Análise

Alexandre Garcia: A medula da Constituição

"Ex-presidente do Supremo, o ministro Marco Aurélio, falando no último Fórum da Liberdade, lembrou que a Corte tem que ficar restrita às funções que lhe atribui a Constituição. Não poderia julgar os manifestantes do 8 de janeiro"

 Em 8 de janeiro de 2023, um grupo de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadiu e depredou as sedes dos três Poderes, em Brasília. -  (crédito:  AFP)
Em 8 de janeiro de 2023, um grupo de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadiu e depredou as sedes dos três Poderes, em Brasília. - (crédito: AFP)

Estamos precisando ler a Constituição com a mesma frequência e intimidade com que os evangélicos leem e citam a Bíblia. Afinal, a Constituição é o livro sagrado nas nações democráticas. Precisamos ter os princípios da Constituição como uma questão de fé — uma fé racional — porque estão passando por cima do que foi promulgado há 36 anos e ainda estamos discutindo se isso pode ou não, como se já não estivessem fixados em pedra.

Como Moisés no Sinai, o Doutor Ulisses nos apresentou as tábuas pétreas da lei maior e, por serem fáceis de ler e de entender, chamou o conjunto de princípios de Constituição Cidadã, como garantia contra qualquer tipo de tirania. "Tenho nojo de ditadura", proclamou ele na promulgação da Lei Maior.

Agora o ministro aposentado do Supremo Marco Aurélio Mello explica a quem ainda não percebeu que a medula da Constituição é a liberdade. A liberdade está em todas as páginas do nosso livro sagrado. A tal ponto que a Constituição proíbe qualquer restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma ou veículo — como está escrito no artigo 220.

O mesmo artigo vai além: estabelece que "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística, em qualquer veículo de comunicação social" — e observe que o constituinte não escreveu apenas a palavra liberdade, mas a adjetivou: plena liberdade.

O inimigo da liberdade de expressão é a censura. Para ela, o artigo 220 reserva uma arma letal: "É vedada toda e qualquer censura, de natureza política, ideológica e artística". Qual é a exceção? Os valores éticos e sociais da pessoa e da família. É o que estabelece o artigo seguinte, mandando que a programação da tevê e do rádio respeite esses valores, isto é, respeite a família.

O incrível é que está desde 1988 na Constituição e parece que ainda não circula por todos os nervos, veias, vasos e artérias do país. E na medula da Constituição está a liberdade. Como vamos exigir que respeitem o Código Penal, que é lei ordinária, se não respeitam a lei maior? Se não respeitam a lei maior, por que iriam respeitar as menores? Eis porque vivemos mal, com insegurança em tudo.

O mais incrível é que autoridades, com ou sem mandato, que juraram cumprir e defender a Constituição, só fizeram isso protocolarmente. Ex-presidente do Supremo, o ministro Marco Aurélio, falando no último Fórum da Liberdade, lembrou que a Corte tem que ficar restrita às funções que lhe atribui a Constituição. Não poderia julgar os manifestantes do 8 de janeiro, que ficaram sem direito ao recurso; tampouco caberiam julgamentos à distância.

Em 1932, os paulistas deram sangue e vidas por uma constituição. Foram bombardeados pela aviação de um governo que não queria ser limitado por uma constituição. Fabricaram blindados e resistiram. Hoje, o que blinda os que querem viver em liberdade é a Constituição de 1988, que está sendo bombardeada em sua medula. Medula atingida leva à paralisia. O cale-se é a paralisia da liberdade.

Isso pode ser revertido se a Constituição se tornar o livro de cabeceira da cidadania. Mas não ficar apenas na cabeceira, e sim se estabelecer nas cabeças brasileiras.

 

 

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 17/04/2024 03:55
x