Enchentes

Rio Grande do Sul precisa pensar em reconstrução em meio à destruição

Gaúchos lidam ao mesmo tempo com o passado da perda recente devido às enchentes e a incerteza do futuro

Autoridades, atingidos pela força e peso das águas, estudiosos do clima e especialistas em desastres ambientais no estado que hoje concentra a atenção, solidariedade e comoção do resto do país lidam ao mesmo tempo com os efeitos da tragédia e o receio e a incerteza do futuro que virá. Diques que serão reforçados, pontes e estradas com tecnologias modernas e acabamento indestrutível, construção de moradias que imergiram, desconstrução de empreendimentos imobiliários que estorvam a orla, bairros que serão deslocados e a precaução com o meio ambiente no centro das ações. São algumas das iniciativas que começam a ser traçadas.

Parte da população gaúcha convive ao mesmo tempo com o passado, da perda de tudo, e o futuro, do destino incerto. Definitivo é que tudo será e precisa ser diferente para que as cenas de desesperança, de desalento, de dores irreparáveis e de ausência de perspectiva não voltem a tomar conta do estado, hoje associado à imagem de um "cenário de guerra", expressão vinculada às imagens geradas pela destruição das chuvas. 

Professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande, Marcelo Dutra fala na maior reconstrução a ser registrada no país. Para reverter essa situação, diz Dutra, não bastará reerguer prédios, refazer estradas e auxiliar famílias que perderam tudo, mas, sobretudo, preparar-se para enfrentar um novo e desafiador cenário: o extremo climático, que veio para ficar. 

"Vamos precisar incorporar melhores práticas de sustentabilidade. Gestores já dizem que alguns bairros e infraestrutura não podem ser reconstruídos no mesmo lugar. Pedaços da cidade precisarão ser reconstruídos em outros lugares. É um movimento que vamos ver muitos prefeitos fazerem, não por orientação do governo federal ou do estado. Por necessidade real", contou Marcelo Dutra ao Correio

"Não dá para achar que não vai acontecer de novo. Vai, sim. A nova realidade será de momentos de muita chuva, com ventos muito intensos, e outros de período de estiagem. Será preciso devolver para a natureza o espaço, criando zona de segurança do corpo hídrico, afastada da zona urbanizada domiciliar. Grandes empreendimentos,  prédios, condomínios, loteamentos autorizados em terrenos próximo dos lagos, vão precisar recuar. Será preciso desconstruir, demolir mesmo", projeta. 

O prefeito de São Sebastião do Caí, Júlio Campani (PSDB), relatou o drama da cidade de 25 mil habitantes que administra, das mais atingidas pelas enchentes. No município, 650 pessoas desalojadas foram realocadas para quatro abrigos em centros comunitários. Um contingente de 200 famílias de ribeirinhos.

"Essa chuva atingiu 90% da cidade, atingida amplamente. A água começou a baixar e veio o cenário de guerra, com tanto lixo acumulado. Ponderei com o governador (Eduardo Leite) buscarmos alternativas para as pessoas não terem que voltar a morar nesses locais no futuro. Não permitir que voltem. Há comerciantes desistindo de seguir com o negócio na cidade. Tem muita coisa pela frente", afirmou Campani. 

O hidrólogo Rodrigo Paiva, do Instituto de Pesquisa Hidráulica (IPH), da UFRGS, também reforça que os chamados eventos extremos, repetidos no estado, são a nova realidade.

"A primeira mensagem é amadurecer nossa cultura de prevenção. Criar sistemas de alerta, treinamentos, mapear melhor as áreas de risco. A segunda é reconstruir o estado com adaptações às mudanças climáticas. É uma corrida contra o tempo. As pessoas têm urgência em recomeçar suas vidas." 

A deputada federal Franciane Bayer (Republicanos-RS) virou personagem dos efeitos gravosos da enchente. Moradora de Canoas, muito atingida pelas águas, a parlamentar precisou deixar sua residência numa canoa. Ela está temporariamente vivendo em Tramandaí, no estado, mas tem ido à cidade que se viu obrigada a abandonar, prestando apoio aos desabrigados. 

