Nas Entrelinhas

Análise: Supremo e Musk põem em xeque a liberdade das big techs

As redes sociais digitais são instrumentos de comunicação e formação de laços sociais. Mas, também, um mecanismo de acumulação de capital social em escala sem precedentes

O embate entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o bilionário sul-africano Elon Musk pode ter chegado a um ponto de ruptura. Nesta segunda-feira, o presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, estabeleceu a fronteira da atuação, por aqui, do trilionário radicado nos Estados Unidos: "O Supremo Tribunal Federal atuou e continuará a atuar na proteção das instituições, sendo certo que toda e qualquer empresa que opere no Brasil está sujeita à Constituição Federal, às leis e às decisões das autoridades brasileiras".

Dono da Tesla e da Space X, com uma fortuna pessoal estimada em US$ 219 bilhões (R$ 1,021 trilhão), no domingo, Musk fez uma série de ataques ao Supremo e ao ministro Alexandre de Moraes. Afirmou que tornaria públicas decisões anteriores do magistrado, que determinaram o bloqueio de perfis acusados de espalharem fake news, fazer ataques a instituições, ameaças e incitar golpe de Estado. Disse que não iria cumprir determinações do Supremo. Horas depois, Moraes fixou multa de R$ 100 mil por dia para cada perfil que for desbloqueado no X sem autorização da Justiça. Determinou também a inclusão de Musk no inquérito das milícias digitais, o que escalou a crise.

Barroso estabeleceu uma ligação direta entre 8 de janeiro e as redes sociais: "Travou-se recentemente no Brasil uma luta de vida e morte pelo Estado Democrático de Direito e contra um golpe de Estado, que está sob investigação nesta Corte com observância do devido processo legal. O inconformismo contra a prevalência da democracia continua a se manifestar na instrumentalização criminosa das redes sociais".

Musk, dono da rede social X, empresa com sede nos Estados Unidos, tem ligações com a extrema-direita no mundo e a ambição de ser o colonizador de Marte. Sem regulamentação das redes sociais, o Brasil é como um terreno baldio da periferia global. A legislação sobre a atuação das redes sociais no país, que está pronta para ser votada, virou mais um campo de batalha entre o governo e a oposição. E não entra em pauta porque existe um lobby poderoso das big techs contra isso. A regulamentação das plataformas é um assunto cabeludo no mundo.

Esperava-se que a Santíssima Trindade do mundo digital — internet, smartphones e redes sociais —, além de elevar a produtividade da economia, seria um fator de democratização e inclusão social, por meio de uma revolução global nas comunicações. Entretanto, não deve ser absolutizado, apesar dos enormes benefícios que oferece aos cidadãos.

Os fatores tradicionais de produção — capital, terra e trabalho — deixaram de ser os principais geradores de riqueza e poder na sociedade atual. Os grandes ganhos de produtividade vêm do conhecimento, que deslocou o eixo da riqueza e do desenvolvimento de setores industriais tradicionais, intensivos em mão de obra, matéria-prima e capital, para setores cujos produtos, processos e serviços são intensivos em tecnologia e conhecimento.

União Europeia

Mesmo na agricultura e na indústria de bens de consumo e de capital, a competição é cada vez mais baseada na capacidade de transformar informação em conhecimento e conhecimento em decisões e ações de negócio. Assim, o valor dos produtos depende, cada vez mais, do percentual de inovação, tecnologia e inteligência a eles incorporados. Segundo o Banco Mundial, 64% da riqueza mundial hoje advém do conhecimento. É nesse contexto que o PL das Fake News, que regulamenta a atuação das big techs no Brasil, precisa ser debatido.

As redes sociais digitais são instrumentos de comunicação e formação de laços sociais. Mas, também, um mecanismo de formação e acumulação de capital social, em escala sem precedentes, decorrente do uso intenso, espontâneo ou não, das redes digitais pelos cidadãos. Capital social é um conceito desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu, que se refere ao conjunto de relações sociais que uma pessoa possui e que lhe permite agir e influenciar outras pessoas e instituições.

Por isso, a discussão sobre as big techs envolve duas dimensões. A primeira é a produção e difusão de conhecimento, que exige um ambiente de liberdade de expressão, no qual os direitos e as garantias individuais estejam assegurados. Essa dimensão polariza o debate sobre as fakes news e ofusca a segunda, que é a apropriação desse capital social pelas grandes redes sociais. Em última instância, as big techs se apropriam e transformam o capital humano em capital propriamente dito, altamente concentrado, sem controle e sem taxação.

Há apenas um mês, os europeus que utilizam Apple, Google e outras grandes plataformas de tecnologia vivem uma nova realidade. Está em vigor a lei da União Europeia que impõe novas regras de concorrência às empresas — mudando a experiência dos cidadãos da região em relação a telefones, aplicativos, navegadores e mais. A Lei dos Mercados Digitais (DMA, na sigla em inglês) exige que as plataformas on-line dominantes ofereçam aos usuários mais escolhas, e aos rivais, mais oportunidades de competir.

As maiores empresas de tecnologia foram afetadas: Amazon, Apple, Google, Meta, Microsoft e ByteDance, empresa-mãe do TikTok. Em maio, essa lista incluirá o X de Elon Musk e o Booking.com, segundo a Comissão Europeia. As violações do DMA têm penalidades severas, incluindo multas de até 10% da receita global de uma empresa e de até 20% por reincidência. Para a maioria das empresas regulamentadas, isso significaria dezenas de bilhões de dólares.

 

 

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