A partir de hoje, a pré-campanha das eleições municipais está na rua. Após mais um troca-troca de legendas, encerrado ontem, com o fim do prazo de filiação partidária, em todas as cidades do país armam-se as candidaturas a prefeito e vereador, com seus respectivos apoiadores. É um movimento pautado pela grande circulação de recursos financeiros, seja de fundos eleitorais, seja de caixa dois proveniente do desvio de recursos públicos, cuja origem, em parte, são contratos de fornecedores e as emendas ao Orçamento da União. Candidaturas nascem e desaparecem num passe de mágica, no grande balcão de negócios em que se transformou esse momento da pré-campanha.
É um mundo de sombras, como na alegoria da caverna de Platão, descrito no clássico dos clássicos da política: A república. Nele, o filósofo grego discute o papel do conhecimento, da linguagem e da educação no Estado ideal. Na caverna, resumidamente, prisioneiros estão acorrentados e veem sombras bruxuleantes projetadas pela luz de uma fogueira. São homens, animais e plantas imaginárias. Um dos prisioneiros, porém, se livra das correntes e percorre a caverna. Descobre que as imagens não são reais, mas de estátuas cujas silhuetas eram projetadas pela fogueira. E que passara a vida inteira julgando sombras e ilusões.
Ao sair da caverna, é ofuscado pela luz; mas se habitua à nova realidade e volta a enxergar fora da caverna. Encontra com a vida verdadeira, regressa para a caverna e conta o que viu. Entretanto, é ridicularizado pelos demais, que só conseguem enxergar as sombras na parede da caverna. É chamado de louco e ameaçado de morte porque suas ideias são absurdas. É mais ou menos o que acontece nos debates eleitorais, quando alguém surge com uma proposta verdadeiramente inovadora e disruptiva, depois de fugir do mundo das sombras da política envelhecida. Há toda uma estrutura montada para reproduzir os padrões obsoletos que degradam as cidades brasileiras.
As políticas públicas na maioria das cidades brasileiras foram capturadas por grandes interesses privados, em prejuízo da população. Passamos por um novo ciclo de expansão urbana que, agora, também atinge as cidades médias e pequenas. Na transição da vida do campo para a cidade na segunda metade do século passado, provocada pela adoção da legislação trabalhista no meio rural e a rápida industrialização, ainda havia um certo planejamento urbano e a preocupação de oferecer condições de vida e de locomoção que tornassem as cidades funcionais, e de formar uma força de trabalho escolarizada e saudável para atender às demandas da modernização. Brasília é o melhor exemplo.
Essa situação mudou radicalmente. A força do agronegócio, hoje o setor mais dinâmico da economia, com notável impacto em pequenas e médias cidades da nova “economia do sertão”, restaurou a influência nacional da nossa elite agrária, mas isso não se traduz na vida urbana como poderia. Há 100 anos, houve um notável movimento de reforma urbanística no país, que deu às principais capitais brasileiras grandes avenidas, bulevares, transportes sobre trilhos, saneamento básico, hospitais e escolas públicas, etc. Tudo financiado por recursos provenientes do café, do açúcar, do algodão, do cacau, da borracha, da pecuária e da mineração, e por investimentos nacionais e estrangeiros na implantação de indústrias e de serviços urbanos.
Favelas e periferias
Uma grande massa de brasileiros continua se deslocando do campo para os centros urbanos, em busca de novas perspectivas de vida, mas as cidades não estão sendo capazes de absorver essas pessoas e lhes oferecer condições dignas de trabalho, de moradia, de saúde, de educação, de segurança e de mobilidade. Há estagnação e degradação da vida das cidades, já não só nas favelas e periferias, depois de um ciclo recente, protagonizado pela redemocratização do país e o reconhecimento dos municípios como entes federados, pela Constituição de 1988, o que proporcionou autonomia e muitas administrações competentes e inovadoras.
Houve melhoramentos contínuos da qualidade de vida em muitas cidades, entre as quais se destacam Maringá e Curitiba, no Paraná; Jundiaí, São José do Rio Preto, Piracicaba, São José dos Campos, Franca, Taubaté e Campinas, em São Paulo; e Vitória, no Espírito Santo. No ranking das melhores cidades para se viver, essas cidades batem capitais como Belo Horizonte, São Paulo, Florianópolis, Palmas, Campo Grande, Goiânia, Rio de Janeiro e Porto Alegre, que são as melhor avaliadas.
Como os antigos sofistas, tão criticados por Platão, campanhas eleitorais encantam os espíritos com argumentos que nada tem a ver com a verdade, só visa a conquista de opiniões. A diferença entre os sofistas e a construção das narrativas atuais é que os antigos, tão combatidos por Platão, se satisfaziam com a vitória passageira à custa da verdade, enquanto os políticos almejam a conquista do poder a qualquer preço, sem projeto de transformação da realidade.
Sim, a maioria dos atuais prefeitos já não faz promessas mirabolantes, nem apresenta projetos faraônicos, ou promete mundos e fundos. Mas a safra de prefeitos que transformou as cidades acima citadas cumpriu um ciclo histórico. Novos problemas surgiram e se somaram àqueles que não conseguiram resolver. O maior deles talvez seja o garrote da captura da expansão urbana pelos grandes interesses imediatos do mercado imobiliário, do setor automotivo e dos prestadores de serviços, como a coleta de resíduos sólidos.
É preciso romper o círculo vicioso de degradação urbana, com políticas disruptivas e audaciosas, mas focadas na vida banal da população. Periferias e favelas estão sendo tomadas pela “territorialização” do crime organizado, que controla o tráfico de drogas, achaca os empreendedores, tributa os moradores e torna a vida das pessoas mais difícil e insegura. Estão cada vez mais mancomunados com servidores públicos e políticos. Habitação decente, mobilidade urbana, segurança pública e assistência integral às famílias, ao lado da saúde e da educação, são uma agenda que precisa ser tratada como política do bem comum e não apenas como negócio.
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