de financiamento é finita, um dia vai acabar", lembra o secretário.
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