"É tanta coisa acontecendo, que nem paramos ainda para falar em reconstrução em Canoas. Não começamos a pensar na segunda fase ainda. O momento é de limpar a cidade, resgatar as pessoas e garantir água e alimento. Na hora certa, será preciso repensar muita coisa, como tirar os moradores ribeirinhos e destinar a eles outro lugar", disse a deputada. 

O geógrafo Anderson Ruholff endossou os colegas sobre a necessidade urgente de o país, não só o estado, tratar com seriedade as mudanças climáticas.

"O estado foi severamente afetado, na maior catástrofe ambiental do país. Pontes e rodovias destruídas, chuvas voltando, as pessoas com dificuldade para se deslocar e infraestrutura danificada. Além de rede de esgoto que não funciona, problema na saúde pública, falta de energia elétrica. Tudo para dizer que as mudanças climáticas vão precisar estar no centro de tudo. E o tempo é muito curto."

“O futuro é o seguinte, revisitar tudo”

Giulian Serafim / PMPA - Prefeito de Porto Alegre (à esquerda) e vice destacaram empenho dos socorristas nos resgates

O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), está focado no momento em realocar os cerca de 15 mil desabrigados que estão em locais como igrejas e clubes. Ele calcula que outras 15 mil estejam em casas de parentes. O emedebista quer uma parceria com o governo federal para construir novas moradias para essas cerca de 10 mil famílias, estima. Melo disse ao Correio que o pior momento ainda virá e fala em revisitar todo o sistema de dique de Porto Alegre e que o futuro depende de “milhões, milhões” de reais.

Como está hoje a situação da capital?

Quando chove no Rio Grande do Sul, nos rios que abastecem a capital, a gente sofre duplamente. É muita chuva que cai na cabeceira. São quatro rios que abastecem o Guaíba. Sempre chegarão. O nível do rio chegou a 5,37 e a previsão é superar. Está muito alagado ainda.

E sobre as pessoas que estão desabrigadas? Como estão?

Nos preparamos. Temos hoje 15 mil abrigados. Mas tenho entre 10 e 15 dias para voltar com essas pessoas. Ainda há muitas pessoas na grande Porto Alegre chegando. Fizemos um corredor humanitário, por onde estão chegando os suprimentos, remédios, alimentos. Derrubei uma passarela para a ajuda poder entrar. O lixo, que estava parado, já está saindo.

Como solucionar esse problema dos desabrigados nesse pouco tempo?

Vou fazer uma proposta ao governo federal, para que ele assuma, com a prefeitura, a construção de abrigos provisórios. Vou disponibilizar todos os terrenos que a prefeitura tem. O governo federal tem a expertise, já atuaram em Brumadinho (MG), em Teresópolis (RJ). Que assumam esse papel junto com a prefeitura. A gente não tem comofazer isso sozinho. Além das 15 mil pessoas no abrigo, temos outras 15 mil que saíram de suas casas e que não estão em abrigos, mas em outros locais. E que também terão que retornar para suas casas. Vamos imaginar que cada família tenha entre 3 e 4 pessoas. Estamos falando em 10 mil moradias.

Há muito a ser feito, então.

O momento difícil ainda vai chegar. A gente precisa muito dessa ajuda humanitária. Teremos que implementar o aluguel social, o seguro moradia. Estou levantando todos os imóveis disponíveis para venda de baixa renda. Vivemos a fase aguda do primeiro momento. Mas é na segunda fase que estou focando, vamos cuidar de moradia provisória. Container, barraca, precisamos pensar em soluções.

Como o senhor projeta o futuro? Se já é possível imaginar como será.

O futuro é o seguinte: revisitar todo o sistema de diques e (investir) milhões e milhões em tecnologia moderna. Vai depender de milhões (de reais). Não se resolve isso com discurso. Vamos revisitar tudo, planejar e buscar tecnologia nova. Fazer de um jeito diferente. Temos, hoje, 30% da cidade afetada. Em 70% da cidade não têm enchente. Os abrigados têm que cuidar dos desabrigados. Vamos precisar fazer mudança no sistema desaúde, de educação. O voluntariado tem sido grandioso.

 

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