Sobrevivente do atentado que matou a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, a jornalista Fernanda Chaves relata que, após as revelações da investigação que levou à prisão de três acusados de serem os mandantes do assassinato, o entendimento era de que a punição ao deputado Chiquinho Brazão (sem partido-RJ) fosse encontrar menos resistência na Câmara. Para ela, que foi assessora de Marielle, a manutenção da prisão de Brazão na Câmara deveria ter sido aprovada por unanimidade, pois, dada a dimensão do caso e da contundência da investigação, seria algo líquido e certo. Mas não foi. O Plenário da Casa aprovou a decisão de mantê-lo encarcerado, mas por apenas 20 votos a mais do que o necessário — com 277 x 129. Ao CB.Poder — uma parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília — exibido ontem, Fernanda confessou estar "chocada" com a articulação para tirar Brazão de cadeia. "Foram choques atrás de choques. A manutenção da prisão era para passar por unanimidade, fácil até. Por maioria ampla e absoluta. Mas, não. E foi suado", lamentou. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Que avaliação você faz da evolução sobre a investigação do caso Marielle?
Foi um grande passo. Depois dos seis anos do ocorrido, chegar a esse momento em que são identificados e apontados esses mandantes, ou possíveis mandantes do crime, depois de muitos anos da manutenção doída de uma esperança. Uma esperança que sempre tivemos, mas que não era fácil com tanta coisa acontecendo no Rio. Para quem acompanhou a investigação, foram mudanças sucessivas de delegados, promotores que deixaram o caso alegando interferência. Foram sucessivos problemas na investigação. Nada acontecia desde a prisão dos acusados de a executarem. A partir dali, nada mais aconteceu de grande. E, agora, um momento importantíssimo para o caso. Foi preciso mudar a Presidência da República e entrar um novo governo para o caso ter o tratamento devido. É dever do Estado elucidar esse caso. É o crime político de maior relevância da história recente do Brasil desde a redemocratização. E não vimos empenho nos últimos cinco anos. Foi preciso entrar um novo ministro da Justiça. Para nós, que estamos muito implicados no caso, eu como sobrevivente, sentimos essa virada de chave.
Um dos irmãos acusados do crime (Chiquinho Brazão) está sendo julgado na Câmara. Como vê esse processo?
Num primeiro momento, era tida como óbvia a manutenção da prisão dele no Plenário. Não tinha nem como discutir isso. Uma acusação com uma implicação dessa monta, um dos principais crimes políticos da história recente, que ganhou o mundo. O mundo pergunta: "Quem mandou matar Marielle?" Você chega em países das Américas e na Europa tem rua, tem praça com o nome dela. É uma cobrança internacional. Avaliava que a manutenção da prisão na Câmara ia passar fácil. Aí, protelaram. E percebemos uma articulação de que (a manutenção da prisão) não seria tão fácil. Foi outro choque. Foram choques atrás de choques. Deveria passar por unanimidade, fácil, com ampla maioria, absoluta. E não foi. Foi suado. Na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), foi menos. No Plenário, eram precisos 257 votos e passou (a manutenção da prisão) por 20 a mais. A gente até comemorou, mas é até absurdo comemorar isso. É um momento triste, deprimente. O envolvimento de uma autoridade num assassinato desse tamanho. E ainda foi preciso voto a voto, chamar um deputado daqui, outro dali.
Foi uma votação marcada por corporativismo, de uma tentativa de proteção ao deputado Brazão? A que a senhora atribui esse comportamento?
São muitas as camadas. É difícil uma leitura muito liminar. No Congresso, ele não é representativo, diferentemente do Rio de Janeiro, onde todos os conhecem e temem os Brazão. Eu coloco (o resultado da votação) no campo da polarização, que vem há cinco anos com a eleição de Jair Bolsonaro. Houve uma tentativa, também, de fazer um contraponto, uma crítica do Judiciário. Um recado de que quem decide é a Casa. Algo contra o (ministro do Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes (que decidiu pela prisão dos acusados). Foi uma infeliz escolha. Poderiam ter escolhido outra pauta para confrontar o STF, sem usar a Marielle para isso. Foi de uma pobreza estratégica. Agora, tem o segundo momento, que é a cassação do mandato (de Brazão) no Conselho de Ética. Há a leitura de que a perda do mandato é consenso, majoritário. Mesmo vários deputados que votaram a favor de que fosse solto, anunciaram que são a favor da cassação. É parte da narrativa isso também, de quem decide são eles.
Como poderia se imaginar, projetar, se o Plenário tivesse aprovado a soltura de Chiquinho Brazão e ele voltasse ao convívio de vocês no Congresso?
Seria inimaginável, impensável. Imagine ter que trabalhar no Congresso com ele. Cruzei com o deputado em alguns momentos. Era perturbador ter que respirar o mesmo oxigênio que o acusado de mandar matar Marielle e fuzilar o carro em que eu e ela estávamos. Não só para mim, mas também para os correligionários de Marielle.
Vocês foram surpreendidos quando a investigação apontou o possível envolvimento de delegados da Polícia Civil que cuidaram do caso, principal o ex-chefe Rivaldo Barbosa, hoje preso? Como foi esse impacto?
Foi um choque quando chegaram as notícias da prisão dos irmãos Brazão (Domingos e Chiquinho) e do delegado (Rivaldo Barbosa), que, na época, era o chefe da Polícia Civil. Tinha acabado de ser nomeado. E foi muito próximo da investigação. O Rivaldo sempre foi tido como alguém do campo progressista, sério, que idealizou a Delegacia de Homicídios do Rio, especializada em crimes de homicídio. Foi chocante. Tínhamos o Rivaldo como uma referência, uma pessoa de confiança, diferentemente dos irmãos Brazão, que já tinham aparecido no início da investigação — depois foram deixados de lado e voltaram para a linha de investigação.
A senhora e ele (Rivaldo) eram muito próximos?
Sim, ele se colocou muito disponível desde o primeiro momento. E colocou outro delegado, o Giniton Lages (também alvo da operação e que está usando tornozeleira eletrônica), disse ser homem de sua confiança, quem iria tocar (as investigações). E é chocante e revoltante demais ver isso tudo.
A senhora diz que Marielle não foi morta por uma razão específica, única, por ter se posicionado a favor ou contra um projeto de lei. Quais os fatores motivaram seu assassinato?
Muito se fala sobre a motivação, que tem relação com combate às milícias na Zona Oeste (do Rio de Janeiro), onde atua a família Brazão. A Marielle tinha muita limitação para lidar com o tema da segurança pública. Ela era presidente da Comissão da Mulher na Câmara (de Vereadores carioca), que era o que a motivava, a que lhe dava mais prazer de atuar. E ela trabalhava muito e trabalhava direito demais. Não se tocava a negar nenhuma demanda, ainda que não tivesse braço institucional para tocar. A associação de moradores, por exemplo, se queixando da entrada de milícias violentas. Ela não podia atuar muito, mas atuava de um jeito. Com a morte dela, tentaram atingir um grupo político, um setor da política. E escolheram uma mulher negra, favelada e lésbica. Por isso, ela foi assassinada.
O caso reacendeu debate sobre segurança pública. Como tirar o Rio de Janeiro desse cenário tão complicado?
A grande revelação do caso Marielle é o estado em que o Rio se encontra. Você tem a milícia dentro de todas as instituições de Estado e isso é coisa absurda. A milícia está dentro das polícias, dentro da Câmara, dentro da Alerj (Assembleia Legislativa), aqui no Congresso, e em empresas também. Está entranhada no Tribunal de Contas do Estado. É bizarro. A situação no Rio é que se trata de um território totalmente dominado por máfias. Não sei se basta apenas uma intervenção, precisa de algo maior, de vários atores. Passa por toda a Esplanada, pelas áreas de educação, de moradia e outras.
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